APL 2718 Lenda do Bálsamo na Mão
Não sei, leitor amigo, se alguma vez já passou por Chacim, pitoresca freguesia do concelho de Macedo de Cavaleiros, perto de Bragança...
É uma povoação muito antiga, muito velhinha, e o seu nome, em português de antanho, significa «Porco, Suíno»...
Pois a três quilómetros de Chacim, num alto ermo e agreste denominado monte do Carrascal, ergue-se a pequena ermida de Nossa Senhora de Balsemão, que outrora fazia parte da chamada Terra da Senhora de Balsemão.
Ali, nos prelúdios da nossa História, erguia-se uma grande e sumptuosa mesquita. E perto da mesquita, como sentinela vigilante, lá estava também o castelo do rei mouro que dominava a região. Castelo sobranceiro e temido, bem digno do rei que o habitava. Um rei cruel e sem escrúpulos, para o qual os vassalos eram apenas miseráveis escravos.
Dizia-se mesmo que tinha momentos de fúria. Então, segundo constava, subia à torre mais alta do castelo, e gritava, em desafio ao vento e à distância:
— Cães cristãos! O rei sou eu! Ai daquele que se atrever a levantar um braço contra as minhas ordens... Imediatamente ficará sem os dois braços!
E misturava as palavras com gargalhadas.
— Mesquinhos animais que todos vós sois, cães cristãos! ... Hei-de-vos obrigar a beijarem-me os pés... porque senão os meus pés passarão sobre vós… pisando-vos… esmigalhando-vos… reduzindo-vos a pó!...
Um dia, numa das suas crises, o rei mouro resolveu instituir um tributo, como era uso e costume nesse tempo. Mas um tributo diferente dos outros. Um tributo marcado pela loucura: daí em diante todos os seus vassalos que se casassem... teriam de entregar-lhe a noiva no próprio dia do casamento!...
E quem se poderia opor à vontade do tirano? Quem teria coragem para erguer um só braço que fosse, sabendo que dentro de instantes ficaria sem os dois braços?... Quem se atreveria a clamar o seu protesto, a sua revolta? Quem ousaria tanto?
O rei mouro não se cansava de gritar para os seus homens de confiança:
— Já sabem! Se algum falar de mais... cortem-lhe a língua... Aqui, quem manda sou eu! E as minhas ordens têm de ser cumpridas? Todas as minhas ordens!
Assim o tempo foi passando e o capricho cruel do rei mouro tornou-se um hábito. Um hábito amassado em lágrimas e em ódios…
Até que um dia, como não podia deixar de ser, houve de facto quem se revoltasse. Um valente cristão, chamado Joaquim (o apelido perdeu-se na poeira do tempo) ia casar em Alfândega da Fé com Marianinha, a rapariga mais bonita da região.
Momentos antes da boda, Marianinha lamentou-se, triste e chorosa:
— Ai, Joaquim!... Eu não posso pensar... eu não quero pensar que aquele homem sinistro…
Mas ele interrompeu-a, num jeito de carinho e confiança:
— Esse maldito rei mouro não te tocará com um só dedo, acredita!
E perante o olhar incrédulo da rapariga, confidenciou:
— Já tenho o plano todo preparado... Depois verás!
Marianinha cerrou os olhos. Com força. Com emoção. Com fé.
— Joaquim, meu querido Joaquim... eu acredito. Em ti e na Virgen Santíssima. Assim Ela nos possa salvar!
Joaquim olhou-a amorosamente.
— Há-de salvar-nos, sim!
Depois, ouvindo as vozes que subiam lá fora, à espera de ambos, recomendou com autoridade:
— Vamos!... Já estão todos à nossa espera.
A Marianinha e o Joaquim casaram na pequena igreja de Alfândega da Fé. E logo a seguir, cumprindo as ordens do feroz rei mouro, Marianinha teve de subir ao castelo, para pagar o preço da sua vassalagem.
Porém, desta vez, a noiva não ia só, no meio dos guerreiros mouros, como geralmente acontecia. Joaquim solicitara a honra de ele e alguns amigos poderem levar também as suas oferendas ao poderoso senhor que os governava.
E ele acedera. Pensara que havia um pretexto para humilhar ainda mais esses míseros cães cristãos. Pois que viessem. Seria um espectáculo novo, ver a cara do noivo quando ele tomasse a noiva nos seus braços...
Talvez por tudo isso, esperou impaciente que Marianinha chegasse.
Mal a viu entrar no salão enorme onde a aguardava, o rei avançou para ela, esfregando as mãos de contente.
— Não te serve de nada esconder o rosto, minha pomba. Sei que és bela... Já mo disseram... Terás o mesmo destino das outras... Vamos, porque esperas?
A sua impaciência aumentava. A sua impaciência e o seu desejo.
— Porque não te aproximas?... Já sabes quais são as minhas ordens, não é verdade?... Ou preferes que eu te mande matar... e ao teu noivo?
A cólera subia na voz dele. Os seus olhos raiavam-se de sangue. De súbito, num impulso, conseguiu agarrar o vulto que tentava esgueirar-se.
— Anda cá, pombinha... Já não consegues fugir.
Mas, no mesmo instante em que lhe arrancou o véu, a sua voz tremeu e encheu todo o palácio, num berro selvagem:
— Traição!
E apertava nos braços fortes a figura de Joaquim. Este, porém, libertou-se depressa. Desfez-se num ápice da vestimenta feminina com que se disfarçara e gritou também, no próprio rosto do tirano:
— Sim, rei ignóbil, foste enganado! Sou eu... eu é que aqui estou!... E vim para te dizer — ouve bem! — para te dizer que nunca mais nos submeteremos às tuas ordens desumanas!
O outro quis agarrá-lo. Ele saltou de lado.
— Acabou-se!... Antes a morte!... Mas primeiro morrerás tu!
E, mais depressa do que as suas palavras, um punhal mergulhou no peito do rei mouro, que caiu sobre o tapete, golfando sangue.
Entretanto, atraídos pelo barulho da luta, acorreram muitos homens de confiança. Por instantes, quedaram-se estupefactos sem perceber o que se estava a passar. Depois, em tumulto, correram para o corpo do rei mouro...
E o destemido Joaquim aproveitou a confusão para saltar pela primeira janela aberta e cair no pátio, no meio dos poucos companheiros que o tinham seguido até ao castelo e entre os quais estava também a verdadeira Marianinha.
Então já a voz do rei tombado se fazia ouvir de novo:
— Cães tinhosos!... Que não escape um só!... Um só!... Tragam-me a cabeça do traidor... Não, as duas, a dele e a dela! Quero pisá-las... pisá-las, esmigalhá-las, antes de morrer... Vamos, não os poupem!...
O embate foi terrível, na verdade.
De um lado, apenas algumas dezenas de homens valorosos, comandados por Joaquim. De outro lado, dezenas, centenas de guerreiros…
Perante tamanha desproporção, o resultado da luta, infelizmente, não podia oferecer qualquer espécie de dúvida. Dentro em breve, os cristãos, na sua maioria, já estavam caídos por terra. Esvaindo-se em sangue. Pagando bem caro a sua ousadia.
No meio deles, ajoelhada, chorando e rezando, Marianinha clamava aflitivamente:
— Minha Nossa Senhora... Virgem Santíssima... socorrei-nos!.. Somente vós nos podereis salvar... Fazei um milagre, minha Nossa Senhora!... Dai novas forças aos cristãos… mas depressa! Depressa, Senhora... Por piedade!... E eu vos prometo solenemente erguer aqui um templo… um templo de gratidão por Vós, Virgem toda poderosa... Salvai-nos, Senhora!
E tal como se conta na história tão antiga como a terra portuguesa, de repente, quando os cristãos estavam já quase completamente vencidos, uma luz forte se derramou sobre eles... E os moribundos sentiram nas suas mãos como que um poder estranho, sobrenatural, que lhes trazia um calor novo de vida!
Joaquim, que tombara ferido de morte, foi um dos primeiros a erguer-se. E a sua voz era estranha também ao gritar sobre o fragor da luta:
— Companheiros!... Companheiros, olhai as vossas mãos! É um bálsamo... Esfregai com ele as vossas feridas... Fazei como eu, companheiros... Olhai! Vede as feridas a sarar... Milagre! Milagre, companheiros! É a Virgem que nos protege... a Virgem que põe um bálsamo na mãos de cada um de nós!
Era um espectáculo alucinante, nunca visto, que deixava os mouros boquiabertos, tremendo de pavor.
Os mortos erguiam-se. Untavam-se com o bálsamo maravilhoso que brotara nas suas próprias mãos. E as feridas saravam instantaneamente! E eles voltavam a segurar as armas, atirando-se à luta com redobrado vigor.
— Milagre! É um milagre de Nossa Senhora!
Caída de joelhos, de mãos postas e olhos rasos de lágrimas, Marianinha dizia:
— Graças, minha Nossa Senhora!... Eu cumprirei a minha promessa! Haveis de ter uma ermida aqui mesmo, mmha Nossa Senhora do Bálsamo na Mão!
Essas palavras contagiaram ainda mais o espírito aguerrido do moço Joaquim. Como um louco, atirou-se para a frente.
— Ao combate, companheiros! Vamos a eles!... Agora a vitória será nossa! Avante, pela Virgem que nos deu este maravilhoso bálsamo na mão! Avante!
E por autêntico prodígio, apesar da espantosa desvantagem numérica, cristãos conseguiram levar a melhor, pois os sarracenos recuavam atónitos, vendo diante de si, a combater, os mortos de há pouco. Recuavam e fugiam desvairadamente, deixando as armas por terra.
Nesse mesmo dia, segundo se diz, o castelo e a mesquita foram incendiados e arrasados. O rei cruel e despótico sucumbira aos golpes de Joaquim e à derrota dos seus sequazes, que continuavam a fugir precipitadamente, como que perseguidos por fantasmas...
Marianinha fez cumprir a sua promessa. E ali mesmo, no campo da luta, em pouco tempo se ergueu, com o esforço de todos, com a vontade de todos, com o amor de todos uma pequena ermida em honra dessa milagrosa Senhora do Bálsamo na Mão, que os ajudara a vencer!
E a terra começou a ser designada, desde aí, por Terra de Nossa Senhora do Bálsamo na Mão...
Com as transformações do tempo e da vida, o lindo nome modificou-se. A terra passou a chamar-se Terra de Balsemão, bem como o nome da sua Virgem padroeira.
E, nas viragens da História, a primitiva povoação deixou quase de existir, mantendo-se hoje apenas, a recordar os tempos passados, o pequeno e humilde Lugar de Balsemão.
Mas a ermida ficou, tal como era. Ainda lá está, a três quilómetros de Chacim, no alto do monte Carrascal, onde se continua a venerar a imagem de Nossa Senhora de Balsemão.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 233-237
- Place of collection
- Chacim, MACEDO DE CAVALEIROS, BRAGANÇA