APL 2863 Lenda das Cinco Badaladas
A lenda que vou contar tem como cenário a bela cidade de Viana de Castelo, e está ligada à história maravilhosa de D. Frei Bartolomeu dos Mártires. Na sua velhice, Frei Bartolomeu resolvera recolher-se ao mosteiro de S. Domingos, em Viana, mosteiro que ele fundara à custa de um esforço sem limites e de uma vontade de antes quebrar que torcer. Sentindo-se cansado, já perto da morte, Frei Bartolomeu dos Mártires preferiu aos tumultos do mundo o sossego e a simplicidade da sua cela. E é nesse sossego que nasce a lenda que vou contar.
Na sua cela, Frei Bartolomeu não se cansava de implorar ao Senhor:
— Ó meu Deus! Se não valeis depressa a este mundo desvairado, os homens perdem-se, os homens enlouquecem! A guerra, para eles, acabou por se tornar um hábito. Acabai com esse flagelo, Deus meu! Chamai-os à razão! Mostrai-lhes mais uma vez o caminho da Verdade! Eles hão-de acabar por compreender.
Mas os homens afastavam-se cada vez mais desse caminho. As lutas entre irmãos do mesmo sangue, erguidas pela ambição do poderio, tornavam-se mais frequentes e mais sinistras.
Ora aconteceu que nas imediações do convento, a caminho do rio, um pescador vindo de longe veio estabelecer ali a sua companha. Esse pescador era viúvo e tinha apenas uma filha.
Numa das suas visitas habituais ao bairro dos pescadores — levando-lhes o conforto espiritual e todo o auxilio que podia arrancar às suas modestas posses — Frei Bartolomeu dos Mártires entrou, também, na casa desse velho pescador. Com o sorriso nos lábios, saudou-o:
— Deus vos abençoe, bom homem! Posso entrar?
O pescador olhou o frade com dureza.
— Para que pede licença, se entra antes de ouvir a resposta? Na minha terra bate-se primeiro à porta!
Frei Bartolomeu não se amofinou. Sorriu com doçura e humildade.
— Desculpai... mas aqui os costumes são outros... E ninguém faz cerimónia com um pobre frade como eu.
Parou no meio da casa e perguntou:
— Dais licença que me sente? Estou velho e as minhas pernas estão gastas... Já não aguento muito tempo de pé...
O pescador não respondeu logo. Olhou o frade com atenção. Depois gritou para um outro aposento:
— Eh, rapariga! Traz uma cadeira para este frade. Ele quer sentar-se.
Uma rapariga bastante jovem e de aspecto decidido apareceu. A sua voz era agreste.
— Está aqui um banco. É o que se pode arranjar. Isto não é casa de ricos.
Sem se perturbar, Frei Bartolomeu respondeu com o mesmo sorriso complacente:
— Eu sei... eu sei... Por isso vim até aqui...
Ela franziu as sobrancelhas:
— E porquê, aqui?
— Porque os ricos não precisam das minhas visitas.
Rude, o homem replicou:
— Nem nós, apesar de sermos pobres. Basta-nos o nosso trabalho.
A jovem apoiou a opinião do pescador:
— Tem razão, meu pai! Não é com palavras que a gente se governa. E com isto me vou. Tenho a roupa à minha espera. E tem que ficar ainda hoje enxuta.
Uma sombra de tristeza anuviou a expressão de Frei Bartolomeu, que se apressou a dizer.
— Esperai, não vos ides embora. Gostava tanto de conversar com os dois!
Sempre ríspida, a rapariga retorquiu:
— Mas nós é que não temos tempo para conversas. E para mais, conversas que não nos interessam...
— Que sabeis disso?
— Ora! Sei que o trabalho não pode esperar!
Frei Bartolomeu voltou a sorrir.
— Se Deus quiser... ficai sabendo que o vosso trabalho se despachará a tempo e horas.
Ela soltou uma gargalhada que soou falsa.
— Era o que faltava agora! Deus vir ajudar-me a lavar e a enxugar a roupa!
E num trejeito de desafio:
— Eu já não vou nessas patranhas, senhor padre!...
O pescador achou por bem intervir para pôr cobro à conversa.
— Olhe, se vem cá com a mania de nos levar à igreja, engana-se redondamente. Isso acabou para nós há muito tempo!
Assombrou-se o rosto do pescador. Ficou mais fechada a expressão da rapariga. O frade ficou alerta. E quis saber:
— Disseste... que isso já acabou?
A jovem, menos ríspida, esclareceu:
— Sim, há muito tempo... quando a minha mãe morreu.
Houve um pequeno silêncio que o santo frade respeitou. Depois, numa voz cariciosa, retomou a palavra:
— Compreendo a vossa dor. Não há nada na Terra que possa substituir o amor de um ente querido, principalmente o amor de mãe! Mas... dizei-me: como foi que ela morreu?
O pescador voltou a mostrar-se desabrido.
— Como foi? Pergunte ao seu Deus! Ele é que lhe pode responder.. Ele é que a matou!
Frei Bartolomeu abriu os olhos. Ia responder à afronta. Mas já a rapariga, chorando, exclamava:
— E tanto que ela acreditava n’Ele, tanto! Não se deitava nem se levantava sem lhe rezar as suas orações. E afinal... afinal… para quê?
O frade lembrou, na sua voz serena:
— Deus sabe o que faz, meus filhos. Se a chamou para seu lado, foi porque ela o merecia.
Num eco, o pescador começou desfiando o seu rosário de recordações.
— Nunca mais esquecerei essa noite! Fizemos tudo o que era possível para a salvar. Rezámos... rezámos... sei lá quantas vezes... Pedimos a Deus... pedimos a todos os santos... Fiz promessas... Mas nada! Ela morreu!
E numa súbita revolta:
— Ouviu bem, seu coruja? Ela morreu, apesar disso tudo! Desde aí nunca mais quis ouvir falar em Deus! Só conto com os meus braços, o meu trabalho e a minha filha!
A rapariga pareceu afligir-se.
— Pai! Não esteja a falar com tanta exaltação! Isso faz-lhe mal!
E voltando-se para Frei Bartolomeu:
— O senhor quer mais alguma coisa de nós? Se não quer... vá-se embora! Já ouviu o bastante. Nesta casa não há lugar para Deus!
O bom do frade empalideceu, mas continuou aparentemente calmo. Levantou-se e disse, sereno:
— Vou-me embora, sim. Não os quero afligir mais com a minha presença. Mas pedirei a Deus que vos ajude... que vos encaminhe...
E sem esperar resposta, Frei Bartolomeu saiu da casa do pescador.
Algum tempo passou. Frei Bartolomeu não esquecia o pobre marítimo e a sua filha, tão atormentados pela perda de um ente querido. Orava por eles dia e noite. Fizera mesmo várias tentativas para voltar a visitá-los mas dessas vezes nem consentiram na sua entrada. Recusaram mesmo receber qualquer esmola, num assomo de orgulho desmedido. E bateram-lhe com a porta na cara!
Desde esse momento, Frei Bartolomeu dos Mártires não mais procurou a casa do pescador revoltado. Mas continuava pedindo a Deus por ele e pela filha, nas suas orações diárias.
Certo dia de Inverno rigoroso, o pescador fez-se ao rio com mais quatro companheiros. Sem quase darem por isso, o barco, levado por medonho temporal, começou a afastar-se e a entrar no oceano. O mar estava tenebroso e em terra todos temiam pela sorte dos cinco homens.
Quando a filha do pescador se deu conta do perigo, correu de porta em porta a suplicar que fossem acudir ao pai. Mas ninguém se atrevia, com um temporal assim, a afrontar o oceano. Então, como último recurso, ela subiu as escadas do convento de S. Domingos. Bateu à porta. Quando a entrada do convento lhe foi franqueada, ela pediu, com voz repassada de amargura e de cansaço:
— Preciso falar com aquele frade velhinho… aquele frade que costuma visitar os pescadores...
Levaram-na a presença de Frei Bartolomeu dos Mártires. Quando o avistou correu para ele, olhos rasos de lágrimas, voz suplicante e humilde.
— Senhor padre! Por tudo vos peço! Ajudai-me a salvar meu pai que a tempestade levou para o oceano! Perdoai o que nós dissemos e fizemos! Mas salvai-o agora!
Torcia as mãos, num desespero. Frei Bartolomeu perguntou:
— Está sozinho?
— Não! Leva quatro companheiros no barco!
— Está longe?
— Não está longe… mas o barco não aguenta mais as vagas! Salvai-o! Da janela podeis ver o seu barquinho sacudido pela tempestade! Pedi a Deus que o salve, senhor padre!
Frei Bartolomeu olhou um crucifixo que trazia ao peito. Murmurou baixinho uma oração. Depois voltou-se carinhosamente para a rapariga, que continuava chorando.
— Dizeis que posso vê-los da janela? Sim, lá estão eles… Que temporal horrível! Pois esperai aqui por mim. Vou pedir a Deus que os salve. São cinco homens, dizeis? Tende fé, e Deus os salvará!
A jovem caiu de joelhos e assim ficou chorando, enquanto o frade saía de mansinho.
Daí a instantes, no sino grande do convento soaram cinco fortes badaladas, como se fossem um sinal divino. E logo o mar se acalmou como por encanto, e os cinco homens puderam chegar a terra sãos e salvos! Frei Bartolomeu dos Mártires, por intermédio do Coração Divino de Jesus, conseguira salvá-los. Por cada badalada que ele tocava, cada um dos homens sentia forças redobradas para remar e enfrentar o temporal.
Na casa do velho pescador já houve lugar para Deus. As ovelhas transviadas voltaram ao seu Bom Pastor. E tudo porque um frade do convento de S. Domingos lembrara que acima das ansiedades terrenas existe o amor de Deus. Cinco badaladas soaram na torre do convento. Cinco homens foram salvos da fúria do mar. Cinco almas ficaram tementes a Deus e a louvá-lo para todo o sempre!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 59-63
- Place of collection
- VIANA DO CASTELO, VIANA DO CASTELO