APL 2797 Lenda da Melhor Vitória
É a lei eterna da vida: as invasões sucedem-se a outras invasões. A terra é sempre o pomo da discórdia. A ambição, o veículo inflamável que leva o alimento à chama que tudo pode devorar no seu poder devastador.
Quantas guerras! Quantas lutas! Quanto sangue derramado por povos sucessivos, no desejo do poderio!...
Ano de 848. O rei leonês D. Ramiro reconquistara a cidade de Medóbriga, que os mouros haviam tomado em 714. O ambiente era tenso. A juntar a tudo isto havia dois anos que uma seca impressionante, tão feroz como uma batalha, lançara a miséria em quase toda a Península. E foi, precisamente, nessa mesma época, que D. Ramiro resolveu ir visitar o abade D. João, seu parente, que vivia no mosteiro de Lorvão.
Ao chegar, o ambiente de desoladora miséria impressionou o rei leonês de tal modo, que parou, olhando os campos em redor, sem atentar sequer no seu parente, que o esperava com a alegria no olhar.
— Senhor, grande é a honra que nos concedeis em visitar-nos neste pobre mosteiro!
O rei acenou afirmativamente com a cabeça, num ar pensativo, e concluiu alto o seu pensamento:
— Pobre! Dizeis bem, D. João. Tão pobre, que nem sei como podeis viver todos aqui!
O abade curvou a cabeça humildemente.
— A graça de Deus já é riqueza, Senhor. E é quanto procuramos.
O rei não se conformou.
— Mas este mosteiro está em ruínas!
O abade sorriu.
— Assim é, Senhor.
Levantando o peito num ar decidido, a rei Ramiro sentenciou:
— Vou providenciar para que a vossa situação se modifique. Em que miséria vive um dos meus parentes!
Sorriu, de novo, o abade.
— A vossa piedade é inspiração de Deus! Tereis assim o nosso eterno reconhecimento e as bênçãos do Céu, Senhor!
Interrompendo-o, o rei elucidou:
— Dar-vos-ei alguns campos e a vila de Montemaior!
D. João abriu os olhos, num espanto:
— Tanto, Senhor? É demasiada, a vossa generosidade!
Foi a vez do rei sorrir.
— Bem o mereceis, D. João. No entanto, ouvi bem o que vos recomendo: esta dádiva leva-vos à obrigação de sustentar na vila um agrupamento de homens de armas capaz de a defender das hostes inimigas!
Submisso e contente, o abade D. João afirmou:
— A vossa vontade será cumprida, Real Senhor! Eu próprio deixarei o convento com alguns dos meus companheiros mais fiéis e iremos habitar a vila. E pela nossa honra e pela fé em Deus, juramos que a havemos de defender até à última gota do nosso sangue!
Colocando uma das mãos sobre um dos ombros do abade, o rei Ramiro I disse apenas, num tom solene:
— Assim o espero, D. João!
Na vila de Montemaior, ou Montemor, vivia agora D. João, alguns dos seus companheiros do mosteiro e um grupo de guerreiros com suas mulheres e filhos.
O auxílio do rei Ramiro I viera no momento próprio. No momento decisivo. Refeitos da miséria que haviam sofrido nos últimos meses antes da visita do rei, o abade D. João e os seus companheiros estava profundamente gratos ao rei Ramiro e prontos a cumprir fielmente a jura de defender Montemaior quando a hora trágica chegasse. E foi então que um grande exército mauritano, vindo dos campos do Mondego, acampou no sopé do monte e fez apertado cerco ao castelo.
Atormentado com tal acontecimento, o abade D. João mandou vir à sua presença o capitão que mais confiança lhe inspirava Era ele um fidalgo brioso, honesto, decidido e crente. Em breve se apresentou ao abade. Vendo-o, D. João olhou-o, primeiro em prolongado silêncio, que o fidalgo respeitou. Depois, com solenidade na voz, tentando encobrir a angústia que o dominava, o abade perguntou:
— Sabeis por que vos mandei chamar, D. Fernando?
Perfilado, o fidalgo respondeu:
— Eu sei, abade D. João. O exército mauritano acaba de cercar-nos. A hora é grave!
— Qual é o ânimo dos nossos homens?
— O lema é só um: combater e expulsar o inimigo!
O abade D. João baixou o olhar, pensativo. Fez-se novo silêncio. Depois, erguendo a cabeça, o abade perguntou, com reticências na voz:
— Que faremos com as mulheres e as crianças?
D. Fernando suspirou fundo. As rugas que se erguiam altivas sobre as suas sobrancelhas denotavam visível preocupação. Mas o fidalgo respondeu, o mais serenamente que lhe foi possível:
— Por enquanto é cedo para resolver. Encontram-se a coberto das muralhas que defendemos. E o nosso braço ainda está firme!
Com vagar que denotava amargura, D. João recomendou:
— Preparemo-nos para a luta! Creio que deve ser muito dura!
Como se quisesse rubricar esta afirmação, o Sol escondeu-se no horizonte, e a meia luz que antecede às trevas esgueirou-se pelas grades das janelas do gabinete...
A luta começou, na verdade, renhida. Jogava-se tudo por tudo. D. João empenhara a sua honra e fé em Deus na defesa da fortaleza. Por sua vez, os mauritanos, em grande número, achavam impossível recuar. Mas espantavam-se com a defesa enérgica dos sitiados. Porém as forças humanas têm o seu limite. D. João receava não conseguir afastar os mouros. Começavam a faltar as provisões. Quebrantava-os o cansaço. D. João via aproximar-se o fim. Pediu, de novo, que D. Fernando viesse à sua presença. Este não tardou a comparecer. Num tom de voz repassado de amargura e desalento, o abade comentou então:
— O Céu está a infligir-nos uma dura prova, D. Fernando!
Tentando a compostura do costume, o capitão retorquiu:
— Temos castigado bem os mouros. Devem ter pesadas baixas!
— E nós?
— Graças a Deus, há poucas mortes a lamentar. No entanto...
D. Fernando hesitou. Mas o abade mostrou que estava dentro do assunto.
— Bem sei. Os mantimentos chegam ao fim. Diante de nós surge a contingência de uma forçada rendição.
— Só podemos resistir mais dois dias. Depois...
D. Fernando suspirou com mágoa e continuou:
— ...depois teremos fome e tudo quanto nos leva a um triste fim! Mas a rendição horroriza-me!
D. João endireitou-se na sua cadeira.
— D. Fernando! Também eu não desejo uma rendição! Bem sabeis que jurei defender estes muros até à última gota do nosso sangue!
Levou uma das mãos à testa escaldante e continuou, numa voz quase rouca:
— Como hei-de resistir à afronta de ver esses infiéis entrando nos nossos domínios e sujeitando a violências as mulheres e crianças confiadas à nossa guarda?
D. Fernando empalideceu.
— Senhor abade… não me lembreis semelhante horror!...
O abade elevou as mãos ao céu, numa súplica. Orava baixinho, como antes das grandes cerimónias. D. Fernando não se atrevia a interrompê-lo. Ouvia-lhe, de vez em quando, frases soltas, que o sobressaltavam ainda mais: «Perdoai o que vou fazer... Tenho de as sacrificar... Até à última gota do nosso sangue…»
Um frio intenso percorreu a coluna vertebral de D. Fernando. Que estranha oração! — pensou ele. Teve desejo de o interpelar, de lhe pedir contas dos seus secretos pensamentos, já que ele era o senhor, já que as suas ordens teriam de ser cumpridas... Mas o abade orava. Orava, de olhos marejados de lágrimas e mãos trementes. De súbito, a oração findou. D. João ficara subitamente calmo. Só D. Fernando parecia cada mais inquieto!
A voz do abade D. João soou, de novo, mas desta vez serena:
— Falastes em horror, D. Fernando? Pois é necessário não só lembrar esse horror dos mouros violentando as vossas mulheres, como até pensar nele com calma.
D. Fernando olhou o abade com estupefacção.
— Calma? Como é possível pensar com calma nesse hediondo espectáculo?
A voz de D. João soou afável:
— Amais a vossa jovem esposa, não é verdade, D. Fernando?
A resposta veio pronta, enérgica:
— Como a minha espada e a minha honra, que valem mais que a minha vida!
Sempre com uma estranha suavidade, D. João prosseguiu:
— Pois bem! Ana, a vossa esposa, é tão bela, que se destaca entre todas as mulheres que neste castelo se encontram.
No rosto de D. Fernando passou uma expressão de terror, seguida de mortal palidez.
— Senhor... por piedade!...
— Deixai-me acabar, D. Fernando…
O oficial baixou a cabeça, num assentimento. O abade continuou:
— Quando formos obrigados a uma rendição — o que será breve - os infiéis entrarão por essas portas e verão Ana, a mais bela de todas a nossas mulheres… E verão Carmen, a mulher do vosso primo Afonso… E tantas, tantas cristãs a quem estimamos, ficarão ao sabor dos ultrajes dessas feras…
Num berro, de peito despedaçado, D. Fernando voltou a interromper o abade:
— Senhor! Terei já deixado de existir, decerto, se o ultraje se consumar!
— E quereis que seja consumado?...
D. Fernando levou as mãos ao rosto. Rangia os dentes, num desespero. O abade voltou a perguntar, numa voz pausada, embora triste:
— Quereis, ou não, que esse ultraje seja consumado?
Novo berro se ouviu:
— Por Deus, que não! Mas como evitá-lo? Como evitá-lo?
Mordia os dedos, num gesto de semilouco.
— Sinto-me alucinado! Ah, os malditos!...
Voltou o abade a falar com energia, mas num ar quase paternal.
— Acalmai-vos, D. Fernando!
Com as lágrimas nos olhos, D. Fernando perguntou:
— Como quereis que me acalme?
— Vamos ser obrigados a uma rendição, não é assim?
Deixando que as lágrimas lhe escorressem pelo rosto, indiferentes ao seu brio de homem, guerreiro e fidalgo, D. Fernando quase murmurou:
— Assim é! Somos forçados a uma rendição. Mas juro, perante Deus, que ninguém tocará na minha idolatrada esposa!
D. João levantou-se do cadeirão.
— É isso mesmo, D. Fernando! Ninguém mais poderá tocar-lhe, nem nas outras mulheres! Falai com elas e com os vossos companheiros que têm mulher e filhos. Dizei-lhes o que vos sugeri, pois antes que os sarracenos cheguem à fortaleza, elas terão de cair!
D. Fernando levou, de novo, as mãos ao rosto. As lágrimas corriam-lhe pelas faces. Numa voz rouca, ele murmurou:
— Que dura prova, senhor! Que dura prova!
Depois, retirando as mãos do rosto, olhou de frente o abade D. João.
— Perdoai o meu desalento, que talvez vos pareça impróprio, mas concordai… que é muito o que me é pedido!
D. João olhou o fidalgo com simpatia.
— Chorai, D. Fernando! Um homem, junto de outro homem, também pode chorar! A hora é dura... a prova quase sobre-humana! Mas estou certo que Deus levará em conta o nosso sacrifício, como pesada cruz! Cada um de vós passará à espada os seus entes queridos. Depois, abriremos as portas e atirar-nos-emos a eles como cães raivosos, até que o seu elevado número nos extermine. Porém, quando aqui entrarem sedentos de vícios, depararão com o sangue inocente e os corpos frios, inertes, das que foram tudo para vós e nada já podem ser para eles! Só desse modo a vossa honra e a nossa fé ficarão intactas!...
Assim aconteceu. Manhã de sol ridente, lá fora — manchada de sangue dentro da fortaleza! Sangue e lágrimas! Lágrimas e orações! Orações e promessas de amor eterno! Tão desesperada ideia fora aprovada e logo cumprida! Dolorosa e difícil tarefa, a desses guerreiros que tiveram de trespassar os corações que os amavam, com as suas próprias espadas. Mas também, cumprida a negra promessa, esses homens, meio tresloucados pela mais viva dor, saíram em turbilhão a dar combate ao inimigo. E o inesperado surgiu. Talvez porque iam cegos de dor, excitados pelo ódio do momento, esse pequeno grupo de sitiados conseguiu vencer os sarracenos, perseguindo-os ferozmente até aos bosques de Ceiça, onde acabaram por os dizimar. Depois, exaustos, famintos, dormentes de dor, aqueles bravos vitoriosos entreolharam-se com assombro! Como iriam voltar para o castelo e contemplar os corpos ensanguentados dos seus entes queridos? Como divisar o terrível quadro que haviam preparado para o inimigo?
O regresso foi lento. Como cântico de vitória, apenas um lúgubre coro de soluços. Mas daquelas bocas não saía um queixume, um grito de revolta contra as ordens do abade D. João. Todavia, o abade parecia um velho, curvado ao peso do seu tormento.
Pouco antes de chegar, D. João mandou fazer alto aos homens que o seguiam. Com um gesto, indicou a D. Fernando que fosse abrir as portas do castelo. E enquanto este se afastava, para cumprir a aflitiva missão, o abade caiu de joelhos, elevou as mãos ao céu, e com as lágrimas a correrem-lhe sobre a barba grisalha, orou alto:
— Senhor Deus poderoso! Vós, que conheceis as vossas almas, sabeis qual foi o pensamento que me guiou ao ordenar que fosse cometido acto tão desesperado! Perdoai-me e perdoai-lhes, porque bem culpado fui como chefe, e eles porque acataram a minha palavra! Não me tireis tormento que abrasa a minha alma, mas aliviai a destes pobres homens, a quem instiguei a gesto tão cruel como inútil!
Mais forte se ouviu, então, o coro lúgubre desse soluçar sem remédio. Mas, de súbito, um grito rompeu do lado do castelo. Era D. Fernando que vinha correndo, ofegante, mais pela emoção do que pelo cansaço!
— D. João! D. João! Milagre! As mulheres e as crianças estão vivas!
Todos o olharam como quem olha um louco. Mas já ao longe se via o grupo alegre das mulheres e crianças, correndo ao encontro dos seus maridos, pais e irmãos.
Houve um momento de silêncio e de olhares espantados. Depois... Depois foi um delírio! Os beijos e as lágrimas misturaram-se com gritos de alegria quase selvagem. Entretanto, caído por terra, a boca tocando o chão, num gesto de verdadeira humildade, o abade D. João dizia entre soluços:
— Graças Vos dou, Senhor Rei dos Céus! Graças Vos dou! Todos ressuscitados! Esta foi a melhor vitória! Sem dúvida, Senhor! Foi a melhor vitória!...
Nas árvores, os passarinhos chilreavam, contentes, numa associação de carinho. E o ar leve, quase tépido, beijava aqueles rostos cobertos de pó e lágrimas, também ele próprio espantado com tamanho prodígio!...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 337-343
- Place of collection
- Montemor-O-Velho, MONTEMOR-O-VELHO, COIMBRA