APL 1575 [A Moura de Milreu]
[...] apurei a seguinte [lenda] que me foi transmitida por um cavalheiro de S. Brás de Alportel.
Haverá uns cento e quinze anos, residia em S. Brás de Alportel um almocreve chamado José Coimbra. No desempenho da sua profissão, dirigia-se em certo dia para Faro, quando no sítio do Milreu, assaz conhecido pelas preciosas escavações nele feitas sob vigilância do benemérito algarvio, Estácio da Veiga, lhe apareceu subitamente uma formosa moura, vestida de azul, com os seus cabelos soltos em ondeadas madeixas. No seu olhar doce e ingénuo manifestava uns olhos azuis, que pareciam reflectir o próprio céu.
José Coimbra ficou surpreendido e não pôde articular uma palavra. Ouvira dizer aos seus pais que naquele sítio, distante de Estoi uns duzentos metros, aparecia uma moura encantada, e ele nunca dera crédito a tal aparição.
A moura, de uma bondade extrema, e sob a aparência de um anjo, convidou José Coimbra a acompanhá-la.
O almocreve, de boa ou má vontade, aceitou o convite. Então a moura bateu com o seu pequenino pé no solo por três vezes, acompanhando estes movimentos com a leve pancada da vara mágica e, ao mesmo tempo, abriu-se uma porta, pela qual ambos entraram, descendo em seguida uma escadaria do mais puro e fino porfido. Em poucos momentos viram-se numa ampla sala de paredes e colunas de ouro maciço.
José Coimbra ficou pasmado de tanta riqueza! E ele então que nunca lera as descrições dos palácios encantados das Mil e Uma Noites.
Em breve, porém, saiu deste pasmo quando viu acorrentados a cada
um dos dois cantos da sala um leão e uma serpente. O seu primeiro movimento foi de profundo susto, mas depois pensou que, sendo tudo o que via verdadeiramente extraordinário, devia manter o seu sossego de espírito. E ficou sossegado.
Então a moura falou-lhe assim:
— Se quiseres trocar essa vida arrastada que levas pela vida da opulência e ser possuidor deste vastíssimo palácio, onde o ouro é ainda o que menos valor tem, só de ti depende.
— O que tenho de fazer? perguntou o almocreve, prelibando os gozos da opulência, não desviando os olhos dos bichos.
Sem responder directamente à pergunta, disse a moura:
— Apenas três condições te imponho: consentires em ser três vezes engolido e três vezes vomitado pelo meu irmão: três vezes serás depois abraçado por minha irmã, ficando o teu corpo ulcerado nos pontos em que ela se enroscar; e depois de tudo isto consentires ainda que eu te oscule a fronte, tirando-te os santos óleos, que recebeste no baptismo.
José Coimbra, fingindo o sossego de espírito que não tinha, limitou-se a perguntar onde estava o irmão e a irmã da moura. Esta, apontando para o leão disse: é o meu irmão; e voltando-se para a serpente respondeu: é a minha irmã.
Então o almocreve, sob pretexto de pensar maduramente nas condições impostas, respondeu que brevemente voltaria ao lugar, onde se tinham encontrado, a dar-lhe a resposta. A moura não só se não mostrou contrariada com a resposta, mas até o convenceu de levar consigo duas barras de ouro.
José Coimbra aceitou a oferta e saiu do palácio acompanhado da formosa moura.
Quando o pobre homem chegou a casa escondeu as duas barras de ouro onde a mulher nunca pudesse encontrar, e ocultou a toda a gente o que lhe tinha acontecido.
É escusado dizer que o almocreve nunca mais pensou em voltar ao palácio encantado. Muitas, noites sonhou que se via engolido e vomitado pelo leão, e outras vezes que se via abraçado pela serpente e beijado pela moura, e então punha-se a gritar, sendo necessário que a mulher o acordasse e o livrasse daquilo a que ele chamava o seu pesadelo.
Passados alguns anos começou José Coimbra a sofrer os efeitos de uma grande crise económica. Os negócios corriam-lhe mal, longas estiagens tinham arruinado os campos, e a fome com todo o seu cortejo de horrores começou a bater rijo às portas do pobre almocreve.
Então lembrou-se que podia vender na feira de Vila Viçosa, no Alentejo, as duas barras de ouro.
Coisa notável! À medida que José Coimbra acariciava a ideia de vender as barras, ia sentindo ofuscar-se-lhe a vista, começando por sentir apenas umas névoas nos olhos, e a breve trecho estava completamente cego.
Desgraça sobre desgraça: pobre cego!
Consultou o infeliz os médicos mais acreditados que, infelizmente, não descobriram o remédio eficaz para debelar a horrível oftalmia; consultou os barbeiros, que tiveram a habilidade de agravar a doença e, afinal, tendo ouvido dizer que a Faro tinham chegado do estrangeiro dois médicos de fama, resolveu consultá-los.
A mulher do infeliz e alguns vizinhos ajudaram-no a montar em uma jumenta, e lá vai o pobre cego, acompanhado de sua mulher, até Faro em procura da vista perdida!
Chegados ao sítio do Milreu, precisou o infeliz de desmontar e, enquanto a mulher, com a jumenta pela arreata, se dirigia a uma casa ali próxima, ele saiu da estrada alguns passos. Então apareceu-lhe novamente a moura, que ele conheceu pelo timbre da voz: Increpou-o de falta de palavra, por não ter levado a resposta prometida.
— Por isso, continuou ela com voz um pouco alterada, estás sofrendo os terríveis efeitos, e sabes mais que se te poupei a vida foi porque não caiste em divulgar o meu segredo e dos meus pobres irmãos.
O almocreve mal ouviu a moura falar nos seus pobres irmãos, pôs-se a tremer.
A moura, porque nada lucrasse com a infelicidade do almocreve ou porque se condoesse do estado desgraçado daquele pobre, abrandou a voz e disse:
— Vai para casa. Amanhã, antes do sol nado, senta-te à tua porta, porque no momento do nascer o sol, os teus olhos darão dois estalos, como duas amêndoas duras, e então começarás a ver: primeiramente as casas fronteiras do Padre José Dias e as gaiolas com os seus lindos canários dependurados na parede, depois os belos campos que circundam a povoação.
Ficou o cego satisfeito com este conselho e pôs-se a chamar a mulher, logo que se encontrou sózinho.
Acudiu a mulher e veio acompanhada do dono da casa para a ajudar a pôr o marido sobre a jumenta.
— Resolvi voltar para casa, disse o cego.
— Pois não queres consultar os médicos?
— Não. Quantas mais consultas pior me encontro. Estamos pobres e não quem deitar à rua o último dinheiro que possuo.
E ambos voltaram para casa.
No dia seguinte, muito antes do sol nado, ergueu-se o infeliz almocreve da sua cama e pediu à mulher que o acompanhasse à porta da rua.
— Para que te levantas tão cedo, homem?
— Quero sentar-me sobre o portal, ouvir os cantos dos passarinhos, já que os não posso ver, e aspirar a doce e suave fragrância das rosas.
A mulher acompanhou o marido-arrumado ao seu bordão, e sentou-se sobre o portal, enquanto ela varria a casa.
Apenas nasceu o sol, foram tão fortes os dois estalos anunciados pela moura que a mulher, na suposição de que o marido andava à bordoada com as pedras da calçada, começou o gritar do interior da casa aconselhando ao marido juízo e prudência.
Em resposta o marido deu dois enormes gritos, exclamando:
— Vem cá, mulher... vejo o sol, as casas do padre José e a gaiola dos canários.
E era verdade. Cheia de alegria por ver o marido com os olhos limpos de nevoa pôs-se a abraçá-lo.
Não diz a lenda se o almocreve tornou a passar pelo sítio do Milreu, mas muita gente afirma que ainda hoje aparece a moura desditosa à espera de quem a desencante e aos seus irmãos.
- Source
- OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve , Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.158-161, cap.XVI
- Place of collection
- Estoi, FARO, FARO