APL 2844 Lenda da Ribeira da Sertã
A gruta escancara a sua bocarra negra, escorrendo baba fria que vai juntar-se à ribeira da Sertã. À volta, matagal denso põe frémitos de mistério na vida interior dessa terra quase virgem. Quem procura o caminho do matagal onde animais ferozes aparecem de súbito? Quem espreita pelo negrume da gruta que ciosamente guarda seis mouras encantadas, das mais belas que no seu tempo ali viveram? A mata e a gruta da ribeira são, pois, locais proibidos para os habitantes das aldeias que circundam a vila da Sertã.
Foi isto em tempos que já lá vão, quando a mata era mesmo virgem e os animais ferozes andavam por ali como em sua casa. Hoje, porém, a mão do homem chegou a todos os recantos. As árvores foram abatidas, os animais ferozes postos em debandada. Contudo, duas coisas houve que a acção do homem e a acção do tempo não puderam destruir: a gruta existente na escarpa do Mosteiro e a lenda das mouras que ali vivem encerradas. A fama da sua beleza é grande. Todavia, entre os vivos, ninguém com verdade diz que tivesse visto qualquer delas, quando fora de horas deambulam pelos campos ou vão banhar-se nas águas frias da ribeira da Sertã. Todavia...
Conta a tradição que, há muitos anos, viviam numa casita pobre do lugar um rapaz bastante novo e a mãe viúva. O rapaz chamava-se José, e era o único amparo da mãe desde que o pai morrera. Trabalhava todo o dia, enquanto a luz do Sol lhe permitia ver. A noite, voltava para junto da mãe, e ali ficava até novo dia despontar. Certa vez, porém, o calor apertou e o rapaz, já cansado, deitou-se no chão, entre a gruta e a ribeira, ao abrigo de uma sombra. Sem dar por isso, adormeceu. E quando a noite veio ele continuava a dormir...
Despertaram-no vozes femininas falando umas com as outras, quase ao mesmo tempo. Abriu os olhos e olhou em volta. Era noite cerrada. No entanto, do lado da gruta vinha uma luz muito branca, como se a própria Lua lá estivesse escondida. José ergueu-se de um pulo. Embora não fosse medroso, o coração bateu-lhe com mais força. Seriam as mouras da ribeira da Sertã? Seriam elas?...
A simples suposição de que dentro de momentos as veria — pois as vozes aproximavam-se — deixou-o quase petrificado. Nem se lembrou da mãe, a essa hora decerto bastante inquieta pela sua ausência.
As vozes soaram mesmo junto dele. Olhou — e viu as mouras! Da gruta saía um jacto de luz prateada que as iluminava feericamente. Vinham envoltas nos seus trajos à moda árabe, mas sem o rosto coberto. Eram lindas! Principalmente uma delas, que nesse momento se calara e o fitava, sorrindo. Estupefacto, José retribuiu-lhe mal o cumprimento. Porém, como ela o chamasse, ele aproximou-se e perguntou-lhe:
— Que me queres?
Mas já uma outra moura surgia da gruta, afastando a que ele havia distinguido. Depois falou-lhe:
— José! Tu és um bom rapaz — forte, sério, trabalhador. Podes, se quiseres, salvar uma de nós. Sabes, decerto, que somos as mouras encantadas da ribeira da Sertã. Escolhe a que desejas, porque a que salvares será para ti, assim como todo o ouro que lhe pertence!
José abria os olhos num espanto. Jamais pensara que pudesse acontecer-lhe semelhante aventura, embora, nas cálidas noites de Verão, se deixasse algumas vezes ficar junto à porta de casa olhando o céu estrelado, e perguntando à Lua como seriam as mouras ribeira da Sertã.
Mas a que lhe falara, e parecia comandar as outras, fê-lo despertar dessa espécie de encantamento, insistindo:
— Responde, José: qual de nós tu preferes?
José olhou em volta, procurando aquela que primeiro lhe sorrira.
A chefe das mouras voltou a interrogar:
— É Almina quem preferes? — e apontou a jovem e linda moura que continuava a sorrir para ele.
José fez que sim com a cabeça. A chefe ordenou então:
— Almina! Podes aproximar-te. Ele escolheu-te. Mas espero que não o tenhas enfeitiçado com o teu olhar! Bem sabes o que isso poderia representar para ti... e para ele!
Almina não respondeu. Aproximou-se em silêncio, sem desprender o olhar do jovem beirão. Depois falou:
— José, responde-me: queres salvar-me?
Ele respondeu logo, e com ardor:
— Sinto que darei a minha vida pela tua!
Sorriu mais, a moura. Então, a que fazia de chefe tirou de sob o manto um lenço branco atado nas quatro pontas, contendo algo que não se via mas aparentava ser pesado, e entregou-o ao rapaz, dizendo:
— Toma e guarda-o bem! Nesse lenço vai a tua felicidade.
O rapaz tomou das mãos da moura o lenço atado. Pensou logo em desatá-lo, para ver o que continha. Mas a moura atalhou:
— Tem cuidado, não o abras! Deixa-o ficar assim até que voltemos a aparecer-te!
José acenou com a cabeça. A emoção não o deixava falar. Como poderia ele ter nas mãos, contida num simples lenço branco, a sua própria felicidade? Olhou profundamente tão preciosa dádiva, de aparência tão simples. Mas quando voltou a erguer os olhos já as mouras tinham desaparecido... Agora, a luz prateada extinguia-se junto à gruta. A escuridão voltava a envolvê-lo. Mas o lenço continuava nas suas mãos. Era preciso escondê-lo, para que o não vissem. Nem mesmo sua mãe!... E só então sentiu o pavor que a pobre estaria sofrendo por não ter junto de si, àquelas horas, o seu filho José, que nunca faltava em casa mal soavam as ave-marias...
Passaram dias. Semanas. Meses. José pensava desesperadamente nas mouras da ribeira da Sertã. Deixava-se ficar por ali até mais tarde que de costume, sozinho, na esperança de tornar a vê-las. Mas passou o Verão. Passou o Outono. O Inverno alagou os campos. A Lua ficou escondida por detrás das densas nuvens. Nem mouras nem luar! Nem sequer a consolação de tudo ter sido um sonho, pois lá estava o lenço branco atado nas quatro pontas a atestar a veracidade da sua aventura. José não dormia. Não comia capazmente. Já não era o mesmo homem de trabalho. O seu segredo sufocava-o. E um dia, não podendo conter-se mais ante as dolorosas interrogações da mãe, acabou por desabafar.
A pobre viúva escutou o filho como se o escutasse no delírio de uma doença febril. Mas era tal a convicção do jovem, que ela pediu para ver o tal lenço branco. José hesitou uns momentos. Mas queria não estar só na sua aventura e foi buscar o dito lenço. Era um lenço banal. De tecido alvo e fino, mas sem rendas nem bordados. Estava atado nas quatro pontas, ocultando algo. A mãe de José mirou-o com cuidado e perguntou:
— Que pensas tu que esteja aí dentro?
Sinceramente, o jovem respondeu:
— Não sei.
Curiosa, a viúva mirou e remirou a dádiva das mouras e propôs, resoluta:
— Vamos ver o que está dentro do lenço!
Ele afligiu-se.
— Isso não, mãe! Elas não querem que ninguém veja! Tenho de o entregar assim.
Mas a velha viúva sorriu.
— Ora! Eu o atarei de novo. Nem elas notam que lhe mexemos.
E num ápice o lenço foi desatado. Um pedaço de carvão caiu no solo. José admirou-se:
— Mas é carvão das brasas dos madeiros!
A mãe sentenciou:
— Brincaram contigo! Ainda bem que fomos mais espertos do que elas!
José apanhou o carvão. Colocou-o de novo no lenço, atou-o, e guardou-o no bolso. Nessa noite, porém, não conseguiu dormir.
As desilusões são tanto mais fortes quanto maior for a ilusão que elas desfazem. Que mundo de maravilha José havia arquitectado! E afinal...
Caminhava a passo moderado, como um sonâmbulo, olhos perdidos no horizonte distante. A Primavera começava a dar sinal de si no canto suave dos passarinhos. E, de súbito, José viu-se na ribeira da Sertã, do lado das escarpas. Na sua frente, as mouras, pálidas e tristes. Não cantavam nem riam. Não tagarelavam sequer. Então, a chefe do grupo afastou as outras com um braço e dirigiu-se ao jovem aldeão.
— José! Devolve-nos o lenço que te demos.
Ele tirou o lenço do bolso e entregou-lho. Ela desatou-o. E do lenço caíram moedas de ouro!
O rapaz abriu os olhos num espanto.
— Ouro? Mas...
A moura interrompeu-o.
— Tu viste carvão, não é assim? Tu e a tua mãe! Faltaste à tua promessa e quiseste enganar-nos! Perdeste a tua felicidade e a de Almina.
O rapaz mostrou-se inquieto:
— Onde está ela?
— No fundo da gruta, donde não mais poderá sair. Quanto a ti, trabalharás de sol a sol sem nunca amealhares uma só moeda! A curiosidade perdeu-te!
E sem qualquer espécie de despedida, as mouras desapareceram numa nuvem de neblina que envolveu o próprio José. Desesperado, sentou-se numa saliência rochosa e chorou amargamente. Mas as mouras da ribeira da Sertã não voltaram para o consolar. Nem no dia seguinte. Nem em qualquer dos outros que vieram depois. José não foi mais o mesmo rapaz trabalhador, alegre, cuidadoso. Todos os seus momentos vagos eram para a ribeira da Sertã. Punha-se diante da gruta, a chorar e a suplicar às mouras que lhe perdoassem. Mas a gruta conservava-se muda e insensível aos seus apelos. E os outros rapazes, vendo-o e ouvindo-o naquela aflição, tremiam de pavor e afastavam-se do local fatídico, não fossem surgir-lhes pela frente as mouras da ribeira da Sertã...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 299-302
- Place of collection
- Sertã, SERTÃ, CASTELO BRANCO