APL 1679 E a entrada dos espíritos nos «corpos abertos?
«O Manuel Luís falava para a filha da Tia Russa, que tinha morrido há meses. Estando à hora do meio-dia a conversar no portão da casa onde morava a rapariga, que era na casa da Tia Ana Chapuz, caiu redondo. Acudiram-lhe, e, passada meia hora, voltou a si. No dia seguinte, à mesma hora, caiu outra vez sem sentidos. Então, desconfiando-se que fosse espírito, uma mulher animosa puxou por ele: “Quem és? O que queres? Fala!” E o espírito falou: “Sou a Russa. Diz a meu homem que devo uma romaria à Senhora do Alívio e que não sossego sem que ele a cumpra.” Os presentes foram ter com o homem, que era o Tio Sencadas, já então casado com a segunda mulher a Tia Vasquês, e contaram-lhe tudo, mas ele não acreditou. Levaram-lhe lá, em vista disso, o rapaz, e o espírito falou de novo: “Sou eu! Vai fazer a romaria e eu lá te aparecerei tal qual fui deste mundo.” Foi toda a família e o rapaz fazerem a romaria à Senhora do Alívio, e quando estavam no Mosteiro, o rapaz gritou, deitando-se ao chão. “Ela aí vem!” E então o homem reconheceu-a, vestida com o hábito da Senhora do Carmo, tal qual tinha ido a enterrar, dizendo-lhe ela: “Quando saíres daqui verás uma pomba branca; despede-te, então, de mim para sempre!” E, de facto, viram a pomba branca a voar, a voar, até desaparecer.»
«Um rapaz passava na praia e recebeu uma bofetada. Olhou para trás e não viu ninguém. Ao meio-dia caiu sem sentidos, acordando meia hora depois. As Trindades, voltou a cair e no dia seguinte, àquelas horas, deu-se o mesmo. Levaram-no à Vila a uma mulher de virtude, que o forçou a falar: “Sou o António, que morreu no barco S. José. Devo um sermão ao Senhor da Agonia de quando me virei com meu pai e morreram o Migas e o Paroleiro e eu escapei. E uma promessa de uma missa ao Santíssimo. As minhas filhas que as cumpram para eu sossegar.” Não falou mais. Procuraram saber quem era este António e foram de indagação em indagação, até que souberam que era o António Vilão, filho do Tio Chasco e que eram certas as suas palavras. A família fez-lhe a vontade, dando o sermão e fazendo a promessa e o rapaz sossegou.»
«No dia de Páscoa, a Tia Margarida caiu sem sentidos ao meio-dia. Acudiram-lhe as filhas e começaram a perguntar-lhe: “Que tens? Que tens?” E então ouviram uma voz, parecida com a do pai, que tinha morrido há meses: “Não posso sossegar! O vosso irmão roga-me pragas por julgar que eu o prejudiquei na divisão dos barcos! Quero-me perdoar com ele!” As filhas foram a correr buscar o irmão, que disse ao espírito:
“E verdade eu rogar pragas, mas não quero que o meu pai sofra. Perdoe-me como eu lhe perdoo-o!” E o espírito respondeu: “Vou sossegado; ficai em paz!” E a Tia Margarida veio a si, completamente boa, não sabendo do que se tinha passado, nunca mais lhe sucedendo nada.»
«A filha do Manco do abade entrou-lhe no corpo o espírito do avô. Começou por dar-lhe uns ataques, procurando esganar a viúva daquele, mas como o não podia fazer, contorcia-se toda. A Tia Paroleira, que sabia lidar muito com os espíritos e acompanhava as padecentes ao Amparo, foi chamada e perguntou-lhe o que é que queria. A moça então virava-se para a avó e dizia: “Ela bem sabe: eu prometi, quando me virei na barra, uma vela do meu tamanho e uma moeda de oiro à Senhora do Alívio e essa promessa não se cumpriu.” E a Tia Paroleira interrogou-o: “E se cumprir, tu sossegas?” E o espírito respondeu: ‘‘Se vós a cumprirdes, sossego: fico em paz.” Levou-se a moça à capela do Amparo, entregou-se a promessa para a Senhora do Alívio, o padre fez os exorcismos e o espírito abandonou definitivamente a moça.»
- Source
- GRAÇA, A. Santos O Poveiro , Publicações Dom Quixote, 1998 [1932] , p.81-82
- Place of collection
- Póvoa De Varzim, PÓVOA DE VARZIM, PORTO