APL 2739 Évora

Apesar de ser muito conhecida a sentença aqui proferida por D. Pedro I, julgo dever registal-a..
Havia n’aquelle tempo na Sé d’Evora um conego chamado D. Henrique da Silva, fidalgo de costumes devassos. Era aleijado de um pé, e mandou chamar o mestre sapateiro Affonso Annes, eucarregando-o de lhe fazer um par de sapatos, com recommendação que o do pé aleijado fosse feito de modo que lhe encobrisse o defeito. Trouxe o sapateiro os sapatos, mas como o do pé torto lhe não disfarçasse a tortura, vae-se ao triste sapateiro’e o mata a bordoadas.
(Outros dizem que o conego assassinou o sapateiro por este não consentir que aquelle lhe seduzisse a mulher.)
Foi isto tão publico que os parentes do tal fidalgo não poderam abafar completamente a justiça, que por um crime de assasssinio sem provocação, se contentou em prohibir o padre de assistir ao côro por espaço de um anno.
Tinha o sapateiro um filho, que era pedreiro, e que ainda era creança quando o pae foi assassinado; mas jurou vingar tão injusta morte. D’ahi a tres aunos, em um dia de Corpus Christi, matou o tal conego a punhaladas, publicamente na rua.
Mas o pobre rapaz não era conego nem fidalgo, pelo que foi preso e sentenceado a ser esquartejado vivo.
Estava então D. Pedro I em Évora, e tendo noticia d’esta sentença, admirou-se de tanta perversidade em tão pouca edade, pois o rapaz apenas tinha 18 annos. Mandou chamar o reu á sua presença, que desassombradamente confessou o crime e o nenhum arrependimento de o haver commettido. O rei ordenou-lhe que dissesse, qual era a razão de tamanho odio contra o padre, e o criminoso respondeu: «Se um malvado, abusando da sua gerarchia, assassinasse injustamente o pae de Vossa Alteza (os reis então só tinham alteza) não quereria vingar a morte do auctor de seus dias? D. Henrique sem a menor razão e só por maldade, assassinou meu pae. Minha mãe gastou com a justiça tudo quanto tinha e até agora tem soffrido a fome e a indigencia com todos os seus filhos (dos quaes eu sou o mais velho) e de tudo foi causa quem matou aquelle que pelo seu constante trabalho evitava á familia as privações.» «E que castigo teve D. Henrique?» disse o rei. «O de não hir ao côro um anno» respondeu o rapaz. «Por Deus, disse D. Pedro, que, se é como dizes, justiça se fará.»
Mandou logo alli averiguar o caso, e vendo que o rapaz em tudo fallava verdade, disse: «E certo que commetteste um crime de morte, e deves ser castigado; por isso te condemno a não fazeres sapatos até de hoje a um anno: vae em paz.» (Esta justissima sentença em nada prejudicava o rapaz, que não vivia de fazer sapatos, mas de construir paredes.)
Além d’isso condemnou os herdeiros do conego a restituirem á viuva todas as despezas que tinha feito com a querella, e a darem-lhe uma pensão annual sufficiente para as suas despezas.

Source
PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno , Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.Tomo III, p. 109
Place of collection
ÉVORA, ÉVORA
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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