APL 2723 Lenda de Santo António da Charneca
Em tempos remotos, a Outra Banda era terreno quase desértico e selvagem. Alguns grandes senhores, porém se aventuravam até lá, criando aí grandes propriedades.
Entre eles, avultou um certo D. Aires de Saldanha, que chegou a ser o dono da maior parte das terras fronteiriças ao rio Tejo.
Dizia-se que esse tal D. Aires de Saldanha enriquecera nas Índias e tinha um feitio pouco fácil de aturar. Temiam-no e respeitavam-no. E o seu solar era olhado, de longe, como local severo e inacessível.
D. Aires Saldanha, segundo constava, trouxera das Índias distantes e misteriosas uma filha e um escravo.
Uma filha de rara beleza. Chamava-se Ana. Um escravo de rara dedicação. O seu nome era Macumba.
O enfatuado e rico fidalgo tinha duas ideias fixas: obrigar todos os dias o negro Macumba a ir buscar lenha pelas serras, que ficavam distantes do seu solar, e guardar fechada em casa a jovem e bela Don’Ana, para que não a descobrisse algum pretendente.
Por isso mesmo, ela vivia como passarito em gaiola doirada, enquanto o negro Macumba percorria penosamente, todos os dias, léguas e léguas com o seu carro de bois, ora sob o sol inclemente, ora suportando os rigores da invernia.
Conforme narra a nossa história, a partir de certa ocasião, nas suas caminhadas, Macumba passou a encontrar sempre um frade franciscano, que lhe sorria prazenteiro, depois de impressionar os bois, que tremiam e se curvavam diante dele como que em obediência ritual.
Tantas vezes isto aconteceu, que um dia o negro Macumba, apesar da humildade natural dos escravos, não resistiu à curiosidade e, mal viu o tal frade franciscano, gritou-lhe logo:
— Que fazeis aqui, todos os dias, pela tardinha?
O frade sorriu mais e respondeu docemente:
— Venho esperar-te ao caminho.
Macumba não reprimiu a surpresa. Olhou-se, num ar de dúvida, olhou o frade, noutro olhar de dúvida, e repetiu em voz alta a interrogação que fizera a si mesmo:
— A mim? E para quê?
A voz do frade tornou-se ainda mais suave:
— Gosto de conversar com os homens...
Sem entender, Macumba apontou para os bois ajoelhados.
— Pois não vedes que, por vossa causa, os animais se espantam?
A resposta chegou com um ar de riso:
— Enganas-te, bom homem... Os animais apenas me dão as boas-vindas…
Era demais para o espírito do pobre negro. Macumba irritou-se. Sentiu necessidade de se impor.
— Estais a brincar!
E, num desabafo sincero, rematou:
— Se não vos visse assim vestido… diria até que eram artes do...
Mas o estranho interlocutor interrompeu-o e disse num tom mais sério:
— Não te amofines! Jamais gostei de ver homens enfadados... E muito menos por culpa minha.
Depois, adiantou-se para o pobre negro, que teve vontade de fugir mas não sentiu forças para o fazer.
— Escuta... Vou explicar-te melhor... Estou aqui, porque desejo conquistar o amor dos homens!
Macumba murmurou, já sem saber que fazer e dizer:
— Senhor... falais dum modo...
Mas logo o frade sentenciou:
— Do modo que agrada a Deus!
O olhar do negro atreveu-se a fitar o outro de frente.
— E... como pensais fazer tal conquista?
Novo sorriso despontou no rosto bondoso do frade.
— Aproximando-me deles... Captando-lhes a confiança… Amenizando-lhes a vida, por vezes tão difícil de levar a bom termo…
O negro enrugou a testa. Pensou: «Que frade estranho, para falar assim tão bem!»
E perguntou, num ar de curiosidade:
— Conheceis muitos homens desta terra?
Pausada, solene, a resposta encheu o espaço:
— Conheço todos os homens de todas as terras... até mesmo aqueles que não me conhecem!
Desconfiado, olhando em redor lentamente, como que à espera de ver surgir algo sobrenatural, o negro ainda comentou:
— Senhor… ousais afirmar tais coisas…
Mas o frade resolveu dar-lhe a maior das emoções. E disse:
— Macumba, tu tens uma alma eleita!
Aparvalhado, o negro ficou-se a olhá-lo. Sem poder falar. Sem poder pensar. E só daí a algum tempo conseguiu balbuciar, sumidamente.
— Como sabeis o meu nome?... Donde me conheceis?...
Sorrindo, mais prazenteiro do que nunca, o frade respondeu com outra pergunta:
— Eu não disse já que conheço toda a gente?...
Macumba engoliu em seco. Gaguejou:
— Então... então… conheceis também o meu amo, o Senhor D. Aires de Saldanha?
O outro inclinou a cabeça.
— Sim, conheço... Não é mau homem… mas tem alguns defeitos...
— E sua filha... Don’Ana... conheceis?
O frade voltou a sorrir.
— Se conheço, Macumba!... Olha, ela sofre porque não tem fé suficiente... Diz-lhe isto, Macumba!
Mas o negro não se sentia bem. Cada vez o medo o dominava mais. Tudo aquilo tinha qualquer coisa de sobrenatural. De chofre, declarou:
— Senhor… já estou atrasado... Tenho de partir imediatamente...
Obrigou os bois a erguerem-se e preparou-se para a abalada. Antes, porém, ainda se voltou para o seu misterioso interlocutor.
— Dizei-me, por favor... Como vos chamais?
A resposta resumiu-se numa palavra:
— António.
— E onde morais?
— No Céu.
O negro estremeceu. A sua voz mal se ouvia, ao perguntar:
— O quê?... Morais onde?... Sois quem?
Suavemente, o frade elucidou-o:
— Sou Frei António... Vivi na terra entre os homens, mas já fui chamado à Presença Divina!...
Macumba caiu de joelhos.
— Meu Deus! Será possível?...
A comoção tolhia-lhe os movimentos, embargava-lhe a voz. Mas conseguiu murmurar, num êxtase:
— Sois... sois afinal... Santo António?
O frade fê-lo erguer-se.
— Como tardaste em reconhecer-me?
O pobre negro queria penitenciar-se de todas as dúvidas anteriores. Beijava precipitadamente as mãos do frade e dizia, numa evidente excitação de nervos:
— Oh, meu Santo António... meu bom Santo Antoninho!... Eu nem posso acreditar em tão grande mercê!... Agora, sim, agora compreendo a atrapalhação dos bois, quando vos viram... Percebo porque ajoelham sempre que vos encontram... Pois eu também quero, meu bom Santo António... Deixai-me ajoelhar mais uma vez!...
Mas o frade não deixou. Pôs-lhe a mão sobre o ombro.
— Então, estás contente? Já não te zangas comigo?
Atarantado e aflito, querendo falar e rezar ao mesmo tempo, o negro Macumba só conseguia dizer.
— Oh, meu Santo António... por favor!... Eu não mereço tanto! Eu... eu... somente sirvo para acarretar lenha!...
O frade segurou-o também pelo outro ombro.
— Pois eu quero muito mais de ti!
A surpresa encheu de novo os olhos do negro.
— O quê, meu bom Santinho?
O frade inclinou-se para ele e falou devagar, silabadamente, como para o fazer decorar as suas palavras.
— Escuta, Macumba... Vai dizer ao teu amo, dono de todas estas terras, que eu te falei e que desejo que ele, D. Aires de Saldanha, construa aqui mesmo uma capelinha, para que os homens me sintam mais perto deles...
Benzendo-se ainda, a agradecer tamanha mercê, o negro rezou a sua promessa.
— Eu irei... irei sem demora!... E queira Deus que eu saiba desempenhar-me a vosso contento da minha missão!
E na verdade, Macumba, sempre deslumbrado, correu ao palacete de D. Aires.
Logo no jardim encontrou a formosa Don’Ana, que notou o sobressalto.
— Que te aconteceu, Macumba?
Ele ergueu os olhos ao Céu.
— Uma coisa deslumbrante!
Don’Ana examinou-o bem. O negro tremia.
Ela pediu então, com os seus melhores modos:
— Conta-me tudo, Macumba.
E o negro não pôde recusar.
— Falei com Santo António!
Don’Ana riu.
— Estás louco, Macumba?
O escravo sentiu-se ofendido e a sua voz ganhou firmeza e emoção.
— Senhora... bem sabeis que nunca menti!
Depois, já mais sereno, explicou:
— Encontrei-o na estrada, lá em baixo, na charneca... Os bois até ajoelharam!
Mas o ar de dúvida manteve-se nos olhos da formosa donzela.
— Tu não estás bom, com certeza!... Já contaste isso a meu pai?
Ele abanou a cabeça.
— Ainda não, Senhora... cheguei agora mesmo... E na verdade tenho que lhe dar um recado que Santo Antoninho mandou para ele...
Parou, como que à procura de qualquer coisa. E continuou, mais devagar.
— Senhora Don’Ana... O Santinho pediu-me também para vos dizer... que Vossa Senhoria… sofre assim tanto... porque não tem fé suficiente!
Silêncio. A rapariga avançou para o negro. Já não ria.
— Ele... disse-te isso?... Tens a certeza?
— Tanta... como a de ter falado com ele!
Todavia, Don’Ana depressa reagiu. E traduziu a reacção em novas risadas. Nervosas. Inquietas.
— É impossível, com certeza!... Então... Santo António ia assim... aparecer-te a ti, porquê?... Tu és um escravo!... Um escravo negro!
Submisso, Macumba ouviu a voz colérica de Don’Ana. E limitou-se a acentuar, com toda a humildade:
— Foi isso mesmo que eu pensei!... Mas a verdade… a verdade, Senhora, é que ele falou comigo... E pediu-me até para pedir ao Senhor D. Aires que mande construir uma capelinha, lá em baixo, na charneca...
— Na charneca? Para quê, Macumba?
— Disse-me Santo António que é para ele poder estar mais perto dos homens...
Irritada, sem compreender, Don’Ana olhou-o fixamente, para ver se o negro estaria a zombar. Mas achou-o sério. Sério e sincero. Então, deu de costas e, já sem o olhar, ordenou:
— Macumba! Cala-te com tudo isso, porque se irão rir de ti!... Anda, vai-te embora e deixa o meu pai em paz!
Macumba cumpriu a ordem. Triste. Vencido. Humilhado consigo próprio.
Então era assim, afinal, que sabia desempenhar-se de tão elevada e nobre missão?
Ergueu ao céu os olhos embaciados de lágrimas e rezou para si:
— Santo Antoninho! Eu bem vos dizia que era humilde demais para encargo tão grande!... Iluminai-a a ela, meu Santo António! O pai fará tudo quanto Don’Ana lhe disser!
E o milagre aconteceu. Don’Ana estava no varandim da salinha de música. Encostava-se molemente ao parapeito, de olhos perdidos na distância. Pensava? Sonhava? Nem ela própria sabia...
Mas, de repente, teve a impressão de que chamavam pelo seu nome. Voltou-se. Olhou em todas as direcções. Não viu pessoa alguma. E chamamento repetiu-se.
— Don’Ana... Don’Ana... Estais a ouvir-me?
Medrosa, desconfiada, ela perguntou com voz trémula:
— Quem me fala?
E a mesma voz doce e velada respondeu:
— Frei António!
Don’Ana agarrou-se ao parapeito do varandim. Teve a impressão de que o mundo girava à sua volta. Depois, tudo se transformou num murmúrio de música.
— Que melodia é esta, meu Deus?
— Esta melodia é apenas um estado de alma!
Ela não hesitou mais. Agora, sim, acreditava plenamente que havia um milagre!
— Frei António! Será possível?
Branda, suave, chegou logo a resposta:
— Com a ajuda de Deus, tudo é possível!
Ela voltou a olhar em redor, numa ansiedade curiosa.
— Mas onde estais, que vos não vejo?
A voz roçou por ela como se fosse uma brisa.
— Vós não acreditastes no pobre Macumba e estáveis a vê-lo e a ouvi-lo... Sereis capaz de acreditar em mim... mesmo sem me verdes?
Don’Ana compreendeu. Com todo o ânimo que lhe restava, disse:
— Se duvidais de mim, experimentai-me!
— Então escutai... Ide pedir a vosso pai que me construa uma capelinha na charneca, para que este povo trabalhador e simples possa estar mais perto de mim.
A filha de D. Aires de Saldanha parecia disposta a tudo.
— Ficai descansado! Hoje mesmo falarei a meu pai... Tendes preferência por algum lugar para a construção da capelinha?
Houve uma ligeira pausa. Depois, Don’Ana ouviu perfeitamente:
— Amanhã, ao meio-dia, podeis largar os bois que conduzem o carro de Macumba... Não os deveis perder de vista... No local onde eles pararem, é aí que eu desejo a minha capelinha.
Ela segurou-se com mais força ao parapeito do varandim. A dar força à própria voz...
— A vossa vontade será feita!
Pensou que tudo estava terminado. Mas não! Logo a seguir a voz falou de novo, fazendo-a estremecer. De surpresa e de encanto.
— E a vossa vontade também, Don’Ana...
Quase a medo, ela interrogou:
— A minha?... Mas qual?
— Aquela que está sempre no vosso pensamento...
Então os olhos de Don’Ana sorriram de prazer. E a sua voz sorriu igualmente.
— Oh, Santo António! Pois será verdade que eu venha a encontrar um noivo, tal como sonho?
Lenta, bem modulada, a voz segredou-lhe:
— Sim... Ele virá aqui, na próxima semana, em missão d’El-Rei!
Conta-se que então Don’Ana perdeu a compostura. Cantou e dançou. Bateu palmas. Parecia uma criança mimada.
E prometeu, com toda a alegria que lhe ia na alma:
— Oh, meu Santo Antoninho!... Macumba tinha razão!... Pois eu vos asseguro que a vossa capelinha será a mais bonita que nestas terras se construiu até hoje!
Tudo se passou conforme dissera a voz do Santo. Don’Ana facilmente conseguiu convencer seu pai. No dia seguinte, ao meio-dia, os bois do carro de Macumba foram largados e seguidos pelo povo em verdadeira procissão, pois a nova já correra de boca em boca.
Vagarosamente, os bois atravessaram o povoado e encaminharam-se para a charneca larga e agreste. Acerta altura estacaram — e o povo estacou com eles. Depois, por misterioso desígnio, ajoelharam pachorrentamente.
E assim estiveram alguns minutos, findos os quais começaram a escavar a terra. E à maneira que escavavam, iam surgindo cal e areia. A palavra «milagre» começou a correr. Todos queriam ajudar, todos queriam trabalhar...
Depressa se construiu ali mesmo a capelinha de Santo António da Charneca, como então passaram a chamar-lhe, bem a propósito. E diz ainda a lenda antiga que também Don’Ana viu rapidamente realizado o seu sonho de amor, com um mensageiro d’El-Rei que na semana seguinte chegou ao solar de D. Aires de Saldanha...
Quanto ao fiel Macumba, liberto pelo amo, dedicou-se para sempre ao culto do seu Santinho protector.
Assim nasceu na Outra Banda do Tejo, em torno da capelinha encomendada ao escravo negro, a actual povoação de Santo António da Charneca!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 277-283
- Place of collection
- Caparica, ALMADA, SETÚBAL