APL 2834 Lenda das Amendoeiras em Flor

E tal como ontem… como hoje... como amanhã… a brisa da vida que passa levará o eco da mesma voz, a repetir sempre e sempre o amoroso começo das histórias que o povo guarda no seu coração: Era uma vez...
 
Pois era uma vez, há muitos e muitos séculos, antes de Portugal ter nascido para a história do mundo… Então, ainda o Al-Gharb pertencia completamente aos Árabes ou Mouros (como nós lhe chamamos, por terem vindo da Mauritânia) e possuía a sua zona de maior importância na região de Al-Faghar, cuja capital era a sumptuosa e remota Chelb, a cidade de Silves
 
Reinava, com toda a fama da sua valentia e com a força do seu poderio, o famoso Ibne-Almundim, guerreiro protegido excepcionalmente por Alá, porque nunca conhecera a derrota. Era muito novo, sim, mas já o consideravam, e com toda a razão, o mais temido dos reis mouros do seu tempo. O mais temido e o mais destemido de todos eles!
Ora, aconteceu um dia que, entre os prisioneiros de uma terrível batalha, surgiu uma linda princesa, muito loira, de olhos azuis e de porte altivo. Um tipo de beleza que, na verdade, o rei mouro nunca vira até então.
E logo mandou que a trouxessem à sua presença.
— Como vos chamais?
Ela olhou-o serenamente. E serenamente respondeu:
Gilda, Senhor. O meu nome é Gilda.
Foi a vez dele sorrir. Um sorriso confuso.
— Gilda? Que nome estranho!...
Depois, num repente, inclinou-se para ela.
— Melhor é que vos chame apenas «a bela Princesa do Norte»… Gostais?
Gilda limitou-se a retorquir, num leve encolher de ombros.
— Sou vossa prisioneira, Senhor…
Fez uma breve pausa e rematou, entre dois suspiros:
— Vossa prisioneira… e vossa escrava.
Mas ele ergueu-se e exclamou com voz emocionada:
— Enganais-vos!... A partir deste instante, sois livre… inteiramente livre!
E abarcando com o olhar e com a voz todos os outros que o rodeavam, ajuntou em tom forte e autoritário, para que o escutassem bem:
— Libertem-na!... Que ninguém se atreva a tocar-lhe!... Ela poderá ir para onde quiser e fazer tudo quanto lhe apeteça! Ouviram?... Compreenderam?... Espero que sim!
Depois, num gesto de galanteria, voltou-se para Gilda e disse, já com voz branda:
— Senhora… Como vedes, não sois mais prisioneira nem escrava… Mas continuais a ser «a bela Princesa do Norte»!
Um sorriso bonito aflorou aos lábios de Gilda. Sorriso de gratidão e de simpatia. E também de confiança. Foi a sua resposta. A sua única resposta. E poderia ser melhor?...

E o certo é que esse rei, alegre e folgazão, valente e dominador, passou a andar taciturno, apreensivo, com largas crises de mau humor. Havia qualquer coisa nele que não era habitual. Andava obcecado por um pensarnento. Pensamento que ardia no seu íntimo e que o devorava lentamente, muito lentamente.
O rei mouro sentia o desejo, a necessidade de voltar a ver Gilda, de lhe falar, de a ouvir… E esse momento não se fez demorar muito…
 
Foi encontrá-la, preparando-se para voltar à sua terra.
Ele não escondeu a tristeza que o invadia.
— Sempre teimais em ir embora, bela Princesa do Norte?
Gilda voltou a sorrir o seu sorriso bonito. Bonito e meigo.
— Não é teima, Senhor. É unicamente a vontade de voltar à minha terra...
Ele aproximou-se mais.
— E é assim tão forte... tão grande, essa vontade… que não vos deixa ler nos meus olhos aquilo que os meus lábios não se atrevem a dizer?
Surpreendida (ou fingindo-se surpreendida), Gilda olhou de frente para o rei mouro. Olhar profundo, investigador.
— Como, Senhor?... Que dizeis?... Não vos compreendo...
Ibne-Almundim, o invencível rei mouro, corou como se fosse um simples garoto enamorado. E a sua voz tremeu.
— Pena tenho que assim suceda... Mas a verdade é que deveis possuir alguma coisa de magia... Mesmo longe de mim vos tenho sentido perto, Gilda!
Ambos suspiraram. Depois ele perguntou vagarosamente.
— Ouvistes como eu disse agora o vosso nome... Gilda?
E ela ruborizou-se também, e a sua voz tremeu.
— Pareceu-me tão doce, que quase não o conheci...
O rei mouro ganhou de súbito novos entusiasmos. As suas mãos prenderam as mãos de Gilda.
— E quereis saber porquê?... Disse o vosso nome mais com o coração do que com os lábios!
Um murmúrio saiu dos lábios de Gilda:
— Senhor...
Mas já ele, revigorado pela esperança, deixava que a febre do amor se apossasse da sua voz e dos seus gestos.
— Para quê disfarçar, Gilda?... Eu não quero... eu não posso deixar-vos partir... Ficai, Gilda, ficai! Peço-vos! Vós sereis minha mulher!

E desde então se diz que se realizaram por tal motivo festas de um aparato invulgar. O casamento de lbne-Almundim, o jovem e poderoso rei mouro do Al-Faghar, com Gilda, a bela e cativante Princesa do Norte, atraiu gente de todos os lados. Chelb viveu horas extraordinárias de alegria e de prazer. Vieram preciosas oferendas. Vieram trovadores e músicos de terras distantes. Vieram bailarinas de corpos esculturais, que enfeitiçavam os olhares dos homens.
Tudo isso durou vários dias e várias noites, num crescendo de entusiasmo...

Foi precisamente no meio da festa do último dia, quando a alegria estava no auge, que o rei mouro deu pela falta de Gilda, a bela Princesa do Norte, que era já a sua esposa.
Ao primeiro momento de espanto seguiu-se uma crise violenta de fúria.
— Gilda! Gilda!... Onde está Gilda?
E como os outros o olhassem, sem responder, o rei mouro ordenou, num berro:
— Procurem-na, imbecis!... Descubram-na!... Ai de vós se não a encontrais, ai de vós!
Seguiu-se um tumulto enorme por todo o palácio. Apavorados com a ameaça do rei, os seus vassalos depressa deram com o paradeiro de Gilda, a bela Princesa do Norte...
Estava doente, quase morta, estirada no leito, ainda mais loura e pálida do que habitualmente e com os seus lindos olhos azuis inundados de lágrimas.
Mal tomou conhecimento do facto, Ibne-Almundim, como que tresloucado, correu a ajoelhar-se junto de Gilda.
— Senhora… dizei-me o que sentis… qual a doença que vos aflige… A custo ela conseguiu voltar a cabeça para ele. Os seus olhos quiseram sorrir, mas as lágrimas não deixaram. A sua voz quis ser forte e segura, mas vacilou e tremeu.
— Meu bom rei e senhor... não sei... não sei!... De súbito fiquei assim… Acreditai... Não sei porquê... mas pesa-me o coração... Pesa-me muito!... E custa-me a falar… Sinto que vou morrer!
Num brado de angústia, o rei mouro agarrou-se às mãos frias da sua bem-amada.
— Que Alá vos proteja!... É preciso que vos cureis, Gilda!... Sem vós, eu já não saberia viver!
Ela bem quis soerguer-se. Inutilmente. Caiu para trás, e a sua voz tornou-se ainda mais trémula e velada.
— Como eu vos agradeço, Senhor... Tendes sido bom, magnânimo.. Eu queria corresponder ao vosso desejo... Porém, tudo se acabou... Já nem tenho forças para me levantar daqui... Repito-vos, Senhor... Sinto-me morrer aos poucos...
E mergulhou numa prostração, que mais parecia a antecâmara da própria morte. Gilda deixou de ouvir. Nem as palavras, nem as súplicas, nem as lágrimas de Ibne-Almundim. Nada!
 
Num derradeiro recurso, o rei mouro deu ordem para que se reunissem urgentemente no palácio todos os sábios do reino. Eles vieram, sim, mas nada conseguiram. A bela Princesa do Norte não voltara a abrir os seus lindos olhos azuis. Tal como pressentira, continuava a morrer lentamente…
E quando o rei mouro, abatido, desalentado — vencido pela primeira vez na sua vida! — já não tinha mais qualquer esperança e chorava sozinho a sua dor, vieram dizer-lhe que um velho prisioneiro, também das terras do Norte, antigo súbdito do pai de Gilda, queria falar-lhe. Primeiro disse que não, que não queria ver pessoa alguma. Depois hesitou, interrogando-se a si próprio: E se ele soubesse algo a respeito da doença de Gilda?... Então mandou que entrasse.
E um velho, mirrado pelo sofrimento e pela idade, mas ainda altivo e de olhar profundo, avançou até junto de Ibne-Almundim.
— Sei o que vos aflige, rei dos mouros. E poderei ajudar-vos... Não por vós, que fostes um tirano para o meu povo... Mas por ela, a minha linda princesa!
O outro olhou-o desconfiado.
— E que sabes tu de doenças, para a poderes salvar, quando os outro já fracassaram? És sábio, também?
O velho sorriu levemente e retorquiu com galhardia.
— Não sou sábio, não, Real Senhor... Sou poeta!  
O punho fechado do rei mouro descarregou um soco violento sobre o braço da cadeira em que se sentava.
— Poeta?... E para que me serve a poesia neste momento?
Ousado, o velho prisioneiro deu um passo em frente e a sua voz não perdeu a calma. Pelo contrário, tornou-se mais segura.
— Para vos abrir os olhos, Senhor, já que teimais em tê-los fechados diante da luz da Verdade...
Furioso, o rei mouro levantou-se.
— Que dizes?
E foi ele que avançou agora para o velho prisioneiro. Severo. Ameaçador. Cruel.
— Pois escuta. Já que pensas assim, vou propor-te um dilema. Se salvares a rainha, ficarás livre para sempre e encher-te-ei de ouro, de muito ouro... Mas se não a salvares, espera-te a morte mais horrível que possas imaginar!
Espantosamente calmo, como se nada fosse com ele, o velho poeta das terras do Norte disse apenas:
— Estou pronto, Senhor. Levai-me junto da minha princesa.
Aturdido por tamanha confiança, o rei mouro não hesitou nem mais um momento. E conduziu o velho pelos corredores do palácio, até à alcova onde Gilda agonizava, morrendo aos poucos...

Ambos ficaram olhando a bela princesa adormecida. Olhando em silêncio. E em silêncio pensando: Que imagem maravilhosa, apesar do cenário de dor que a rodeava! Pálida e loira, parecia um anjo adormecido!
Ainda em silêncio, o velho poeta das terras do Norte avançou devagar, debruçando-se sobre Gilda. Assim esteve alguns minutos. Rezando? Meditando? Esperando?... Não se sabe... Sabe-se, sim, que ao fim desses minutos de dramática expectativa, Gilda reabriu os olhos. E voltou a sorrir! E voltou a falar!
— Meu pobre poeta, também tu!... Isto é mal que não tem cura, com certeza! Não achais?
E a voz do velho poeta, calma, serena, encheu todo o aposento:
— Não, princesa, não acho. Estais enganada. O vosso mal tem cura, mas não são os sábios que o podem curar... São os velhos poetas como eu.
E logo, afastando-se, fez um sinal a Ibne-Almundim para que o seguisse até ao terraço. Ainda mal refeito da surpresa, sem saber que pensar ou dizer, o rei mouro assim fez.
— Sabeis, Senhor, qual é o nome desta doença?
O outro olhou-o ainda mais surpreendido e confuso.
— Não… Não sei.
O velho poeta suspirou profundamente antes de continuar.
— Pois chama-se nostalgia, Senhor... Nostalgia! ... Ou seja, a minha bela princesa tem saudades da neve do seu país distante... Da neve que nesta altura do ano enfeita de branco os campos e as terras até onde os olhos podem alcançar…
Voltou a suspirar e ultimou com autoridade o seu pensamento:
— São essas saudades que a vão matando, Senhor!
Quase tímido, o invencível rei mouro perguntou, estupefacto e receoso:
— Saudades do seu país? Saudades da neve?
— Sim, Real Senhor... Saudades!... Mas eu conheço o remédio para tal nostalgia, ainda que vos possa parecer estranho.
Num impulso, o rei mouro agarrou-o.
— Diz... Diz depressa!... Correrei a buscá-lo! E não terei descanso até o alcançar!
Mas o velho poeta voltou a sorrir.
— Não é preciso correr, Senhor… Basta que mandeis plantar em todo o vosso reino, e muito especialmente aqui, diante do palácio, muita amendoeiras... E quando as amendoeiras florirem as suas flores brancas darão a ideia da neve aos olhos saudosos da princesa — e ela curar-se-á.
Semicerrando os olhos, como que numa prece, Ibne-Almundim acentuou com uma voz já repleta de fé e de alegria.
— Que se faça o que propões e que Alá te escute!
E tudo aconteceu como previra o velho poeta. Quando a Primavera chegou, as amendoeiras em flor plantadas por todo o reino de Chencir pareciam neve cobrindo os caminhos, e os campos, e as colinas!...
Ajudada pelo braço forte do rei mouro, Gilda acedeu a levantar-se e assomar à janela do terraço. Mas logo quedou espantada, estática, mal podendo acreditar no que os seus olhos viam.
— Será possível?... Isto é neve… a neve de que eu tinha tantas, tantas saudades!... Como isto é lindo! E como eu sinto ganhar forças, de repente!
Agarrou-se amorosamente ao braço de Ibne-Almundim.
— Sim, meu rei e senhor bem-amado... Já não tenho medo de morrer… Já não me pesa o coração... Já me sinto como era antigamente!
E emocionado também, estreitando-a num amplexo de amor, ele afirmou, com júbilo sincero:
— Estais curada, Senhora, que eu bem vejo! O velho poeta tinha razão e Alá ouviu as minhas súplicas!... Daqui em diante, acreditai, o nosso amor será eterno!
Deixando-se enlaçar docemente, Gilda, a bela Princesa do Norte, confessou baixinho:
— Tendes razão, meu senhor!... Somente me posso mostrar grata se vos dedicar um amor eterno! E eu prometo...
Mas nada mais conseguiu dizer. As restantes palavras fundiram-se num beijo grande e profundo. Num beijo de verdadeiro amor!

Ajunta ainda a voz da tradição que todos os anos a rainha e o rei esperavam alvoroçadamente pelo maravilhoso espectáculo das amendoeiras em flor — que substituíam assim a neve das terras do Norte. E que viveram sempre felizes e amorosos. E que o velho poeta chegou a ser um dos vultos de maior relevo na remota e sumptuosa Chelb, capital opulenta de um reino de poesia e de sonho, agora oculto entre os tesouros do passado.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 205-211
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Silves, SILVES, FARO
Narrative
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