APL 1235 As canas da Índia e os buxeiros
Havia, em S. Maria, um homem casado que tinha um barco e vivia com algum desafogo por ser muito assorteado e apanhar sempre grande quantidade de peixe, que vendia ou trocava por outros produtos.
Contudo, sem mais nem menos, a partir de certa altura, as pescas começaram a ser muito fracas e o pão em casa começou a ser escasso, ficando a família a viver mais pobremente. Muitas pessoas afirmavam que o barco estava enfeitiçado e que as bruxas corriam mundo nele durante a noite.
O homem não acreditava no que lhe diziam, mas estranhava que todos os dias, ao amanhecer, quando se aproximava do barco mais outros pescadores para o lançarem à água, ele estivesse sempre molhado, embora o tivessem varado há mais de doze horas, tempo suficiente para secar.
A mulher, já quase desesperada com a situação familiar, acreditou na história de feiticeiras e tanto teimou com o marido que ele acabou por aceder a ir vigiar o barco.
Numa noite de sábado, escura como breu, o pescador dirigiu-se para o areal do Calhau do Peixe onde o barco estava varado e escondeu-se muito bem debaixo do leito de popa.
Passou algum tempo naquela posição incómoda, até que por volta da meia noite, quando os galos começavam á cantar e o homem já dormitava, ouviu um estranho barulho. Com todo o cuidado, espreitou por um buraquinho e viu quatro mulheres, cobertas de túnicas muito alvas, que sem qualquer custo lançaram o barco à água, saltando para dentro dele com agilidade e leveza.
Já lá dentro, uma das mulheres disse em tom imperativo: “Larga com quatro!”, mas o barco não se moveu do lugar, apenas deu um grande solavanco.
Então as feiticeiras olharam desconfiadas e disseram: “Larga com cinco!”.
O barco obedeceu de imediato à ordem das feiticeiras, estremeceu, estralou com força e, em vez de navegar, parecia voar sobre o mar. Passados poucos instantes, o barco estava em terra, varado, tombado sobre uma das bordas, obedecendo à ordem “vare!” pronunciado pela mais velha das feiticeiras.
O pescador, estonteado, ouviu as mulheres saltarem em terra e, depois de ficar um bocado à escuta e à espreita, apercebeu-se que estava só e saiu do esconderijo.
A medo, desceu do barco e, como já era dia ali, viu que estava numa terra desconhecida, mas linda, onde um grande canavial baloiçava ao vento e uns arbustos rasteiros perfumavam o ar.
Lembrou-se que tinha de arranjar alguma coisa para provar à mulher e aos vizinhos a viagem estranha e longa que tinha feito em tão pouco tempo. Resolveu arrancar dois ou três caniços e uns galhos das outras plantas que não conhecia na sua terra, o buxeiro.
Voltou ao barco e escondeu-se muito bem, assim como as pequenas canas e os ramos de buxo, no espaço apertado do leito de popa. Pouco depois, as feiticeiras regressaram, deram ao barco ordem de partida para a rápida viagem, perto das duas da manhã, estavam de novo em Santa Maria. As mulheres saltaram em terra, correram até desaparecerem na praia e o homem pôde, por fim, deixar o barco e voltar para casa, levando os caniços e os galhos de buxo que mostrou à mulher para que o acreditasse.
Assim se conseguiu descobrir a razão das más pescas que o pescador tinha começado a fazer. Também assim vieram parar a Santa Maria as canas da India, que há aí por todo o lado e que são usadas para pescar, e os pés de buxo, que são usados, principalmente, para fazer lindas divisórias de canteiros e jardins.
- Source
- FURTADO-BRUM, Ângela Açores: Lendas e outras histórias , Ribeiro & Caravana editores, 1999 , p.53-55
- Place of collection
- VILA DO PORTO, ILHA DE SANTA MARIA (AÇORES)