APL 904 A mata do mouro
Havia, perto de Chaves, uma herdade conhecida pelo nome de Quinta do Corianho, assim chamada porque, segundo alguns, aparecia lá o Diabo, que, além de muitos outros, tem também este nome.
E, dentro dessa quinta, havia uma frondosa mata a que o povo deu o nome de Mata do Mouro, porque nela aparecia, também à noite, um vulto misterioso, com um manto comprido, de cor branca, sobre os ombros, e um pano, em forma de turbante, da mesma cor, em volta da cabeça. A mata, muito escura, por causa do espesso arvoredo, e povoada de cobras, lagartos, mochos e corujas, tinha um ar sinistro que metia muito respeitinho ao maior pimpão.
Por esse motivo, todos evitavam passar lá de noite. E, quando tinham de o fazer, faziam-no à pressa e com o credo na boca. Benziam-se à entrada e só respiravam quando de lá saíam. Várias pessoas que por lá tinham passado afirmavam a pé junto terem visto o Mouro que as seguia, calado, até à saída da mata. Pela maneira de vestir, era, sem sombra de dúvidas, um homem das Arábias que se perdeu e ali ficou a guardar ciosamente aquela mata como se fosse sua propriedade.
Mas nem todos acreditavam no seu relato que atribuíam a alucinações provocadas pelo medo. Desse número faziam parte duas mulheres da aldeia, de pêlo na venta, que troçavam dos homens, chamando-lhes medricas, e diziam que gostariam de ver o tal mouro em carne e osso.
Dispostas a metê-los a ridículo, combinaram ir à mata mal amada desafiar o Mouro. Deixaram adormecer os maridos e os filhos e dirigiram-se para lá, à meia-noite, a hora das bruxas e dos lobisomens.
Quando lá chegaram, começaram a dizer, em voz alta:
- Ó Mouro, aparece. Ó Mouro, aparece.
Como não aparecia ninguém, deram uma sonora gargalhada e exclamaram galhofeiramente:
- Os homens pensam que são mais fortes e não passam duns covardes.
Sempre a andar, com ares de triunfo, repetiam o desafio:
- Ó Mouro, aparece. Ó Mouro, aparece.
Então, subitamente, apareceu um passarolo muito feio que começou a saltar de ramo em ramo, à sua volta. A princípio, não lhe deram importância, julgando tratar-se de mocho ou coruja, aves que por lá havia em abundância. Mas, depois, notando que a estranha ave as seguia, esvoaçando de ramo em ramo, sempre ao seu redor, começaram a sentir calafrios na espinha e os cabelos a erguer-se na cabeça.
Agora, caladas, estugaram o passo, para se verem livres daquele pássaro agoirento, mas em vão: ele não as largava. Se elas paravam, ele parava. Se elas corriam, ele corria.
E foi mesmo a correr que saíram daquele lugar ensombrado, maldizendo o Mouro que em má hora ousaram enfrentar e desafiar.
Quando ficaram para trás as últimas árvores e deixaram de ver o pássaro maldito, respiraram de alívio, julgando que tinha finalmente acabado aquele pesadelo infernal, mas enganaram-se.
Olhando para o Rio Tâmega, que dormia tranquilamente no seu leito, deram com os olhos numa figura humana, a pescar no outro lado do rio, exactamente igual à que os homens da aldeia diziam ter visto na mata: o mesmo manto e o mesmo turbante.
Surpreendidas com o que viam e ainda mal refeitas do susto que tinham apanhado, deram uns passos, tornaram a olhar e tiveram uma surpresa ainda maior: o vulto branco agora estava do lado de cá do rio, não a pescar, mas a lavar roupa!
Não havia dúvida. Era o Mouro que elas desafiaram e que agora lhes aparecia em carne e osso. Antes que ele se aproximasse mais e lhes fizesse pagar caro o seu atrevimento, desataram a fugir, numa correria doida, e só pararam quando se viram em casa, com a porta bem trancada.
No dia seguinte, envergonhadas, contaram às vizinhas o que lhes tinha acontecido e confirmaram o que se dizia à boca cheia: o Diabo, em forma de pássaro, e o Mouro, em forma humana, apareciam mesmo na quinta e na mata.
Por essa razão, puseram à herdade o nome de Quinta do Corianho e à mata o de Mata do Mouro, nomes que a lenda perpetuou e ainda perduram na memória dos flavienses.
- Source
- FERREIRA, Joaquim Alves Lendas e Contos Infantis , Edição do Autor, 1999 , p.31-33
- Place of collection
- CHAVES, VILA REAL