APL 1676 E as abentesmas e coisas ruins?

«Tínhamos arribado a Viana e varamos o barco junto ao castelo. Da companha, fiquei eu e o Tio José da Esperança a guardar o barco. Como estava frio, virámo-lo um pouco contra o vento para nos agasalharmos melhor. O Tio José da Esperança ficou com um bicheiro para se defender contra qualquer bicho que aparecesse. Encostei-me a ele para sofrer menos frio. Alta noite, vimos dois grandes olhos em fogo, na areia, encaminharem-se para nós. Eu tremia todo, pondo-se-me os cabelos em pé! O Tio José da Esperança pôs-se logo em defesa. A coisa ruim avançou até nós. Tinha a configuração de um gato, mas do tamanho de um cão, muito negro. O rabo era grande e grosso e procurava enroscar-se em mim. O Tio Esperança cobria-me com o corpo e dizia-lhe: “Não te metas com o rapaz”, e defendia-se com o bicheiro, mas sem nunca lhe poder tocar. A coisa ruim não fazia caso e só procurava rodear-me. Eu aconchegava-me, estarrecido, contra as cavernas, chegando a magoar-me. O Tio Esperança repetia sempre: “Mete-te comigo, que sou velho. Se queres fazer mal, faz-me a mim, mas deixa o rapaz”, e procurava com o bicheiro arrumá-lo, sem o conseguir. Eu fechei os olhos para não ver mais. Só sentia o meu companheiro às lidas com o monstro. Lidaram mais de uma hora. Por fim, senti como um bufo e repelão de vento e a seguir o Tio Esperança dizer-me: “Lá se foi o Diabo!” Quando chegou o mestre Ladinho e os nossos companheiros, eu estava doente, quase sem poder falar. Levaram-me a uma farmácia e durante quinze dias bebi “espírito da vida” para matar o susto. E o Tio Esperança, que se fazia forte para me dar ânimo, não sofreu menos susto.»
 «A Tia Àntónia do Amparo, que era parteira, foi chamada para a Vila Velha. Ao chegar à cangosta de S. Carlos viu aquela sombra crescer, crescer, a querer tragá-la. Ela ia de rosário na mão, a rezar a coroa de Nossa Senhora. Pegou no rosário e fez contra a sombra com ele três cruzes e disse três vezes: “Alto! Coração de Jesus está comigo!” Aquilo deu um estoiro e desapareceu.»
 «Havia muita falta de água. Eu e a minha prima Rosa aproveitámos a noite para enchermos as pias e a caldeira da casca. Viemos encher os cântaros ao cano do Passeio Alegre. Ao chegarmos à cangosta que vai da Rua do Norte para ali, apareceu-nos um porco. A minha prima virou-se para mim e disse: “Olha Ana, um porco a esta hora!” E eu respondi-lhe: “Não olhes! Anda para diante!” E seguimos sufocadinhas. Enchemos os cântaros e voltamos a casa pelo Ramalhão, mas de novo nos apareceu o porco a roncar. Eu disse alto: “Abrenúncio! Santo nome de Jesus!” Mas a minha prima parou, assustada, e o porco foi às saias dela com a boca e começou a traçalhar que eu dei em gritar, convencida que ele a comia. Por fim, deixou-a. Fui ver: nem uma beliscadura nas saias, nem nada! A pobre rapariga é que lhe tinha caído, de medo, o sangue na arca.»
 «O João Ribeiro, filho da Fangueira, deteve-se até tarde a conversar com a namorada que morava junto à Lapa. Quando deu pela hora, o relógio da igreja bateu meia-noite. A caminho de casa, quando chegou ao largo, apareceu-lhe um gato preto. Ele abaixou-se a uma pedra e atirou-lha. O gato fugiu. Dá mais uns passos e ao chegar à ponte do regato de Trás-os-Quintais, volta a aparecer-lhe o gato! Andou a diante, dobrou o canto da rua e no muro a seguir aparece-lhe novamente o gato! Resolve entrar pelo lado da rua e quando chega à porta, encontra o gato na soleira! Transido de susto, bate à porta e, mal a mãe a abriu, ele caiu redondo no meio da casa, sem dar acordo de si. Toda a família lhe acode, grita aflita, e presta-lhe socorro, conseguindo reanimá-lo. Verificou-se então que um espelho que tinha no bolso se quebrou em milhões de bocadinhos! Foi o que o salvou de ficar tolhido ou morto.»

Source
GRAÇA, A. Santos O Poveiro , Publicações Dom Quixote, 1998 [1932] , p.78-79
Place of collection
Póvoa De Varzim, PÓVOA DE VARZIM, PORTO
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography