APL 1597 O Palácio sem Portas

Proximamente a Lagos, ao sair da ponte que segue para Odiaxere, houve uma horta e dentro desta um prédio alto de bem extraordinária construção. Não tinha uma única abertura: portão e janelas eram fingidas e apenas indicadas na alvenaria por sinais, que lhes marcava a área. Também não tinha telhado, correndo por sobre toda a extensão do prédio uma grande sotea.
 Há ainda hoje muita gente que conheceu o prédio assim construido, mas já bastante enegrecido e ofendido pelo tempo.
 Por esta forma ninguém chegara a entrar no prédio e para subir-se à sotea era necessário o emprego de uma escada. Aquela horta pertencera em tempos distantes a uma família pobre e honrada e que, à falta de outros bens, a escolhera para sua morada.
 Quando os seus donos foram para ali, a mulher não podia dirigir-se ao lugar da nora, que não lhe aparecesse um mouro que a convidava por acenos a aproximar-se-lhe. Fugia ela ao estranho convite, mas o mouro seguia-a até casa, ou até que alguém aparecesse.
 Ocultou a mulher, enquanto de, a ousadia do mouro, mas vendo-se constantemente perseguida, e por muito tempo, resolveu descobrir ao marido a origem dos seus continuados sobressaltos que a traziam doente. Ouviu o marido tão extraordinária história, mas logo compreendeu o seu sentido. Animou-a a receber o mouro, fazendo-lhe ver que era um mouro encantado, nunca tão mau como os outros. Tornou-lhe mais sensível o conselho, fazendo-lhe ver o estado lastimoso dos filhos, e a miséria da casa.
 — Há exemplos de mouros encantados, acrescentou o marido, se terem portado galhardamente com as pessoas que os auxiliam a libertar-se dos rigores do encantamento, e pode ser que tu lhe prestes algum serviço, do qual resulte a nossa felicidade.
 Ouviu a mulher o conselho e logo se tornou mais mansa para o mouro. Em um dia esperou a mulher que o mouro se lhe aproximasse e prestou-se a ouvi-lo. O mouro então em termos brandos e ternos informou-a de que ele se achava ali encantado, havia longos anos; que ali conservava toda a sua fortuna representada em dinheiro e joias de subido valor. Acrescentou à sua informação dizendo que ele daria de boa vontade todos aqueles valores a quem contribuisse para o seu desencanto.
 — E o que é preciso que se faça para que seja desencantado? perguntou a mulher com o pensamento preso à futura felicidade do marido e dos filhos queridos.
 — É necessário que alguém mande aqui construir uma quinta com janelas e que ninguém a elas se assome, com portas por onde ninguém possa entrar, e com tecto em que não se empregue telha, e que essa casa assim permaneça por um século, e só depois seja aproveitada para outra construção.
 Ficou a mulher completamente desanimada com as condições propostas pelo mouro, pois que se era merecedor de troça por parte da vizinhança a construção de um prédio sem janelas, sem portas e sem telhados, era também certo que uma tal construção demandava despezas avultadas de que ela e o marido não podiam dispôr. No entanto contou ao marido tudo o que o mouro lhe dissera.
 O marido ouviu a mulher e respondeu:
 — Não há dúvida: mãos à obra e construa-se o prédio exactamente como ele quer.
 — E aonde vamos buscar meios para a construção de um tal prédio? perguntou a mulher.
 — Ao trabalho e às privações. Priva-te para melhor gozar, diziam os antigos; o trabalho é o pai das virtudes, é a vida e a saúde do homem, acrescentam os modernos. Trabalha-se enquanto se poder, hipoteca-se a horta, empenham-se as tuas argolas e os teus brincos... e sempre trabalhar.
 E assim sucedeu. Afinal foi o prédio construído, sendo na sua construção observadas todas as condições impostas pelo mouro.
 Foi então que o mouro tomou a aparecer com grande júbilo da mulher, que nunca mais o tornara a ver. Apareceu à mulher e, descobrindo uma grande lagem, pôs a descoberto uma grande porção de dinheiro em ouro, e de joias de excessivo valor. O mouro entregou à mulher todos aqueles valores e despediu-se dela, dando-lhe um beijo.
 Beijo de fogo foi certamente aquele! A infeliz sentiu logo um grande ardor na garganta: parecia toda ela arder em vida! A este ardor sobre veio-lhe tão grande inflamação, que não mais pôde receber alimentos sólidos. Caldos e leite eram o seu único alimento. Sofreu a infeliz por largos meses, semanas e dias, sem que experimentasse algumas melhoras, e, cansada de tanto sofrer e de tanto penar, morreu finalmente vítima da sua dedicação pelos seus.
 O marido ainda lamentou por muito tempo a perda da esposa querida mas, como é sabido, as paixões, as saudades e todos os grandes afectos da alma evaporam felizmente com facilidade extrema.
 Ao marido ficaram-lhe da esposa muitos filhos, que viveram por muito tempo ricos e poderosos.
 Toda a gente lhes estranhava não concluirem a obra, e achavam realmente bastante extravagante um prédio sem janelas, nem portas, nem telhado, mas eles limitavam-se a responder a tão justas considerações simplesmente com um sorriso zombeteiro.
 É que eles sabiam que se a condição não fosse cumprida e o prédio fosse habitado dentro dos cem anos, toda a sua imensa riqueza se evaporaria como o fumo.
 Não posso declarar com certeza se o prédio apenas se conservou por
cem anos naquele estado; creio que sim.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve , Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.251-253
Place of collection
LAGOS, FARO
Narrative
When
19 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography