APL 2775 Lenda de Para Mil Eu
Em redor, tudo significava Primavera. Moldura romântica de arvoredo, salpicada pelo gorgeio alegre dos pássaros. Descendo em direcção à ribeira, Mafalda parecia contente. No seu bonito rosto espalhava-se uma suave expressão de paz e candura que era quase contagiante. Ao vê-la passar, uma das mulheres da vila de Veiros teve um pequeno trejeito semelhante a um amuo. Uma sua vizinha, porém, apressou-se a esclarecer esse gesto vago.
— A senhora Josefa não queira mal à pequena por ela ter desprezado o seu filho. Não foi por vaidade, creia! Também enjeitou o meu rapaz e não fiquei a vê-la com piores olhos.
A senhora Josefa encolheu os ombros. O seu rosto continuava de expressão dura, que se prolongava no seu tom de voz.
— O que é que ela quer mais? Um fidalgo, não? Talvez o senhor Lourenço, com quem ela conversava às vezes antes de ele ir para a guerra com os Mouros...
— Tenha calma, mulher de Deus! A rapariga a modos que não quer casar. Leva o dia na igreja junto da imagem da Virgem do Pinhal. E fala-lhe, sabe? Fala-lhe como eu estou falando com vossemecê!
— Ora, cantigas do povo! Lá falar-lhe, até eu lhe falo também, quando estou aflita. Mas resposta... como dizem para aí...
— E é que recebe mesmo! O pai já me disse que tem medo que isso da filha dê em doença...
— Qual o quê! Já ouviu alguma resposta da Senhora?
— Eu não, mas... ela sabe muitas coisas... E não admira... Lembre-se que foi ela quem encontrou no pinhal, quando ainda era catraia, a imagem que está agora na ermida.
— Lá isso é verdade.
— Pois cá me parece que a Mafalda vai para um convento!
— Hum! Não a viu a falar com o senhor Lourenço como eu a vi! Toda ela ria... E ele também parecia interessado... Não tirava os olhos dela!
— Ora, não creio. Um fidalgo é um fidalgo! E aqui em Veiros... há poucos.
— Pois há. Mas existem rapazes sãos e trabalhadores como o meu filho e como o seu, capazes de a fazer feliz. Mas ela… nada!
— Demos tempo ao tempo! Se ela não os quis, por alguma razão foi.
— Pois será, senhora Catarina! Verá se não tenho razão…
Entretanto Mafalda continuava descendo, num passo alegre, saltitante. Ao chegar junto da casa, encontrou-se de súbito com o pai. Franzindo as sobrancelhas, num gesto muito seu, o homem indagou:
— Donde vens, rapariga?
Ela riu.
— Ora, já sabe vossemecê donde eu venho. Fui visitar a Senhora.
O aldeão suspirou fundo antes de voltar a falar.
— Olha, pequena… Entra, porque precisamos conversar.
Mafalda corou. O coração bateu-lhe apressado. Tentou disfarçar a sua emoção.
— Que modos tão sérios, meu pai!
Voltou o homem a suspirar.
— Faço de mãe e de pai, desde que o Senhor me levou a tua mãe, que Ele a tenha em descanso!
Pôs-se séria, a rapariga. Já não brincava nem tentava disfarçar.
— Fale, meu pai! Que aconteceu?
O homem ficou calado por um instante. Seus olhos fixavam-se na fortaleza de Veiros, que dominava tudo em redor. Ela insistiu:
— Aconteceu alguma desgraça? Não pode ser!
Olhou-a o pai, agora com mais interesse.
— Porque dizes que não pode ser?
Ela hesitou. Ele desafiou-a.
— Vamos, minha sabichona! Porque não pode ter acontecido desgraça?
Foi a vez de Mafalda suspirar. Olhou o pai com certa ansiedade. Porém a sua voz era firme.
— Acredite-me! Venho da Senhora... E Ela... Ela...
— Termina!
— Ela sorria para mim com tanta alegria… Não… não pode ter-lhe acontecido nenhum mal!
— Ter-lhe acontecido?... Mas a quem te referes?
Mafalda voltou a corar.
— Bem... Eu... referia-me… a alguém que está ausente e por quem peço todos os dias à Senhora do Pinhal que mo traga depressa e são!
O homem moveu a cabeça, num sinal de entendimento.
— Já sei! Então… sempre é verdade o que essa bisbilhoteira da Josefa anda a espalhar por aí?...
— Que diz ela, meu pai?
— Que tens desprezado todos os rapazes de Veiros e arredores porque pretendes casar com um fidalgo... o da beira de cima… o senhor Lourenço...
Mafalda baixou a cabeça. Só levantou os olhos quando ouviu o pai gritar:
— Então isso sempre é verdade?
A jovem atarantou-se.
— Por piedade, pai, não grite! Não quero que se aflija!
— Mas é verdade?
Baixo, a rapariga concordou:
— É verdade, meu pai.
Depois tomou novo alento.
— Se não fosse ele, já teria ido para um convento. Mas, ele ama-me e eu gosto tanto dele!... Se voltar, como penso, casará comigo... se o pai der licença, é claro!
Num passo pesado, o aldeão foi até à porta. Calado. Pensativo. A filha aproximou-se dele, tentando sorrir.
— Porque está vossemecê tão apoquentado? Ele deve vir já a caminho e casará comigo, acredite!
O pai encarou-a de novo, carregando as sobrancelhas e a voz.
— Como sabes isso, Mafalda?
Humilde, a rapariga respondeu:
— Foi a Senhora... Foi a Senhora que mo disse esta manhã... Pedi-lhe tanto... tanto!
A voz do homem soou mais carregada ainda.
— Quando acabarás de espalhar parvoíces dessa natureza?
Mafalda afligiu-se.
— Mas não são parvoíces, meu pai! Digo-lhe a verdade... A Senhora teve dó de mim e...
— Cala-te! Se fala contigo, porque não te disse da batalha que se perdeu aos Mouros, aqui bem perto, e da notícia da sua avançada para aqui?
A jovem empalideceu.
— Para aqui? Os Mouros vêm para aqui?...
— Sim, Mafalda! Eles vêm como nuvem negra! Aos milhares! Milhares de perros malditos, compreendes? E bem sabes como são poucos os homens de Veiros. Aí meia centena!
As mãos da jovem juntaram-se, trementes. A sua voz soou baixa, arrastada.
— Será possível? Será possível que isso aconteça e Ela não me tivesse dito nada? Porquê? Mas se ele vem...
— Ele, quem?
— Lourenço!
— Sim, talvez venha… para morrer onde nasceu. Porque morreremos todos, Mafalda, todos! Os Mouros são aos milhares!
Mafalda levou uma das mãos ao peito. Não porque o seu coração pulsasse demasiado forte. Pelo contrário: parecia bem lento o seu martelar. Mas porque intimamente dirigia uma prece ao Céu. De súbito correu para a porta, mas o pai reteve-a por um braço.
— Onde vais?
— Falar à Senhora!
— Fica onde estás! De hoje em diante acabaram-se as saídas! Dentro de pouco tempo todo o povo saberá que eles se aproximam. E o alvoroço vai ser grande.
— Meu pai...
— Fica em casa. Sou eu quem tem de sair! Mas não me demoro. Estamos vivendo, talvez, as nossas últimas horas. Mas ninguém arredará pé! Disso podem estar certos, esses malvados. Ninguém arredará pé! Até já.
Quase imperceptivelmente, Mafalda murmurou:
— Até já...
Depois deixou-se ficar junto da porta, olhando os campos que o Sol abraçava, cingindo lá adiante, no mesmo amplexo de ouro, a velha fortaleza de Veiros. No seu cérebro, agora um tanto confuso, passavam em procissão as imagens terríficas dos Mouros destruindo tudo em redor. Tão atormentada estava, que nem deu pela presença de alguém que se aproximava, sorrindo.
— Louvado seja Deus por voltar a ver-te!
Mafalda deu um grito. Grito de alegria. Seus olhos riam e choravam simultaneamente.
— Lourenço!... Lourenço, ainda bem que voltaste!
O rapaz abraçou-a. Depois fê-la recuar um pouco.
— Deixa-me contemplar-te bem. Estás tão bela como dantes! Nunca vi outra mulher igual!
Ela nem o ouvia, tão grande era a balbúrdia em que tinha o sei coração.
— Sabia que não deverias tardar! Esperava por ti!
Ele encarou-a, brincando.
— Feiticeira!... Quem te avisou?
— A minha Mãe do Céu. Quando hoje lhe falei em ti, Ela sorriu-me de uma forma especial. E pressenti que vinhas a caminho.
— Continuas com a mesma devoção à Senhora do Pinhal?
— Sim!
— Fazes bem! E o teu pai, onde está?
— Anda preocupado... Sabes...
Ele interrompeu-a.
— Ouve, meu amor. Antes que tratemos de outro qualquer assunto, quero que saibas que venho pedir a teu pai a tua mão. Já podes ser minha esposa. Trago comigo a licença do nosso rei!
Ela mordeu os lábios para não voltar a chorar. E murmurou:
— Foi isso!... A Senhora sabia... mas só quis dar-me felicidade! Eu sou feliz, Senhora… sou feliz!...
As lágrimas inundaram o rosto de Mafalda. Lourenço tomou-lhe uma das mãos.
— Então, meu amor, não chores! A Senhora do Pinhal há-de proteger-nos!
Sentia-se acarinhada e essa afeição aguçava-lhe a sensibilidade. Falou no assunto que tanto a preocupava e que tentara em vão transferir para outro momento. Olhou, de frente, o noivo. Queria ler nos seus olhos, mais do que na sua boca, a resposta à pergunta que lhe fez:
— Meu pai disse-me que os Mouros vêm aí. É verdade?
— É, sim, Mafalda.
— E ele diz que são muitos...
— Sim... São muitos.
Calaram-se ambos, como escutando o eco das suas próprias palavras. Olhavam o campo, sem ânimo para se fitarem entre si. Foi Mafalda quem cortou o silêncio, que começava a pesar.
— Que havemos de fazer?
Ele suspirou. A sua voz soou perdida no espaço acobreado pela luz sanguínea de um belo pôr de Sol.
— Que havemos de fazer? Só há um caminho. Nós, homens, tentaremos dar luta aos infiéis. Vós, mulheres, pedireis por nós a Deus enquanto combatemos.
Suspiro fundo de Mafalda. Abanava a cabeça sem nada dizer, olhando agora o chão, para não mostrar a mágoa estampada no seu rosto.
Tentando encorajá-la, Lourenço levantou com um dedo a linda cabeça de sua amada, obrigando-a a encará-lo.
— Então, Mafalda! Lembra-te que preciso da tua coragem! Não percamos estes momentos, que talvez sejam os últimos!
Ela mordeu os lábios, num desespero.
— Porque não haverá na terra uma alegria perfeita?
— Meu amor, a resposta é simples; não habitamos o Paraíso! Mas tenhamos ainda esperança. Temos à nossa frente, pelo menos, vinte e quatro horas!...
A nuvem de poeira levantada pelo exército sarraceno, que marchava surdamente, formava no horizonte uma espécie de neblina cinzenta. Para lá dessa neblina estendia-se um corpo de guerra composto por doze mil guerreiros, ébrios da vitória que sabiam fácil e desejosos de acamparem na velha fortaleza de Veiros. Mas, aquém dessa poeira que subia nos ares, entrando pelos olhos, pela boca, pelas narinas, trocavam-se abraços e beijos de despedida. Doze cavaleiros cristãos à frente de meia centena de aldeãos contra doze mil sarracenos! Era esse o quadro... era essa a perspectiva na véspera da luta!
Rolavam no chão as lágrimas das mulheres que ainda tinham forças para chorar. Ouviam-se os gritos das crianças e os lamentos desses chefes de família que sabiam de antemão que o sacrifício das suas vidas não seria o bastante para impedir o massacre dos seus entes mais queridos! E no céu sem nuvens, além da poeira cada vez mais densa que anunciava a proximidade do inimigo, um sol claro, quente, quase, castigador. Um sol bem próprio do nosso Alentejo!
Entre o doido vaivém das gentes que corriam, os doze cavaleiros cristãos tentavam impor a ordem, para receberem com dignidade a onda avassaladora do inimigo.
A ermida da Senhora do Pinhal estava repleta quando Mafalda entrou. Algumas mulheres repararam nela, no seu rosto lavado em lágrimas, no seu passo lento, como fantasma caminhando.
E então gritaram-lhe quase em coro:
— Pede à Senhora! Pede à Senhora que nos salve...
A jovem não respondeu. Talvez nem mesmo as tivesse ouvido, tão arredio estava o seu espírito. Escutava agora o alarido dos Mouros pisando a terra que a cristãos pertencia! E calculava o sangue dos fiéis que iria empapar essa mesma terra. Então, num desespero, Mafalda caiu de joelhos e balbuciou entre a algazarra que já se ouvia em volta:
— Senhora! Vós, que sempre tivestes a bondade de me atender… ouvi uma vez mais o que vos implora o meu coração! Não tenho forças para vos fazer um pedido. Mas bem sabeis o que me aflige neste momento e é o mesmo que põe tantos queixumes e palavras dc desespero nas bocas de todo este povo. Só um milagre poderá salvar-nos, bem sei! Embora não o mereçamos... dai-lhes forças a eles, aos nossos homens que vão combater os inimigos da Cruz!.. E salvai-nos, para que connosco se salve a nossa Fé!
O soluçar de Mafalda confundiu-se com o ensurdecedor barulho ambiente. Na igreja havia desmaios e gritos quase selvagens de mulheres e crianças, ao escutarem as vozes e o fragor do combate. A vozearia, no campo, era de facto enorme. Dera-se o encontro. E quando parecia que tudo ia ficar decidido aos primeiros golpes, com a derrota dos cristãos, surgiu, de súbito, no ponto mais alto do terreno, uma simples mulher, cuja voz melodiosa e serena teve o condão de ser ouvida em toda a planície. Fez-se como por encanto uma calmaria entre os combatentes. E a mulher de rosto e voz serena falou assim, desaparecendo em seguida:
— Avante, cristãos! Para cada mil mouros, um de vós! Sim… para cada mil... um!
Houve um momento de estupefacção. Então Lourenço, sentindo no peito nova chama de entusiasmo e vigor, gritou para os companheiros:
— Ouviram, senhores? Foi a Mãe do Céu quem nos falou! Por Deus ganharemos... mas teremos de sêr para cada mil um! E por mim... com a ajuda divina assim farei! Avante, pois! Para mil... eu!
E atirando-se para a frente do combate, Lourenço ia dizimando tudo na sua passagem. O mesmo faziam os outros cavaleiros cristãos. Caíam mortos os mouros, impotentes para resistirem a tal ímpeto. Muitos fugiam, sem perceberem por que razão os seus alfanges não feriam o inimigo. O desconcerto entre as hostes sarracenas breve começou a desenhar-se, chegando ao caos. Bem pressentiam que algo de estranho se estava passando. Mas o que lhes acontecia enchia-os de pavor, pondo em debandada os que ainda restavam com vida. E, subindo nos ares, continuavam os gritos dos cristãos:
— Para mil… eu! Para mil eu!
Caía a tarde num vagar sonolento. O campo coberto de cadáveres mostrava o quadro desolador da morte. Mas na pequena e velha ermida da Senhora do Pinhal elevava-se um coro estranho de choros, bênçãos e hosanas. Os cristãos estavam Senhores da sua terra! Dessa terra morena e por vezes difícil, mas sua! E viviam! Viviam mercê de uma graça divina operada por intermédio da Virgem Maria — a Senhora de Milum ou Mileu, como agora lhe chamavam! E esse povo, cuja gratidão à Virgem ficou no seu sangue, foi transmitindo de geração em geração a graça que tiveram a honra de receber da própria Mãe de Deus!...
E ainda hoje, quando o Sol aparece no horizonte, tornando mais morena a terra alentejana, lá se vê a ermida da Senhora de Mileu, perpetuando a fé de um povo que, sabendo pedir, melhor sabe agradecer.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 89-95
- Place of collection
- Veiros, ESTREMOZ, ÉVORA