APL 1633 O galgo preto
A Margarida teve um criado, bom homem e nada imbecil, que morreu certamente de susto, ou antes de influxo dum susto incurável.
Dormia ele numa barra, quando uma noite, à meia-noite — fazia luar — ele viu um grande galgo negro que estava perto dele e o fitava teimosamente. Enxotou-o primeiro, mas o galgo nem se mexeu. Pegou num pau, e bateu-lhe, mas o pau não deu em nada. Apoderou-se dele tal susto, que fugiu da barra, indo dormir para casa dum vizinho. Daí por diante era rara a noite, que lhe não viesse uma alucinação. Era quase sempre pouco depois da Trindade — à hora da ceia dos lavradores. Às vezes estava a comer muito sossegadamente, quando estacava de repente: “Lá está ele a chamar-me”. Levantava-se, saía pela porta fora, e andava por lá uma e mais horas, atrás do galgo preto, dizendo que lhe tinha batido e tornado a bater, mas sempre sem dar em nada, e que lhe era impossível resistir à tentação de o perseguir sempre que sentia que ele passava perto da casa (entre a casa e a poça próxima à casa da Telhada). Muitas vezes foi seguido por alguns curiosos, que declaravam não ter visto coisa nenhuma, nem ver jeitos de que o maníaco batesse em nada, nem mesmo fizesse menção de bater.
O João da Telhada quis tirar-lhe a mania da cabeça e pediu-lhe que lhe mostrasse o galgo preto; porque se ele aparecesse, levaria uma chumbada, que sempre havia de dar em alguma coisa. O homem respondeu que lho mostraria. Ambos se meteram no quarto com a janela aberta, e o João com a espingarda aperrada. A certa hora, o homem disse: “Ele aí está.” O João viu um vulto preto como o dum enorme galgo, que pousava as patas na janela e quase caiu com medo, desfechando-se-lhe a espingarda.
Parece que mais tarde se envergonhou do medo que teve e da sombra que dizia ter visto, pois que protestou tirar a mania ao homem, mostrando-lhe que o galgo pertencia a um carniceiro das Caldas, que tinha de facto um galgo preto. Veio o galgo à mostra; mas o criado declarou que o galgo que via era muito magro, mas muito maior.
Ao cair da noite, já com luz, a Margarida foi nestes tempos ajudar ao moinho que ficava defronte a encher um fole a uma rapariga, que se não entendia com a moenda. Estava ela a levantar-lhe o fole para a rapariga o pôr na cabeça, quando de repente largou tudo e soltou um grito, por ver entre a luz e a parede (paredes fronteiras à porta do moinho) Iam pejar (sic) uma grande sombra que encheu todo o moinho e chegou a escurecer a luz. A rapariga viu o mesmo e ela e a Margarida fugiram para casa. O homem soube do caso e disse que na ocasião em que se viu a sombra no moinho passara o seu galgo.
O homem viveu uns três anos neste estado.
- Source
- SARMENTO, Francisco Martins Antígua, Tradições e Contos Populares , Sociedade Martins Sarmento, 1998 , p.120-121
- Place of collection
- GUIMARÃES, BRAGA