APL 689 Zara

I

 Dizem que houve outrora em Sintra um Mouro opulento, a quem a fortuna sorria. O tempo ia bom para os Mouros. A terra, onde foi depois este Portugal, era bella e farta, as riquezas cresciam.
 Sintra subia na serra, como as cabras do monte se alcandoram sem medo no cimo dos rochedos. Cá em baixo, o palacio sumptuoso debruçava-se voluptuosamente nas aguas que, á sombra do arvoredo, correm cantando no musgo do leito, O castello, esse ia serra acima, alto, de pé, a velar como um soldado pela segurança da povoação.
 O Mouro Zadig era orgulhoso, e tinha pela sua fortuna e pelo seu poder ciumes ferozes de Mouro que era.
 De sua mulher, fallecida de mysteriosa doença a que, constava, não estaria alheio o caracter despotico de Zadig, tinha uma filha, linda como os amores, prendada com as melhores qualidades, que a varinha magica de uma fada podia dar-lhe ao nascer. Chamava-se Zara.
 Muitos e dos melhores rapazes de Sintra, a fina flôr da mocidade mourisca de todos os contornos, requestavam a filha de Zadig. Zara na verdade constituia um apetecido e justo partido. Mas nenhum motivo de desdem havia para Zadig, pois que os requestadores da filha eram os mais nobres e ricos moços de Sintra e vizinhanças. De todos, ella preferia um pretendente, aquelle que de entre todos mais se distinguia pelas maneiras polidas da sua educação e por estirpe de nascimento.
 O mouro Zadig, ciumento pela filha, como o era pela sua riqueza e o tivera sido pela mulher, oppunha-se ao casamento de Zara. Muitas vezes lhe declarára que não era por aquelle nem por outro qualquer, mas contra todos. Não lhe concederia a mão a quem quer que fosse.
 O namorado feliz, que Zara preferira, ia cantar-lhe ao luar, sob a janella do quarto de dormir, canções apaixonadas, onde deixava todo o seu amor. A maviosa melodia do canto baloiçava-se pela noite nas notas suaves do alaúde, que o namorado tocava a primor. Zara, de mansinho, erguia-se do leito, e vinha escutar a serenata.
 Zadig arrepellava-se com os amores da filha. Queria mostrar defeitos do moço; esforçava-se por descobrir algum, mas via-o de belo porte, rico, de familia nobre das mais nobres da Peninsula, intelligente, illustrado pelos melhores sabios arabes; como inventá-los, se os defeitos, que lhe queria attribuir, eram contrariados pelas finas qualidades, que todos viam, e ele não podia desmentir? Enfurecia-se Zadig, recusando-se a reconhecer a legitimidade dos amores de Zara. Por vontade sua, ele nunca seria capaz de conceder a qualquer pretendente a mão de Zara.
 Um dia o rapaz pediu em casamento a bella Zara. O pae não deu resposta immediata, promettendo-a para mais tarde. Mas o tempo ia correndo e Zadig não cumpria ou não achava que tivesse chegado a opportunidade de cumprir a sua promessa.
 Por um lado, a filha andava louca de amor pelo joven mouro; o pae irritava-se por isso, e tentava com violencias dissipar-lhe a paixão. Nada conseguia. Zara chorava perdidamente, e Zadig mais se enfurecia.
 O tempo é bom conselheiro. Zadig, vendo a inutilidade completa dos seus ralhos, concluiu que não dissuadiria a filha pela força, e resolveu-se a usar de habilidades, que a desviassem de aquelles amores.

*
 Zadig chamou o rapaz. Mal poderia este adivinhar o que lhe elle queria, o pae da sua namorada. Alegrou-se com o convite, e dispôs-se a ir a casa do opulentissimo homem. Todos os luxos eram poucos para se apresentar naquela casa, onde ia entrar em condições tam inesperadas como desconhecidas. Foi. E foi como um noivo, que vae ao altar em busca da noiva, que lá o espera e de lá trará comsigo.
 Tambem Zara não sabia o que o pae quereria do seu namorado. Recebeu-o elle cortêsmente. Por momentos se convenceu o rapaz de que nunca tivera havido opposição ao casamento.
 O Mouro contou-lhe o que pretendia. Dava-lhe a mão da filha, que tanto lhe queria, mas impunha condições.
 — Venham ellas! — exclamou com enthusiasmo o rapaz.
 — Foi um voto, que fiz a Allah, e de elle me quero desobrigar, — disse Zadig.
 — Pois dizei o vosso voto.
 Zadig explicou. As suas terras eram vastas. Ao longe, só as serras lhe cortavam o horizonte e serviam de barreira. Tinha olivaes, vinhedos, searas. Os fructos mais saborosos abundavam lá. Só fazia falta uma fonte. Não havia agua. A Oriente ficava a Fonte da Rosa. O desgosto do ricaço era grande.
 — Só concedo a mão de minha filha a quem, numa noite apenas, trouxer para a frente de minha casa a Fonte da Rosa. Serve-vos? — concluiu Zadig.
 — Serve. Farei tudo por merecer a mão de Zara.
 — Olhae que è difíicil! E attendei bem; tudo numa noite só; — fallava com cynismo refinado, aquelle malevolo Zadig.
 — E’ muito longe essa Fonte da Rosa ? — preguntou unicamente o moço.
 — Simplesmente, a umas quinze legoas, — respondeu Zadig.
 — Esforçar-me-hei por merecer o vosso favor.
 O moço, ao proferir as ultimas palavras, sahiu, deixando Zadig a esfregar as mãos de contente, nos intervallos de cofiar a negra barba em ponta. Os olhos luziam de alegria ao astuto velhaco, pois estava convencido da impossibilidade absoluta de o moço cumprir o que lhe proposera, e portanto era uma vez o casamento, promettido em taes condições.
 — Quinze legoas... uma fonte... em uma unica noite! Nem que fosse em quinze noites!... Pateta! De este me livrei eu; — assim monologava o mouro, passeando na sala nervosamente, como féra na jaula.

*

 Noite. Nos campos trilavam os grillos. Da sombra opaca da noite vinha o lamento sereno e suave dos sapos, cujo coaxar cae na calma da noite como gottas compassadas de uma fonte singular. As estrelas punham lantejoulas no veo translucido e leve do ceo.
 Zara deitára-se atormentada, passava as horas num sobressalto. Zadig dormia como um justo, que tivesse realizado mais uma obra de bondade; a alegria de se vêr livre do pretendente de sua filha, alliviou-lhe o espirito.
 Era alta madrugada, quando o somno é mais sossegado e os sonhos mais leves. O palacio de Zadig tremeu nos seus alicerces. Dir-se-hia que tinha havido terrivel terramoto ou que formidavel tormenta estalára com raios e coriscos sobre a linda villa de Sintra. Zadig acordou assustado. Mas, eis que o susto se desfaz, para dar em furia brava.
 Lá fóra no silencio profundo e frio da noite, ouviu a serenata de uma voz conhecida, que cantava trovas de amor. Podia lá ser! Apurou o ouvido. Aquella era a voz do pretendente, que elle supposera ter affastado. Era a mesma voz, que o irritava, e alli vinha cantar todas as noites debaixo do balcão do quarto de Zara.
 — Como! — preguntou a si mesmo o velho; — pois elle não foi cumprir as condições para o casamento se fazer?
 A trova do apaixonado era mais bela que de costume. E, — coisa singular! — esse cantar, que das outras noites o enfurecia, naquela invadia-o de um bem-estar indizivel e indecifravel. Quedou-se a ouvi-lo. Era um encanto. Como a voz soava melodiosa na noite grande, no silencio perfumado e erno da madrugada! Cantava o moço:

Ai! foi meu padre um bom Mouro.
Moura me deu de mammar.
Moura fadou-me um thesouro,
Moura tem de m’o entregar.
 
 Sentado no leito com docel de damasco, leito grande como um estrado, macio como floco de nuvem, Zadig escutava com os olhos humedecidos pela commoção. Quando a voz se deteve e o alaúde, em que se acompanhava, continuou a melodia amorosa, o mouro ergueu-se e correu para a janela.
 Fitou os olhos, penetrou as trevas a procurar o cantor. Sentia confusamente, sem se convencer do que lhe parecia sonho, o murmurio de aguas correntes. Depois de habituar os olhos á escuridão nocturna, recuou de espanto e de ira. Debaixo do balcão florido, onde Zara do seu quarto se debruçava sobre o jardim a escutar como sempre, àvidamente, a serenata do namorado, viu Zadig brilhar a agua de uma fonte abundante.
 Era a fonte desejada, ao mesmo tempo que aborrecida. Tinha Zadig de cumprir a sua promessa. Lá estava a fonte, e alli posta em uma unica noite. Subiu de furor o velho orgulhoso. Não podia supportar aquelle vexame.
 — O maroto ganhou, — dizia elle no auge da furia, levantando ao ar os punhos fechados. — Não ficará assim.

