APL 2832 Lenda dos Dez Outeiros

A lenda que vai seguir-se nasceu na aldeia dos Dez Outeiros. Mas conheci-a já noutra aldeia da mesma freguesia. Estranha, como todas as lendas de mouras encantadas, liga a vida real ao irreal, com a candura dos tempos que já lá vão. Os tempos de hoje são outros... Mas nos arredores da Aldeia dos Dez Outeiros a lenda apresenta-se com foros de veracidade.
 
Ali, no monte, o Manel da Ti Zefa andava a ceifar. Estava só. Os companheiros — três moços que moravam perto — haviam já concluído o seu trabalho diário. Mas o bom do Manel não queria parar. A terra era sua e precisava de despachar-se! Era o seu pão que colhia. Era o pão da sua única filha, a Cândida, que Deus lhe deixara sem mãe, desde os seis anos. E já lá iam doze!
Ceifava, o Manel da Ti Zefa, e pensava nessa mãe admirável que lhe dera o nome! Ti Zefa criara cinco filhos menores, viúva e sem vender qualquer bocado de terra. Deus ajudara-o a cuidar da mulher, sempre doente desde que a filha nascera. Ficara com a Candinha, como ela lhe chamava então, até aos quinze anos. Depois cansara… e morrera. Mas o seu quinhão de terra ali estava. Era dele. Depois seria da Candinha. Era preciso trabalhar muito. Mesmo fora de horas! Mas a filha não poria mãos na enxada, nem na forquilha, nem na foice! Ficaria em casa como menina abastada! Ná! Ele não a queria crestada por aquele Sol impiedoso, dobrada pela cintura como feixe de vimes! Era tudo quanto lhe restava da sua vida fora do trabalho. Não lhe dera madrasta. Para quê? Para lhe comerem e estragarem o que Ti Zefa juntara com tanto labor?...
Assim pensando, Manel esquecia-se que o Sol começava a alargar o balão de fogo, lá no horizonte. Depois, a labareda extinguia-se; e aquela luz cinzenta, que o irritava sem bem saber porquê, viria de novo, dia após dia, dizer que a noite cairia num pulo.
Mas um pulo, um pulo de bom ginasta sem nunca o ser, deu o bom do Manel da Ti Zefa ao descobrir, de súbito, na sua frente, um javali. Porém, mais estarrecido ficou ao ouvir a voz vibrante de um homem novo:
— Não te assustes! Não sou o que julgas!
Manel olhou o javali. Se em vez da água da bilha tivesse bebido vinho, compreenderia melhor a situação. Mas não estava bêbedo, a não ser do sol! Estaria com febre?
Mas o javali — pois era ele quem falava — tornou:
— Não queres saber quem te fala?
Manel acenou com a cabeça num gesto afirmativo. Não se atrevia a articular palavra. O javali apresentou-se:
— Sou um guerreiro mouro. Um dos dez que ficaram aqui encantados quando os cristãos vieram desalojar-nos. Cada um de nós habita num desses outeiros que tu vês em volta. Este é o meu.
Manel não acreditava no que ouvia! Aquilo era, com certeza, obra do Diabo. Olhou a foice que segurava na mão. Mas já o javali continuava:
— Nós, os mouros aqui encantados, temos connosco o nosso tesouro. Metade será para ti, se me ajudares.
Manel afrouxou o aperto que estava dando ao cabo da foice. E pela primeira vez falou:
— Que pretendes de mim?
— Que me ajudes.
— Em quê?
— A desencantar-me.
— E que é preciso fazer?
— Bem... Para que eu volte à forma primitiva, terei de ser acariciado e beijado por uma virgem bela e caridosa que viva nestes terrenos. Mas necessário também que ignore a minha condição de mouro encantado. Compreendes?
Manel enrugou as sobrancelhas.
— Não compreendo muito bem… pois não sou virgem bela e caridosa...
— Mas é a tua filha!
O homem endireitou-se.
— Não! Não quero que te intrometas com a minha filha! Guarda o teu dinheiro e vai bater a outra porta!
— Ela é a única que nestes tempos últimos surgiu para me desencantar!
— E se eu não quiser?
— Tu verás estas terras transformadas num braseiro e a tua filha será morta por um javali. Por isso ajuda-me, para que ela não me receie. De contrário… a desgraça cairá sobre a tua cabeça!
Manel cerrou os lábios. Como havia de livrar-se desse maldito javali? Mas achou melhor fingir. E declarou:
— Está bem! Vou pensar na maneira de ajudar-te.
E abalou a caminho de casa. Caminhava apressado, como se receasse tempestade. Chegou depressa. Entrou espavorido. Olhos muito abertos, peito arfando, coberto de suor.
Cândida olhou o pai. Alarmou-se:
— Que lhe aconteceu? Apanhou sol demais? Para que trabalha tanto sem deixar que eu o ajude?
Ele puxou-a para si. Olhou-a bem nos olhos. E pensou baixinho, no íntimo do seu ser:
— É isso! Virgem... bela… caridosa...
A moça tornou:
— Que tem, meu pai? Vossemecê quer que eu vá chamar o Tio António, lá ao monte?
Ele apressou-se, aflito:
— Não! Não saias daqui, Candinha! Não quero que saias de casa!
— Nem para ir lavar? Amanhã, eu...
Ele interrompeu-a:
— Não poderás sair!
— Mas sente-se doente?
— Não, não estou doente!
— Então que tem?
— Medo!
— Medo?
Ela abanava a cabeça, inquirindo:
— Como pode vossemecê ter medo, se nunca o teve?... Que aconteceu?
O homem fez sentar a filha junto dele.
— Ouve, Candinha! Andam javalis pelos outeiros!
Abriu a moça os olhos, num espanto:
— Javalis? Mas há tempo que não aparecem...
— Mas apareceram hoje!
— Mais uma razão para falar ao Tio António. Ele o ajudará a matá-los.
O homem afligiu-se mais.
— Não! Deixa o caso comigo!
— Não o entendo! Então já não tem medo?
— O meu medo é por ti! Promete-me que amanhã não sairás de casa até eu voltar!
— Prometo. Mas há-de vir mais cedo, para eu não ficar em cuidado!
— Virei mais cedo… descansa! Agora dá-me a ceia. Quero deitar-me.
Comida a ceia sem grande apetite, o Manel da Ti Zefa não conseguiu pregar olho em toda a noite. Um só pensamento o dominava: matar o javali que lhe aparecera nessa tarde!

Quando a manhã rompeu, toda rosada como donzela envergonhada, o Manel da Ti Zefa saiu de casa recomendando mais uma vez à filha:
— Vê lá, Candinha! Não saias daqui!
Ela sorriu-lhe, gaiata.
— Esteja descansado, meu pai.
O ar estava fresco, agradável. Mas já se adivinhava pela nuvem do horizonte que o calor não poderia tardar. O homem caminhava depressa, como se o tempo corresse à sua frente e não a seu lado. Chegou ao outeiro. Olhou em volta. Ainda os outros companheiros não haviam chegado. Era sempre assim: o primeiro a aparecer, o último a abalar. Olhou em redor como se estivesse a ver o lugar pela primeira vez. E distinguiu com estranheza os dez outeiros! Sim... lá estavam eles… Nunca tinha pensado nisso... Dez outeiros... dez guerreiros mouros encantados... dez javalis, talvez a perturbarem a vida de cada uma das criaturas que ali viviam e trabalhavam. De súbito, o javali surgiu na sua frente. Manel cerrou os dentes. Seria nesse momento. Correu para ele de foice em riste e agrediu-o. Do pescoço do javali jorrou sangue. Manel encomendou-se a Deus. Julgou que seria esse o seu fim. Mas com grande espanto seu, o javali ferido, em vez de cair sobre ele, fugiu grunhindo de dor.
Manel ficou olhando a terra. O sangue dava-lhe aqui e além o tom de fogo. E lembrou-se da terrível advertência: «Se não quiseres... verás estas terras transformadas num braseiro e a tua filha será morta por um javali…».
Olhou em volta. Devia ir para junto dela — pensava. Mas como dizer-lhe o que acontecera? Claro que podia mentir-lhe... Sim... Esperaria apenas que os outros chegassem... destinar-lhes-ia o trabalho... fingir-se-ia doente… e iria para casa ainda antes do Sol estar a pino!
 
Entretanto, Cândida, embora entretida na lida da casa, estava inquieta. Não podia sair, porque prometera ficar. Mas não havia dúvida que o pai não estava bem e gostaria que o Tio António o visse. Ainda se Guanito por ali passasse... Guanito, às vezes, andava de monte em monte pedindo pão, toucinho e azeitonas. Mas havia mais de duas semanas que não via o pequeno, órfão de pai e mãe.
Um ruído estranho, porém, fê-la parar de lidar. Parecia uma espécie de gemidos junto à porta. E se fosse o pai? Correu a abrir. E abafou um grito de susto. Junto à soleira da porta estava deitado um javali, escorrendo sangue. Candinha olhou em volta, procurando o pai. Não se avistava viva alma no horizonte largo. Olhou de novo o javali, que arfava e gemia. O sangue continuava correndo. Mas os gemidos tinham qualquer goisa de humano que afligiu a jovem camponesa. E sem saber porque o fazia, foi à coberta da sua cama, rasgou-a em tiras, lavou a ferida do javali e ligou-a. Dócil como cordeiro, o javali deixava-se tratar. Depois, ergueu-se de mansinho e saiu em direcção a um dos outeiros. Só então Candinha deu conta do que havia feito. Murmurou para si mesma:
— Ele vai para lá! E nessa direcção que está o meu pai! Mas que fiz eu? Devia tê-lo deixado morrer... Era um javali... Um javali!...
Quis fechar-se dentro de casa. Não conseguiu. Uma inquietação estranha impedia-a de continuar tranquila o seu trabalho. Nisto avistou o pai que se dirigia para casa. Num movimento lento meteu-se para dentro. Fechou a porta. Esperou. O pai entrou. Mais apreensivo que na véspera. Olhou-a como a certificar-se de que a filha estava sã e salva. E deixou-se ficar por ali o dia inteiro, sem conversar nem dar explicações. Por seu turno, Candinha guardou também o seu segredo.
 
O dia seguinte veio encontrá-los mais tranquilos. O pai aprontou-se para sair para o monte, manhã cedo. Antes de passar a soleira da porta, disse para Candinha, num tom que fez por ser desprendido:
— Se eu não voltar à hora da ceia, podes logo de manhã ir ao monte do Tio António, para que me procure.
Candinha assustou-se.
— Mas... julga-se em perigo?
— Não... mas tudo pode acontecer a um homem!
Ela agarrou-o por um braço.
— Por que não me conta tudo? Tem realmente medo dos javalis… ou arranjou alguma rixa com os homens que trabalham consigo?...
Ele desprendeu-se, levemente, da pressão dos dedos da jovem aldeã.
— Nada disso! Eu é que não me sinto bem... mas já vou melhor e há-de passar. Até logo!
— Vá com Deus!
O homem saiu para o campo. Candinha voltou à sua apreensão da véspera. Tentou distrair-se, agarrar-se ao trabalho da casa. Mas o pensamento continuava fixo naquele estranho javali escorrendo sangue e que parecia pedir-lhe que o tratasse!
De súbito sentiu algo a empurrar a porta da rua. Correu a abri-la. Na sua frente estava o javali da véspera, olhando-a numa expressão quase humana de quem pede misericórdia. Candinha hesitou. Por fim decidiu –se. Tirou a ligadura, voltou a lavar-lhe a ferida, que já não sangrava, com chá de malvas — que ela tinha sempre para qualquer eventualidade. 
Ligou-o de novo. Então o javali encostou-se às suas pernas, olhando-a como quem agradece.
Ela sorriu-lhe. E falou-lhe:
— Vai-te agora embora e volta amanhã. Em troca quero apenas que não faças mal ao meu pai, nem deixes que os outros o maltratem.
O javali afastou-se. Candinha ficou a olhá-lo um tanto surpreendida. Se contasse a alguém o sucedido não acreditariam! Nem mesmo o pai!
Candinha encolheu os ombros. E disse num suspiro largo, só para si:
— Que importa! Vivo aqui isolada… será este o meu segredo!
 
Tudo decorreu normal durante esse dia. O Manel da Ti Zefa esperou, em vão, que o javali tomasse a aparecer para se vingar. Olhava a terra, receou de a ver coberta pelas chamas. Mas tudo continuava como se ele tivesse tido apenas um pesadelo. De tal forma, que chegou mesmo a duvidar se o sol e a canseira não o teriam prostrado semi-inconsciente e o javali e o mouro encantado não fossem mais que produtos da sua imaginação.

Mais outro dia passou. O Manel da Ti Zefa partiu para o campo mais afoito, mais senhor de si mesmo. Já não recomendou à filha que não saísse. Porém, Candinha é que sentiu necessidade de ficar em casa e ir ainda lavar ao rio. Não sabia explicar a si própria porque sentia desejo de curar esse javali de aspecto tão repelente. Podia ser até que ele não voltasse a aparecer-lhe. Mas ela esperava-o. E não foi em vão. Por altura do meio-dia, o javali bateu com o focinho na porta. Cândida foi abrir. Sorriu ao vê-lo já sem ligadura, a ferida curada. E falou-lhe:
— Já estás bom! Saraste depressa! Então já não precisas de mim...
E como ele entrasse em casa:
— Não, não podes ficar aqui! Vai-te embora e não me apareças mais, se não o meu pai, se te vê, mata-te!
Mas o javali não deu mostras de a ter entendido. Deitou-se-lhe aos pés encostando-se a ela, dócil como um cachorrinho. Candinha sorriu-lhe acariciou-lhe o pêlo hirsuto.
— Vai-te! Agora vai-te! Não precisas de agradecer-me!
Mas o contacto com o javali punha-lhe arrepios no corpo. Voltou a ordenar:
— Vai-te embora!
O javali levantou-se, empurrou-a até a um banco. A rapariga sentou-se. Ele deitou-se-lhe de novo aos pés.
Cada vez mais surpreendida, Candinha acariciou-o nos olhos.
— Vamos, tens de compreender que não podes ficar aqui!
Na expressão muda do javali havia uma estranha súplica. Ela entendeu-o:
— Não, não posso consentir que fiques cá em casa, como um cão! O meu pai, se te vê, mata-te! Anda, vai-te embora!
Curvou-se para o bicho. Beijou-o na cabeça e dispunha-se a usar de mais energia quando ouviu uma voz de homem bem timbrada declarar:
— Deste-me a vida duas vezes!
Candinha levantou-se. Olhou a porta da rua entreaberta. Correu a olhar o campo. Mas de dentro de casa a voz tornou:
— Sou eu quem te fala!
A jovem voltou-se para o lado donde a voz lhe soou. Já lá não estava o javali mas um homem novo, esbelto, moreno, de olhar profundo e brilhante. Assustou-se:
— Quem és tu?
— Um guerreiro mouro que desencantaste com a tua bondade e a tua juventude.
Cada vez mais atarantada, Candinha não deixava de olhar o homem que tinha na sua frente:
— Tu... um guerreiro mouro?...
— Sim... Estava encantado num javali. Se teu pai não me tivesse ferido, seria para ele um dos dez outeiros que se vêem além. E lá, está enterrado um tesouro. Assim, e porque me salvaste, perdoo-lhe o ter tentado desgraçar-me para sempre. Mas continuará pobre. E agora, adeus!
— Para onde vais?
— Para a terra dos meus antepassados.
— Nunca mais voltarás aqui?
O homem sorriu:
— Talvez. Foi para isso que nos deixámos encantar. Mas só quando formos muitos! Quanto a ti... se quiseres seguir-me, levar-te-ei comigo!
Ela recuou.
— Não! Não quero acompanhar-te!
— Porquê? Beijaste-me quando eu era um animal tão feio e mau, e agora...
— Agora tu és um homem que eu não conheço. Prefiro ficar com meu pai!
— Dar-te-ei muitas riquezas! Viverás num palácio!
Ela abanou a cabeça.
— Não! Não quero ir contigo!
— Porquê? Não te agrado?
— És um mouro!
— E isso que tem? Tu me desencantaste!
— Não, não quero ir! Tenho de tratar de meu pai! Encontrarás decerto outras mulheres...
Ele interrompeu-a:
— Não te forçarei, embora pudesse fazê-lo. Deixei uma noiva, também encantada, que devo tentar fazer voltar à vida. Para ela voltarei. No entanto... faz-me um favor mais.
— Que é?
— A todos que conheceres e quantos vierem depois de ti, espalha esta nossa história.
— Para quê?
— Para que outras donzelas como tu tenham o valor necessário para desencantar os meus companheiros espalhados por esta terra fora!
— É só isso?
— Só. Tenho pena de não te deixar parte do meu ouro. Bem o merecias! Mas o teu pai atraiçoou-me. Para te dar o ouro teria de dar-lhe a morte!
Candinha afligiu-se.
— Oh, não, não preciso do teu ouro! Preciso, sim, da companhia do meu pai! Vai-te! Vai-te sem mim e deixa-me em paz!
— Vou deixar-te. Mas toma esta pequena moeda, amostra do muito que poderias ter. Com ela, comprarás para a tua cama a coberta mais rica que puderes encontrar...
E sem mais qualquer gesto de despedida, o homem alto, moreno, de olhar profundo, saiu para o campo a caminho dos dez outeiros. E nunca mais se soube dele...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 181-188
Place of collection
Aldeia Nova De São Bento, SERPA, BEJA
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography