APL 2271 O Penedo do Sino
Na pequena e montezinha aldeia de Bustelo, que, como é sabido, fica no alto, a dois passos da Citânia, viveu em tempos idos um cabaneiro que possuía um formidável rebanho de ovelhas, onde entrava também uma preciosa cabrinha leiteira.
Rebanho e cabrinha eram apascentados na serra por uma pastorinha, filha única do cabaneiro, menina e moça, que era de corpo e alma um encanto de beleza e gentilidade.
Ora aconteceu que uma vez, quando a rapariguinha foi de manhã abrir a porta ao gado para o levar a pascer, viu sobre um penedo que havia na corte, muito anafado e vivaz, um enorme sardão, tão sarapintado e reluzente que parecia coberto de pedrarias. E então manso e familiar que não fugiu nem com a presença da pastorinha nem com o contacto do seu gado em movimento. E foi hora tal que desde essa vez não mais entrou na corte do gado que não visse sobre a mesma pedra o mesmo sardão sedutor, mirando-a com tal ternura que parecia suplicante. E tanto se familiarizou com aquele hóspede do seu rebanho que terminou por votar-lhe uma verdadeira afeição.
Uma vez, como o animalzinho lhe parecesse um pouco faminto, mungiu a cabra e chegou-lhe uma escudela de leite a beber. O sardão sorveu tudo sôfregamente, ficando tão alegre e satisfeito que a rapariguinha compreendeu logo que lhe havia feito um grande serviço, e daí não lhe faltou mais com a sua refeição de leite.
Mas, coisa notável, a rapariguinha começou a notar que desde que pensava o sardão diminuía na cabra a produção do leite até ameaçar secar de todo.
A rapariguinha sentia-se entristecer com o facto, se bem que o sardão se não mostrasse com isso contrariado. Continuava alegre como dantes.
Atribuindo a sua alegria ao reconhecimento do animalzinho, a boa da rapariga disse-lhe um dia muito magoada: «Ai, meu bichinho, que o leite está quase seco e eu não tenho com que te sustentar».
Ao ouvir estas palavras, o sardão em vez de se entristecer até parece que sorriu de contentamento.
Por fim o leite secou de todo!
Muito contristada por não ter leite que levasse ao seu bichinho, foi na manhã seguinte abrir a porta ao gado, e qual não foi o seu espanto, quando, em vez do sardão, viu sentado sobre o penedo um esbelto rapaz que, muito delicada e carinhosamente, lhe disse: «Entra, minha menina, não tenhas medo, que eu sou ainda o mesmo. Aquele sardão que aqui tens visto não era senão eu, um pobre filho da Moirama que, seus pais, expulsos de Portugal, aqui deixaram convertido naquele triste animalzinho, rastejando pela terra a sua vida de abandono e a quem os teus cuidados quebratam o encanto do seu duro cativeiro.
Há muitos anos que espero aqui a minha liberdade, que estava pendente do leite de noventa dias de uma cabra do monte da Citânia. Desde que o meu encanto se quebrou, secou o leite à cabra, mas descansa, minha boa amiguinha, que apenas eu pise terra da Moirama, o leite há-de voltar. Antes, porém, quero deixar-te uma lembrança minha que te possa testemunhar a gratidão que te devo.»
E puxando de um objecto muito brilhante que tinha a forma de um X disse-lhe: «Toma este objecto. E um talismã com que conseguirás seduzir quem tu quiseres. Conserva-o em teu poder durante três meses, ao fim dos quais eu devo ter chegado à Moirama para onde vou partir. Findo esse tempo, vem a esta corte e coloca o talismã sobre este penedo, que é o cofre dos meus tesouros. O talismã converter-se-á numa chave, debaixo da qual verás no penedo uma fechadura. Abre e o que encontrares dentro é teu.
Recomendo-te, porém, que deves até então guardar segredo de tudo quanto connosco se passou, porque, se o revelares antes que eu pise o solo da minha terra, perderei de novo a liberdade e voltarei à condição de mísero réptil em que me encontraste.
A rapariguinha muito espantada, mas sempre resoluta, pegou no talismã e o mancebo desapareceu.
Daí em diante a pastorinha da Citânia tornou-se o enlevo e a sedução de quantos a conheciam. Principalmente não havia rapaz que a olhasse que não ficasse perdido de amores por ela. Chegava a ser um escândalo e tanto davam na vista os encantos mágicos da rapariga que o pai chamou-a um dia e pediu explicações do seu condão.
A rapariga então disse ao pai:
— Meu pai, há quantos meses secou o leite da nossa cabra?
O pai respondeu:
— Há para cima de quatro, minha filha.
— Venha então comigo.
E depois de lhe ter contado tudo, poisou sobre o penedo o seu talismã, que logo se converteu numa chave de ouro, com que abriu o penedo.
Dentro havia um montão de riquezas que os deixou maravilhados! Eram grades, arados, cadeados, cordões, grilhões e meadas, tudo do mais puro ouro, e tudo cravejado de pérolas e diamantes de todas as cores, que nunca se viu coisa assim.
Os dois felizes recolheram toda aquela imensa riqueza com que passaram a ser fidalgos e grandes da corte do nosso rei.
O penedo, quando se viu vazio daquela riqueza, fechou-se de novo para não mais se abrir.
As casas colmaças, que o cobriam, desabaram e desapareceram com o tempo e de tudo quanto aqui se diz apenas resta o penedo tocando a vazio, oco como um sino e tangendo como ele.
O que admira é como os ciprianistas ainda não o arrebentaram com um tiro e lhe puseram as entranhas ao sol, a ver se por lá haveria um fio esquecido das meadas de ouro que em si conteve!
- Source
- VASCONCELLOS, J. Leite de Contos Populares e Lendas II , por ordem da universidade, 1966 , p.760-762
- Year
- 1903
- Place of collection
- PAÇOS DE FERREIRA, PORTO