II

 Quando Zadig chamou ao seu palacio o moço enamorado de Zara, e lhe impôs como condição de casamento conseguir em uma só noite o transporte da Fonte da Rosa para as terras do mouro, o rapaz sahiu do palacio com a morte na alma.
 — Que vou eu fazer? — preguntou a si proprio. E ia scismando na impossibilidade de cumprir o que afinal de contas não via forma de realizar. Que elle em verdade nada promettera. Mas não foi já uma promessa a muda aceitação das condições do casamento, impostas por Zadig? Elle assim o considerava.
 Sentou-se lá para os Setiaes, numa pedra isolada, de onde via o panorama de presepio, que se avista do alto. As ondulações do terreno até o mar, os pinhaes, as casas brancas, espalhadas na vastidão da terra, davam-lhe naquella serenidade um isolamento de alma attribulada. Estava desterrado no meio de tudo. Chorou.
 Chorava angustiadamente, quando alguem lhe tocou de mansinho no ombro. Sentiu-se apoiado, como naufrago, que de repente encontra pé na agua, onde se afundava. Olhou, em procura de quem o ia arrancar d’aquella tristeza. Junto d’elle estava uma velha embiocada, cujas mãos tremiam ao fallar, de voz estranha, como que vinda de outro mundo.
 A sombra de um pinheiro da serra envolvia as duas personagens, no meio da soalheira quente. Chilreavam por alli os pardaes irrequietos.
 — Que tens, meu filho? — preguntou a velha ao rapaz, assentando-lhe as mãos ambas nos ombros, e fitando-o nos olhos com o seu olhar cansado de velha.
 Elle, sem se erguer, procurava qualquer lembrança antiga, que lhe vinha num vago reconhecer de pessoa vista algures.
 — Não me conheces, pois não? — disse meigamente a velhinha, percebendo que elle se não recordava de ella.
 Retardou elle a resposta, confuso de tal esquecimento, que o envergonhava. Ia levantar-se, para encarar melhor a desconhecida, mas não lh’o deixou ella, com as duas mãos nos dois ombros do rapaz, e quasi murmurando apenas, em um sorriso.
 — Pois não me conheces! Ha tanto me não viste, em verdade. Então não te lembras da tua madrinha?
 — Sim, sim, lembro. Agora lembro-me muito bem. Mas desde pequenino que te não via; como havia de lembrar-me e reconhecer-te logo? Agora sim.
 Ergueu-se então com um impulso, as lagrimas a bailarem-lhe nos olhos.
 — Assim é. Nunca mais precisaste de mim. Em pequeninos é que precisaes de um bom anjo da guarda. Depois, grandes, senhores de vossas acções, ricos, independentes, não quereis saber, nem precisaes de nós!
 — Não digas isso, madrinha. Nunca precisei tanto de ti, como depois de homem.
 — A proposito, já me ia passando. Porque choravas tu, ainda agora?
 — Sou infeliz, madrinha!
 — E porque não recorreste a mim, se eras infeliz e precisavas de mim?
 — Não me recordei, perdoa-me.
 — E’ que tu, meu filho, nunca mais te lembraste de mim. Senão chamar-me-hias, e eu vinha ajudar-te.
 — Confesso que nunca mais me lembrei. Ha tanto tempo que te não via, nem ouvi faltar em ti! Desde que em pequenino estive muito doente. Lembras-te?
 — Se me lembro!
   — E nunca mais nos vimos, madrinha! Perdoa-me, sim? Mas como havia de me lembrar de ti, se nunca mais quiseste saber de mim?
 — E’s ingrato, filho. Tanto me interesso por ti que me tens aqui. Vá dize-me por que és infeliz.
 Sentaram-se os dois na mesma pedra. O pinheiro guardava-os a ambos do sol, carinhosamente. Em frente estendia-se na successão indefinida dos montes a paisagem larga e linda, até o mar azul. Um melro poisou alli perto e veio imprimir á scena um ar de pastoral.

*

 A velha era madrinha do moço. Quando elle nasceu, os paes para que fosse um moço esbelto, feliz, intelligente, chamaram em auxilio a Fada Hortense, boa alma de velha, muito afamada pela sua bondade sem limites em todas as redondêsas de Sintra. A Fada accedeu ao convite dos paes.
 Tão abalados pela felicidade sem nome de serem paes do primeiro filho, elles queriam para elle toda a felicidade, toda a esperança, que uma boa estrella lhes trouxesse. E, ao chamarem a Fada Hortense, esperavam-na com alvoroço. Era um dia de Pascoa naquella casa de ricos. Chegou a velha. Amimou a creança e aceitou o pedido, que os paes lhe faziam para a proteger, tornando-a á sua conta; e diz a tradição que de madrinha serviu ella, com alegria dos paes e felicidade da creança.
 Pela conversa do rapaz e da velha se sabe já que elle nunca mais vira a madrinha, depois de certa enfermidade grave, de que ella o salvára. Encontrados agora e numa ocasião difficil para o rapaz, entraram na communhão de bondade e de esperança, que ella o queria proteger, e elle aguardava agora serenameute da madrinha a salvação.
 — Conta-me tudo, — pediu a velha, O rapaz contou-lhe a historia dos seus amores, perseguido e contrariado pela maldade de Zadig. Não lhe occultou nada. E por fim, chorando, ao ver mais uma vez a impossibilidade absoluta de levar a Fonte da Rosa para as terras do mouro, lastimou a sorte. Abraçou-o a madrinha, que lhe fallou de mansinho, como um murmurio do vento por entre os pinheiros.
 — Vês que nada succederia, se me procurasses? Nunca te lembraste de mim. Estás castigado, meu ingrato. — E animando-o, levantando-lhe a cabeça, e a fitá-lo bem, como a desvanecer-se naquella belleza adolescente de rapaz bem nado, e creado: — E’s um lindo moço! Não ficaste a dever nada á tua promessa de creança! Cresceste como o botão de rosa, desabrochaste, e a rosa ficou linda com a frescura de botão. Não chores, alegra-te. Zara será tua; vae-lhe cantar debaixo do balcão; está lá pela meia noite, e canta-lhe a mais linda serenata, que souberes.
 Apartaram-se. O moço enamorado ficou alegre como a alvorada de Maio florido. Não duvidou um momento da promessa da madrinha.

*

 Noite. Nos campos trilavam os grillos. Da sombra opaca da noite vinha o lamento sereno e suave dos sapos, cujo coaxar cae na calma da noite como gottas compassadas de uma fonte singular. As estrellas punham lantejoulas no veo translucido e leve do ceo.
 Era alta madrugada, quando o somno é mais sossegado e os sonhos mais leves, O palacio de Zadig tremeu nos seus alicerces. Zadig acordou assustado, e o susto se lhe desfaz em furia brava. Lá fora, no silencio profundo e frio da noite, ouviu a serenata de uma voz conhecida, que cantava trovas  de amor. Era a voz do pretendente de sua filha, aquelle que supposera ter affastado para sempre. A canção era tão bella, a voz tão pura, que elle se extasiou a ouvi-la; mas, quando ela se calou, elle enfurecido correu á janella. Viu Zara debruçada sobre o jardim, a escutar como sempre, àvidamente, a serenata do namorado.
 E — oh suprema ironia! — Zadig, apurando o ouvido desconfiado, percebeu lá em baixo, na sombra da noite, alegre e cantante, a Fonte da Rosa. Subiu de furor o velho orgulhoso. Não podia supportar aquelle vexame.
 — O maroto ganhou, — dizia-lhe no auge da furia, levantando ao ar os punhos fechados. — Não ficará assim, o patife!
 Sahiu do quarto a correr, tropeçando em tudo para se dirigir immediatamente ao quarto de Zara, Bateu á porta com pancadas fortes, gritando cá de fóra com uma voz de louco:
 — Zara. Abre.

III

 As fortes pancadas na porta e os gritos de Zadig assustaram Zara. Foi abrir, e teve de se desviar para lhe não bater a porta, que o pie impelliu deante de si num repelão brutal.
 Ficou-se a tremer de medo. Ao encarar com o pae, viu-o tão transtornado pelo rancor, tão enfurecido com ella, que recuou logo na frente de elle. Zadig entrára como um pae tyranno costuma entrar nas peças de theatro melodramatico.
 Em baixo, lá fóra, recomeçava a melodia de amor, na voz sonora do moço apaixonado de Zara. Ao fim do quintal, para o lado da Serra, corria o muro da divisoria pelas terras abaixo. De fóra do muro passava o caminho publico, talhado na rocha sobre um precipicio da Serra. Na esquina da casa de Zadig para esse caminho era o quarto de Zara; pela parede subia a mais vasta e graciosa trepadeira de rosas, que pode servir de colgadura a uma casa; naquella primavera azul e rosa, a trepadeira estava florida. Era debaixo do balcão de canto, aonde a trepadeira subia como um reposteiro, que o namorado de Zara ia cantar as suas trovas de sentido amor.
 La estava elle naquella noite escura.

Ai! foi meu padre um bom Mouro.
Moura me deu de mammar.
Moura fadou-me com thesouro.
Moura tem de m’o entregar.
 
 A sua voz era agora mais chorada. Vogava nella um sentimento de paixão triste, O alaúde, em que se acompanhava, tinha na sombra da noite lamentos de dor. No fundo do precipicio invizivel corria um ribeiro; a noite era tão só e tão silenciosa que se ouvira o marulhar da agua lá no fundo, a servir de harmonia ao canto magoado.
 Que contraste entre a scena, que se passa lá em cima no quarto de Zara, e a serenidade do cantor, cuja voz corria livremente como sol no ar!
 Zara continua a recuar deante do pae, ainda mais enfurecido por ouvir de novo a canção do namorado. Estava fóra de si, o velho. Os olhos muito abertos, a brilharem desmesuradamente, a boca escancarada, a passos lentos e largos de quem quer apanhar uma presa, de braços estendidos para ella, Zadig apparecia como um monstro aos olhos da filha. Viu-se perdida e convenceu-se de que o pae a estrangularia, se a conseguisse apanhar. O seu fito estava tomado, escapar-lhe-hia, custasse o que custasse. Recuava sempre.
 Pela janella entravam os perfumes dulcíssimos da natureza. Os pinheiros da serra cobriam-na de sombra. Havia no ar uma phosphorescencia azulada, que vinha do firmamento, estrellado e calmo.
 — Zara! — exclamou o pae; a voz d’elle, afogada na garganta, foi um assombro.
 A menina ia ser agarrada. Num impeto volta-se, affasta o corpo das mãos, que a vão prender e a procuram como duas tenazes; sustêm um pouco as saias, de modo que lhe não tolham o movimento, e corre para o balcão. Sem um grito, sem uma hesitação galga o peitoril e lança-se no espaço.
 O pae parou estarrecido pelo espanto, como pregado no chão. Em baixo cantava o moço.

Moura fadou-me um thesouro.

 Zara foi cahir sobre o namorado. E, com o impulso, os dois, num amplexo de noivado da morte, foram arrastados para o precipício, que se lhes abria aos pés, e rolaram pela penedia até o ribeiro fundo.
 Não morreram, di-lo a tradição. Quem ama, como elles amaram, tem a protecção de Deus. Allah misericordioso e justiceiro não os deixou morrer; encantou-os, e elles são dois eternos apaixonados; nas noites de luar, saem da morada, que tem sob as aguas do ribeiro, abraçados como dois noivos enternecidos, e cantam pelos campos, onde a lua faz inundações de luz. Cantam. Os echos trazem os pinhaes phrases de romances de amor.

Moura tem de m’o entregar.

 Zadig, esse que ficou inerte, como petrificado, vive com orgulho nos salões da sua casa opulenta. Ouvem-se-lhe os gritos de raiva, nas noites de tempestade; os gritos são como uivos, que apavoram quem os ouve. Mas não se lhe abate o orgulho.
 — Zadig, sou Zadig, o rico... Zadig, o poderoso... Zadig, o justiceiro… o Homem. Este é o Castello de Zadig, o grande.

Source
CHAVES, Luis Lendas de Portugal: Contos de Mouras Encantadas , Livraria Universal, 1924 , p.98-115
Place of collection
SINTRA, LISBOA
Narrative
When
20 Century, 20s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography