APL 2852 Lenda da Fonte da Moura

Esta lenda contada por uma senhora do Ribatejo, que a ouviu quando pequenina a sua avó, não indica com precisão o local em que a mesma se passou. Sabe-se, contudo, que se trata de uma antiga fonte nos arredores de Santarém.
 
Foi logo após a conquista de Santarém aos Mouros que isto aconteceu. Lavrava grande alvoroço entre a moirama. Muitos tinham sido mortos durante a escalada dessa noite em que os portugueses entraram de surpresa. Outros, feridos e prisioneiros, lamentavam em altas vozes a sua triste sorte. Mas alguns haviam conseguido escapar na confusão da batalha, fugindo pelos campos na ânsia de se acolherem aos muros de Lisboa. Essa fuga constou, e o próprio D. Afonso Henriques achou por bem empreender uma batida pelos campos cobertos de arbustos e mato grosso. Era necessário apanhar os fugitivos. Mas, ou porque os outros levavam grande dianteira, ou porque se haviam bem escondido em locais que de antemão já conheciam, o facto é que o rei e os seus companheiros iam-se afastando demasiado sem recompensa alguma. O esforço da noite anterior, a tensão dos nervos, o pó dos caminhos, tudo contribuía para que a sede viesse martirizá-los. Porém, por mais que buscassem, não encontravam água. De súbito, ouviram uma restolhada. Estacaram. Os sentidos ficaram atentos. Mas a causa desse ruído parecia ter cessado. O rei indagou:
— Pensais que encontrámos caça?
Um dos cavaleiros respondeu:
— Vou atirar o meu cavalo para cima daquele arbusto. Vi-o balançar e não corre vento.
— Pois não atireis com o cavalo. Ide a pé e verificai o que se passa. Que dois homens vos acompanhem.
O cavaleiro apeou-se, imitado por mais dois companheiros. Com certa cautela dirigiram-se para o arbusto. Espiaram. Se súbito, um deles exclamou:
— Senhor! Apanhámos uma boa peça de caça!
O rei sorriu, prevendo algo que divertia os seus companheiros e perguntou:
— De que espécie?
— É uma jovem moura.
— Bela?
— Não me parece grande coisa, Senhor!
— Pois fazei-a saltar daí. Quero vê-la.
Pressurosos, os cavaleiros aproximaram-se do arbusto para se apoderarem da jovem. Mas foi ela quem resolutamente se descobriu. Uma palidez intensa estampava-se no seu rosto moreno. Era de beleza mediana, mas no olhar brilhava uma chama viva, denunciadora de uma vontade férrea. Falou para o rei:
— Estou em presença do rei português?
D. Afonso admirou-se.
— Falas bem a nossa língua.
Ela esclareceu, um tanto irónica:
— Minha mãe foi escrava na vossa corte.
O rei sorriu-lhe. Perguntou:
— E tu, onde nasceste?
A resposta veio pronta:
— Aqui, em Santarém.
E sorrindo, apesar do aparente nervosismo:
— Mas, agora que chegastes com todos os vossos homens, resolvi fugir para não ser vossa escrava. Contudo... parece que não terei essa sorte!
Ripostou-lhe D. Afonso:
— És demasiado altiva para filha de uma escrava!
— O meu sangue deve ser tão puro como o vosso!
— Sabes que o meu Deus condena o orgulho?
— Então porque usais dele?
Os cavaleiros olharam D. Afonso Henriques. Este abriu mais o sorriso e perguntou:
— Porque fazes tal afirmação?
— Porque assim o dizem os da minha raça.
— Sentir-me feliz na conquista não é ser orgulhoso!
— Mas tendes sede de vitórias!
— E sede de água, também. Conheces por aqui alguma fonte?
Ela agitou a cabeça negativamente. E confirmou:
— Tereis de retroceder, desta vez, se quiserdes matar a sede!
— Não tenho por lema recuar.
— Pedi então ao vosso Deus que vos faça nascer aqui uma fonte!
— Se Ele quisesse… ela nasceria!
— Pois pedi! E se ela brotar, mesmo aqui... diante dos meus olhos... talvez acredite n’Ele!
Solenemente, o rei sentenciou:
— Pois que se faça a vontade de Deus!
Desmontou o rei. Os nobres imitaram o seu senhor. D. Afonso Henriques falou-lhes no seu tom imperativo:
— Ficai aqui! Não vou afastar-me demasiado. E não percais de vista a jovem moura.
Ela arriscou:
— Onde ides, Senhor?
O rei sorriu, desculpando a ignorância de uma jovem que se atrevia a interrogar um rei, e respondeu:
— Orar ao Deus Único e Verdadeiro e pedir-lhe uma fonte para me dessedentar e baptizar-te!
E dando costas, D. Afonso Henriques recolheu-se uns passos adiante, orando à sombra de um arbusto. De súbito, ouviu-se um rumor surdo e um jacto de água límpida e fresca rompeu a terra e foi correndo por ela, formando um pequeno regato. Os cavaleiros caíram de joelhos e rodearam a fonte por onde continuava brotando a água milagrosa. Assombrada, a moura levou as mãos ao rosto e murmurou:
— O vosso Deus ouviu-vos, rei dos cristãos!
D. Afonso Henriques, de joelho em terra, dava graças a Deus por tamanha manifestação de Sua Presença. Quando terminou a oração olhou a jovem moura. Ela chorava em silêncio. O rei interpelou-a num tom de voz onde havia ainda emoção:
— Não tens nada para me dizer, agora?
A jovem olhou D. Afonso Hénriques através das lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Exclamou:
— Senhor! Peço-vos que me leveis convosco, pois quero tornar-me cristã!
O rei sorriu satisfeito. Mas perguntou ainda:
— E os teus familiares?
Ela suspirou antes de responder:
— Meu pai morreu há muito, e o meu tio e tutor é vosso prisioneiro.
— Não tens noivo?
— Está livre o meu coração. Ensinai-me, pois, a amar o vosso Deus e consagrar-lhe-ei toda a minha vida!
Não respondeu logo o rei. Bebeu da água fresca que se oferecia generosa. Os cavaleiros seguiram o seu exemplo. Depois, D. Afonso Henriques ordenou:
— Preparai-vos, senhores, para transportardes esta jovem. Breve voltaremos aqui com ela e o bispo de Lamego, para que seja baptizada neste mesmo local e com esta água.
A ordem foi prontamente cumprida. E a promessa também. Em breve se efectuou a tocante cerimónia do baptismo da jovem moura. Um ano depois, a nova cristã entrava para um convento tal como havia dito. E a fonte que brotara espontaneamente em plena terra ribatejana continua ainda correndo através dos séculos, dando ao viandante a frescura das suas águas.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 365-368
Place of collection
SANTARÉM, SANTARÉM
Narrative
When
12 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography