APL 3040 Lenda de Nuno, o Gigante

Em Rubiães conta-se que, há muitos anos, esta povoação se chamava Ruivales, e nela vivia um grande senhor possuidor de quase todas as terras desse lugar. Fidalgo de carácter despótico, apaixonou-se por uma jovem ainda de sangue nobre mas sem fortuna. Chamava-se a jovem Maria Leonor e era de rara formosura. Apesar de o pai desta desejar o casamento com o fidalgo de Ruivales, Leonor amava outro fidalgo que era tão pobre como ela. Daí surgiu o drama, que deu origem à lenda que vou contar.
 
A chuva acabava de cair. Fora forte o aguaceiro, mas já o sol surgia quente, a acariciar a terra encharcada.
Refugiados numa pequena cabana onde havia meses os dois enamorados se encontravam, Leonor e D. Aires de Miranda continuavam abraçados, indiferentes ao sol que os viera despertar do sonho a que se entregavam quando o afrouxamento da vigilância lhes permitia aquela fuga.
Desta vez, a jovem tinha lágrimas nos olhos. Balbuciava quase:
— Não posso... não posso!
D. Aires afastou-a do peito. Havia energia no seu gesto e na sua voz.  
— Não podeis... porquê? É a única forma de impedir o vosso casamento com esse vilão!
Ela meneava a cabeça.
— Mas se lhe digo a verdade… ele mata-vos, e fico na mesma desonrada!
— Então casai com ele e deixai que o filho que de vós vai nascer, e é meu também, tome o nome desse déspota!
— Oh, isso não! Prefiro morrer!
— E convosco quereis matar um inocente que nada tem com a maldade dos homens?
Leonor voltou a soluçar. D. Aires acariciou-lhe os cabelos.
— Vamos, Leonor, tende coragem! Falai com ele hoje, a sós, quando vos visitar. Como o casamento está marcado para daqui a alguns dias, talvez ele vos deixe sair de Ruivales.
— Não creio. Ele é soberbo!
— Por isso mesmo não quererá como mulher quem está para ser mãe de um filho de outro homem!
— Mas ele mata-vos! Ele mata-vos!
— Se assim for... morrerei pronunciando o vosso nome!
Leonor voltou a chorar.
— Ah, se ao menos pudéssemos fugir!
— Bem o tentei, meu amor! Mas o estarmos aqui os dois, já considero um milagre! Esse homem tem guardas por todos os lados. Nem eu sozinho poderei sair dos seus domínios sem ser visto!
Leonor olhava fixamente o que era todo o amor da sua vida. D. Aires sorriu-lhe com tristeza e perguntou:
— Leonor, porque me olhais assim?
Ela mordeu os lábios antes de responder:
— Já pensaste no que seria de nós... se ele aceitasse casar comigo mesmo depois de saber a verdade?
D. Aires tornou-se duro.
— Não creio que vos aceite nessas condições!
— Mas se aceitar?
— Matá-lo-ei!
— Ou ele vos matará!
Fez-se silêncio. O sol continuava a iluminar a cabana abandonada. Leonor suspirou fundo. As suas mãos tremiam. Olhou, de novo, aquele que o seu coração escolhera para esposo e declarou com voz mal segura:
— Tenho o pressentimento que não nos tornaremos a ver!
Ele protestou. Mas Leonor continuou, agora mais firmemente:
— Se assim acontecer, acreditai que sempre vos amei mais do que à própria vida, e do mesmo modo amarei o filho que de vós vai nascer!
D. Aires mostrou-se impressionado.
— Falais como se eu fosse morrer!
— Talvez seja a sorte que nos aguarda!
Nesse mesmo momento, os guardas dos senhores de Ruivales surgiram. Eram seis. Dois deles tomaram conta da jovem e levaram-na num dos cavalos. Os outros quatro dispuseram-se a atacar D. Aires de Miranda, que os enfrentou com a energia do condenado. Conseguiu prostrar dois dos guardas, mas ficou ferido, e em breve os outros dois lhe causaram ferimentos de morte. Depois, pegaram no corpo, puseram-no sobre um cavalo, e foram levar a nova ao senhor de Ruivales.
O dia seguinte amanheceu pardacento. Leonor, já em casa de seus pais, olhava assustada sempre que alguém se aproximava dos seus aposentos. Passos pesados ouviram-se na antecâmara. O pai, a mãe e o senhor de Ruivales afastaram um pesado reposteiro e entraram. Leonor olhou-os atemorizada. O fidalgo poderoso sorriu-lhe e declarou:
— Senhora, venho comunicar-vos que hoje mesmo se realizará o nosso casamento.
Leonor sobressaltou-se. Olhou o pai, numa súplica. Mas este, tentando evitar qualquer manifestação desagradável, ajuntou:
— Está tudo combinado.
Uma revolta íntima deu forças a Leonor para comentar com altivez, fitando o seu pretendente:
— Talvez não seja tudo tão certo como imaginais.
Ele surpreendeu-se desta súbita energia.
— Que dizeis?
— Que preciso falar convosco agora e a sós.
Os pais olharam-se aturdidos. Ela acentuou:
— Compreendeis? Preciso falar-vos a sós!
Surpreendidos, os pais de Leonor saíram, e o senhor de Ruivales, sempre sorrindo, aproximou-se de Leonor.
— Que me desejais dizer?
Leonor estava pálida. Tremia ligeiramente. Olhou-o bem nos olhos.
— Quero que saibais que vou ter um filho de D. Aires de Miranda.
O senhor de Ruivales tornou-se lívido.
— Pois atrevestes-vos a tanto?
Serenamente, ela respondeu:
— D. Aires é o esposo que meu coração escolheu!
Fora de si, o fidalgo gritou:
— Pois ficai sabendo que estais viúva! D. Aires morreu quando tentava fugir dos meus domínios!
Leonor deu um grito. Os pais acudiram. O fidalgo tentou serenar:
— Não se assustem. A pombinha acaba de saber da morte do seu companheiro.
Cobrindo o rosto com as mãos, Leonor fazia por sufocar o pranto que lhe oprimia o peito. O seu filho, antes de nascer, já estava órfão!... Mais valia que a ambos a morte viesse buscar! Mas, como resposta ao seu íntimo pensamento, ouviu do carrasco de D. Aires:
— Aprontai-vos. Dentro de poucas horas começará a grande cerimónia.
Leonor não respondeu logo. Sentia um desejo enorme de morrer. Olhando-a profundamente, o fidalgo despediu-se:
— Até breve, minha linda esposa!
 
Alguns meses passaram. Leonor, no palácio onde vivia, mais parecia prisioneira do que dona da casa. O fidalgo parecia ciumento do próprio ar que a mulher respirava.
Certa vez, já em vésperas de Leonor ser mãe, o marido perguntou-lhe:
— Conheceis, acaso, um tal Nuno, a quem chamam o Gigante?
Leonor abriu os olhos num espanto:
— Ele vive?
— Apareceu aqui há alguns dias e perguntou por vós.
Ela mordeu os lábios.
— Ele encontrou-me, certa vez, na estrada. E ia com meu pai. Atravessou-se-nos no caminho.
Colérico, o fidalgo perguntou:
— Não fostes assaltada pelo seu bando?
— Não.
Ele acrescentou com ironia:
— Talvez devido à vossa formosura...
— Nuno soube quem éramos e deixou-nos seguir em paz. Só assalta os déspotas e os egoístas!
— E achais bem?
Ela iludiu a resposta:
— Julguei que estivesse preso... ou morto.
— Pois está vivo, e bem vivo! Roubou-me todo o ouro que levava e teve o arrojo de dizer que viria aqui qualquer dia cumprimentar-vos!
Leonor baixou o olhar. Não desejava ter conversas com o esposo a quem não amava. Vendo-a silenciosa, o fidalgo retirou-se, resmungando:
— Sei no que pensais! Nuno, o Gigante, bem poderia ter feito mais do que um simples roubo, ao encontrar-me. A minha vida não vos interessa!
Leonor fechou os olhos. Estava cansada, não de trabalho, mas de sofrer em silêncio. Dentro de si, seu filho dera sinal de existência. Os seus olhos marejaram-se de lágrimas, que venceram a resistência das pálpebras fechadas, molhando-lhe o rosto pálido mas sempre belo.
 
O vento zunia como indignado com o procedimento do fidalgo de Ruivales. Zurzia, impiedoso, o grande senhor que ia montado no seu belo cavalo, levando consigo a mulher e uma criança com pouco mais de um mês.
Leonor deixava que o vento uivasse. Sabia-lhe bem esse grito selvagem. Também ela já gritara assim, quando o marido a obrigara a partir com ele. Sabia para o que ia. Aquela criança que era o filho do seu grande amor iria sofrer a ira e o ciúme do senhor de Ruivales. Ele o dissera. Na encruzilhada iria matá-lo à vista da mãe. Seria esse o castigo da sua culpa.
Leonor já não tinha lágrimas para chorar. Agarrada ao filho, queria morrer com ele. E a encruzilhada ali estava, com frondosas árvores, batidas pelo vento em fúria.
O fidalgo desceu e fez descer sua mulher. Arrancou-lhe o filho dos braços. Ela gritou:
— Miserável! Não o levarás sem me tirares primeiro a vida!
Ele riu.
— Tu viverás para espiares o teu sofrimento! Ele não! Seria o filho dos teus pretensos amores!
Leonor agarrou-se aos braços do marido. Agarrou-se desesperadamente, para impedir que ele matasse o que para ela era tudo nesse momento. Mas o fidalgo, dando-lhe um forte empurrão, atirou-a por terra. Nesse instante, porém, três homens avançaram por detrás das árvores. E um deles, muito alto e forte, gritou:
— Se tocas nesse menino, racho-te a cabeça ao meio!
O fidalgo exclamou, assombrado e medroso:
— Nuno, o Gigante!
— Sim, sou eu! E olha que faço o que prometo! Dá-me esse menino!
— É filho de minha mulher! Pertence-me!
— E é filho de um homem que eu estimava e tu mataste! Conheço a história toda. Toda a gente a conhece, embora dela receie falar. Dá-mo, e leva a mãe contigo! Contudo, se não a tratares bem, virei também buscá-la!
E tirando dos braços do fidalgo o recém-nascido, montou a cavalo e partiu com os companheiros.
Leonor ficou por terra, chorando. O seu menino havia escapado à morte, mas iria levar uma vida difícil, entregue a um homem de vida nada fácil.
Voltando a si da surpresa, o fidalgo de Ruivales levantou do chão a esposa, montou o cavalo e voltou para casa. Mas Leonor já não regressou aos seus aposentos. Enraivecido, o marido encerrou-a no subterrâneo de uma torre, onde mal chegava a luz do dia.

Mas conta ainda a lenda que, apesar do seu sofrimento, a pobre senhora durou muitos anos. Quinze anos depois destes acontecimentos, ela sentiu reboliço na escada de pedra que dava para a masmorra. Alguém gritou:
— Deve ser aqui!
Efectivamente, a porta abriu-se. Na sua frente, Nuno, o Gigante, olhava-a com piedade e surpresa.
— Senhora, como estais mudada!
E voltando-se para um jovem galantemente vestido:
— É esta a vossa mãe!
Leonor olhou o rapaz. Viu nele, distintamente, o rosto belo do seu bem-amado, morto havia dezasseis anos. Gritou:
— Filho! Meu querido filho!
Não teve forças para mais. A alegria fora demasiadamente forte e ela estava fraca. Desmaiou. Quando voltou a si viu-se na sua cama, rodeada de cuidados.
Espantada, Leonor, perguntou a medo:
— E... ele?
Nuno respondeu:
— D. Aires matou-o num duelo. Eu e os meus homens demos conta da guarnição desta casa.
Surpreendida, Leonor perguntou:
— D. Aires?
Nuno, o Gigante, sorriu benevolente.
— Senhora, foi o nome que pus a vosso filho. Não encontrei nenhum mais digno do que o usado pelo pai.
Leonor fechou os olhos. Suspirou fundo e disse baixinho:
— Apetece-me dormir! Pela primeira vez desde que o meu bem-amado morreu, sinto a paz no meu coração!
O jovem D. Aires inclinou-se e beijou os cabelos salpicados de branco da que fora a formosa Leonor. Ela sorriu com ternura. E há quanto tempo não sorria!
Nuno, o Gigante, afastou-se de mansinho. Mas já o jovem fidalgo corria para ele:
— Onde ides?
— Para o meu covil.
— Não, ficareis comigo! Tudo isto agora é meu, porque pertence a minha mãe. Preciso de alguém forte e experiente que me ajude. Preciso de homens que trabalhem a terra. Nuno, meu bom protector, tereis de ficar comigo, vós que me destes mestres e me destes o calor da amizade!
Nuno ficou um momento silencioso. Depois declarou:
— Está bem. Ficarei convosco até ser necessário, pois Nuno, o Gigante, não nasceu para viver em palácios!
— Mas nasceu para salvar os fracos e oprimidos! Ficai mais algum tempo. Peço-vos, em nome de meu pai!
— Assim seja!
E Nuno, o Gigante, ficou a ajudar o jovem D. Aires, agora senhor de Ruivales.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 315-320
Place of collection
Rubiães, PAREDES DE COURA, VIANA DO CASTELO
Narrative
When
13 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography