APL 1220 Festa do Espírito Santo na Mãe de Deus

Isto aconteceu comigo, mas vamos lá à história. Havia uma mulherzinha de Santo Antão que todos os anos fazia a festa do Espírito Santo na Mãe de Deus, logo que não houvesse promessas. Um ano tinha que fazer a festa, mas não tinha carne, nem pão, nem vinho. Faltavam já só oito dias e a tal mulherzinha chegou-se ao pé do tio António e disse:
 — A gente vai fazer este ano Império outra vez.
 O tio António respondeu logo:
 — Eh mulher, falta só uma semana, tu não tens nada. A gente o que é que vai fazer?! Só abrir a porta. Podemos fazer a coroação, mas lá comida não se dá. 
 Ela decidiu dar uma volta pela Vila a pedir esmolas e conseguiu arranjar sessenta mil reis e uma saca de farinha.
 Foi muito satisfeita para casa e, quando viu tio António, disse animada:
 — Nossa Senhora já me ajudou e há-de deparar mais.
 Na segunda-feira da semana da festa veio uma mulher da América que queria pagar uma promessa e, ao saber que Angelina não tinha carne para o Império, ficou muito contente e ofereceu logo uma vaca e ainda deu mais alguns mil reis que perfaziam a quantia prometida.
 Angelina não cabia em si de alegria, porque já tinha carne, pão, só lhe faltava vinho. E dizia confiante aos ajudantes e a tio António, que continuava receoso:
 — Nossa Senhora há-de deparar!
 Chegou por fim o sábado. Tinham que ir levar o Império e o cozinheiro disse em segredo:
 — Ó tio António, a gente vai encher um quinto de água e vamos carregar com o resto das coisas que é para o carro guinchar.
 — Não se faz isso, é enganar o povo. Amanhã não há vinho e toda a gente há-de perguntar o que fizemos com o que tava dentro do quinto. — disse tio António, cauteloso.
 Mas os outros ajudantes sempre encheram o quinto com água e lá levaram o Império para a copeira.
 No sábado, costumavam vir os senhores ricos beber o caldo à meia-noite. Vieram vários e um ricaço da Vila virou-se para tio António que era o braço direito de Angelina e disse-lhe:
 — Ó António, anda cá. Eu quero vinho pra beber c’o caldo.
 — O senhor, a gente não tem, mas há ali um frasquinho que é para porvir a mesa quando chega a Coroação, eu vou dar um pinguinho ao senhor. — disse tio António, querendo agradar ao outro.
 O senhor rico da Vila levantou-se para se ir embora e disse:
 — Oh, já não quero. — e saiu pela porta fora.
 O tempo foi passando. Os senhores beberam o caldo e saíram, mas os ajudantes e Angelina nunca se deitaram. Pela madrugada, passadas várias horas, o tal homem voltou a aparecer e disse:
 — Quero caldo!
 António chegou-se e disse:
 — O senhor foi-se, zangado, não bebeu, mas tem aqui com fartura. O outro perguntou:
 — E vinho pra botar no caldo?
 — Eu já disse ao senhor, há ali um frasquinho...
 — Não quero vinho de frascos. Vocês têm ali um quinto, vamos experimentá-lo.
 Dirigiu-se ao quinto. António não teimou e não teve tempo sequer de explicar o que se passava. O homem deu com uma acha no batoque e mandou tio António provar. Era mesmo vinho, saboroso como poucos.
 Alguns gritaram:
 — Foi milagre do Espírito Santo!
 A alegria foi geral e milagre foi porque a mulher, que uma semana antes não tinha nada para dar de comer no Império, acabou por ter abundância de sopas, carne e vinho, como em qualquer Império farto.
 

Source
FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias , Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.34-36
Place of collection
VILA DO PORTO, ILHA DE SANTA MARIA (AÇORES)
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography