APL 3005 Lenda do Homem Calvo

O Algarve, tão recheado de lendas de aspecto fantástico, dá-nos esta que foi localizada na Bordeira, perto de Lagos, e que o povo ainda recorda, embora de uma forma confusa. Eis o que apurámos do que ouvimos e do que ficou subentendido.
 
Foi há muito tempo — disseram-nos — que isto se passou. (Todas as lendas contam muitos anos sobre a sua origem, e esta não foge à regra.) Estava um dia de sol. Um dia de luz brilhante. Henrique sorria à sua jovem mulher. E declarou:
Isabel, como estais bonita!
Ela encolheu os ombros.
— Ora! Aqui pouco posso brilhar.
— Porquê?
— Estamos longe do mundo. Para quê enfeitar-me?
— Estou eu junto de vós.
— E precisais que me vista das sedas que trouxe do Norte e das jóias que herdei de meus pais?
Henrique beijou-lhe uma das mãos.
— Sois bela de qualquer maneira. Amo-vos e estou grato por me terdes acompanhado.
— Também eu vos amo. Mas às vezes sinto saudades dos tempos em que vivia rodeada de luxo.
Henrique entristeceu.
— Isabel, o luxo só enfraquece as almas. Lembrai-vos que Jesus Cristo, podendo ser poderoso, quis nascer pobre.
Ela sorriu.
— Por isso vós conseguis trabalhar um dia inteiro, apanhar frio, chuva e sol, andar léguas e léguas para ver um doente e receberdes uma miséria.
— Desagrada-vos?
— Por mim... já me habituei. Mas pensai que poderemos ter filhos. E eles necessitam de um dote para serem alguém.
— Acaso precisei do vosso dote?
— Claro que não, mas...
Henrique suspirou fundo.
— Meu amor! Julguei que ao vosso pensamento não acudiam ideias tão materialistas.
Ela tentou disfarçar.
— Meu Henrique, isto passa. Foi talvez a influência da história que contaram os irmãos que vivem junto à ribeira.
O jovem médico mostrou-se apreensivo.
— Como vos deixais influenciar por essas coisas! Acaso acreditais na história do tesouro da Bordeira?
— Talvez.
— Que ideia!
A jovem retorquiu com vivacidade:
— Sabeis, ao certo, o que aconteceu aos irmãos gémeos que vivem junto da ribeira?
— Ouvi falar nisso, vagamente.
— Pois foram lá anteontem... encontraram o local indicado pelos antigos... escavaram na rocha..
Henrique interrompeu-a.
— E que encontraram?
— Não conseguiram chegar ao fim, porque anoiteceu. Ontem, porém, quando lá chegaram…
— Que viram?
— O trabalho desfeito. Parecia que nem tinham tocado na rocha!
— E depois?
— Vós não acreditais, eu sei. Mas reparai que eles voltaram a escavar com mais afinco.
— E qual foi a recompensa?
— A noite chegou uma vez mais e eles voltaram. E hoje... a rocha estava intacta!
— Se é verdade… mais uma razão para não tentarem a experiência.
— Foi o que eles fizeram. Fugiram amedrontados. Mas o povo anda sobressaltado. Verás que, esta tarde, muitos lá hão-de ir...
Henrique atalhou:
— Querida! Gostais realmente de mim?
Ela surpreendeu-se.
— Porque o perguntais?
Ele encolheu os ombros.
— Sei lá! Não possuo tesouros, nem assuntos como o que traz essa gente tão exaltada chegam a interessar-me.
Isabel mostrou-se amuada.
— E julgais que o caso faria mudar o meu amor por vós?
Ele esboçou um sorriso.
— As mulheres, às vezes, são incompreensíveis. E amo-vos tanto que não resistiria, se soubesse que vos sentíeis infeliz junto de mim.
Isabel rodeou-lhe o pescoço com os seus braços bonitos, e disse meigamente:
— Não quero que penseis mal da vossa esposa. Se às vezes tenho pensamentos extravagantes, acreditai que não irão além de vagos pensamentos.
Henrique suspirou, aliviado.
— Ainda bem, meu amor! Que Deus nos guarde dos maus pensamentos!...

Henrique caminhava silencioso. A seu lado mantinha-se, taciturno, o homem que havia ido a sua casa para que o acompanhasse de visita a um doente. Por fim, o outro quebrou o silêncio. Teve uma exclamação:
— Como esta gente anda inquieta!
Henrique olhou em volta. Caminhavam em grupos, levando ferramentas nas mãos. O jovem médico comentou:
— Coitados! Julgam que é o dinheiro que dá felicidade…
— E não é?
Henrique olhou admirado o seu interlocutor.
— Duvidais?
— Talvez!
— Pois eu não. Apesar de pobre sou feliz.
— E como sabereis se não seríeis mais feliz se possuísseis o tesouro da Bordeira?
Ele encolheu os ombros.
— Basta-me o que tenho.
O outro parou. Henrique imitou-o.
O desconhecido explicou em voz baixa:
— Deixai passar este grupo. Nós já chegámos.
O jovem médico olhou em volta o terreno sem casas.
— Como? Porque dizeis que chegámos?
O homem postou-se em frente de um rochedo. Retirou de um saco uma pequena vara de cristal e tocou com ela o rochedo, que rodou por artes mágicas.
Henrique julgou sonhar. Não era cobarde, mas um medo estranho apossou-se dele. Perguntou:
— Que é isto? 
— A entrada do palácio do meu senhor.
— Mas… não era aqui que...
— Exactamente. Aqui está escondido o tesouro da Bordeira.
— Foi por isso que me chamastes? Não queríeis que visse a vossa mulher que estava enferma?
— Não. Queria premiar o vosso desinteresse pelo dinheiro.
— E como ireis premiar-me?
— Dando-vos algumas moedas de ouro.
— E se recusar?
— Não recusareis, porque elas poderão ajudar a resolver alguns problemas relativos à vossa mulher. Aceitai esse dinheiro, que o ganhastes já, com as visitas sem receber que fizestes a tanta gente deste lugar.
Henrique estava perplexo. Exclamou:
— Que coisa estranha!
— Entrai. Vereis muito melhor lá em baixo.
O jovem médico desceu. A sua estupefacção era cada vez maior, à medida que ia descobrindo os tesouros incontáveis ocultos nesse lugar. Quando voltou, o desconhecido recomendou-lhe:
— Tomai esta pequena vara. É igual à que usei para aqui entrar. Ela servirá de chave com a qual abrireis este rochedo.
Henrique recusou-se a aceitar a vara.
— Mas... para que necessito eu deste tesouro?
O homem teimou:
— Guardai a chave. Pode ser que um dia preciseis dela. Mas não digais a ninguém o que se passou.
— Tendes razão. Se dissesse o que me aconteceu e mostrasse esta chave, roubavam-ma e este tesouro seria assaltado.
— O que seria calamitoso para vós… e para eles. Ide! Voltareis aqui somente se vos for muito necessário.
— Assim farei.

Henrique caminhava para casa sem saber o que pensar. Parecia-lhe tudo um sonho. Um sonho estranho, irreal, maravilhoso. Mas em casa ele soube calar os pensamentos que gritavam alto no seu cérebro. Todavia, Isabel achou-o triste, meditabundo. E perguntou-lhe:
— Que tendes?
A resposta veio de rosto voltado, com receio de ser descoberto na mentira.
— Estou cansado.
— Onde fostes ver o doente?
Ligeira hesitação, antes de responder:
— Muito longe.
— E fostes a pé?
— Ele tinha um cavalo a alguma distância daqui.
— Porque o deixou longe de casa?
— Não sei... Não perguntei.
— E pagou-te?
Henrique hesitou de novo. Mas preferiu mentir, pois só poderia apresentar moedas de ouro.
— Não. Não tinham dinheiro.
Isabel irritou-se.
— Que dizeis? Tinham cavalos e não tinham dinheiro? Não achais que mentiam?
— E se mentiram?
— Não deveis passar por parvo!
Henrique olhou a mulher. Ela quase chorava. Continuou a censurá-lo:
— Não olheis para mim dessa maneira! Sou um ser humano! Uma mulher que se despiu de tudo quanto de bom a rodeava para seguir-vos! Amo-vos e bem sei que sois pobre. Mas tendes uma nobre profissão e a possibilidade de ganhar dinheiro. Se o não fazeis é porque não vos importais comigo!
Ele reagiu.
— Isabel! Nunca me falaste dessa maneira!
— É certo! Também nunca senti tanto a certeza de que iríeis receber dinheiro que se visse, como hoje. E desiludistes-me!
— O facto é para vós assim tão importante?
— É, sim! Perdoai esta minha confissão!
Ele afligiu-se.
— Isabel, vejo-vos diferente!
— Não. Estou a mesma, mas com menos confiança!
— Em mim?
— No nosso futuro! Vejo-vos incapaz de ganhar para nós... para a nossa velhice! Sois demasiado bom. Não sois um homem vulgar, sois um santo. E os santos não casam!
Henrique alarmou-se.
— Isabel! Que vos aconteceu desde que saí? Pareceis-me diferente!
Ela estava pálida. Tremia-lhe a voz.
— Henrique! Não sei, de facto, o que aconteceu. Mas a verdade é que vejo mais negros os dias que se avizinham.
— Que poderei então fazer, para vos dar felicidade?
— É simples: levai dinheiro pelas vossas consultas. Aos pobres levai pouco. Aos ricos levai muito!
Henrique tremia.
— Isabel! Se vos dissesse que tinha recebido dinheiro desta vez… que diríeis?
— Que começava a confiar no meu esposo!
Henrique levou uma das mãos ao bolso interior do fato. Tirou um saco pequeno mas recheado e pousou-o em cima da mesa.
— Eis a paga que recebi!
Isabel correu a abri-lo. Uma exclamação de alegria ecoou:
— Henrique! Mas isto é magnífico! Onde foste encontrar este ouro? Ao tesouro da Bordeira?
Henrique fez-se pálido. Sentou-se sem pronunciar uma palavra. Ela rodeou-lhe o pescoço num abraço. Beijou-o com fervor.
— Que bom! Vamos ser ricos! Abristes o rochedo?... E como?
O marido, derrotado, não sabia que dizer. Ela porém continuava, animada:
— Dizei-me como encontrastes estas moedas! Dizei-me, senão terei de as procurar sozinha!
Ele gritou, subitamente acordado para as responsabilidades:
— Não! Não tocareis nesse tesouro!
— Porque não? Tanto é vosso como é meu!
— Não necessitamos dele!
— É o que pensais. Mas eu penso o contrário!
O jovem médico levou uma das mãos à testa escaldante.
— Isabel, pensai bem no que vou dizer-vos! Possuo a chave que pode abrir o rochedo que dá acesso a um palácio encantado. Contudo, só eu lá poderei entrar e quando tiver absoluta necessidade de dinheiro!
Isabel perguntou, curiosa:
— Quem vos disse isso?
— O homem que lá me conduziu. Não fui ver um doente. Fui visitar o palácio!
— Um palácio encantado? Acreditais nisso?
— Vi-o com os meus próprios olhos!
— Pois eu não! Se tendes a chave que dizeis, voltai lá e trazei mais dinheiro. Pouco que seja. Só assim acreditarei na vossa história!
Henrique hesitou. Ela insistiu:
— Porque esperais? Se não vos despachais... irei eu!
Temendo uma loucura da esposa, Henrique prometeu:
— Seja, eu vou. Vós ficai onde estais! Prometei que não saireis daqui enquanto eu não voltar!
— Prometo!
Henrique suspirou fundo, olhou a esposa cujo semblante estava alterado, e saiu.
Quando o jovem médico bateu com a vara de cristal no rochedo, este desviou-se para lhe dar passagem.
Lá dentro, a luz dourada que o iluminava era muito intensa. De súbito viu o homem que lhe havia revelado o segredo do tesouro. Estava sério. A sua voz soou quase dura.
— Deixastes-vos vencer pela vossa esposa! Felizmente para vós que não consentistes em trazê-la. Se o fizésseis, ficariam aqui os dois para todo o sempre! Porém, como desobedecestes em parte ao que vos pedi, vou aplicar-vos um castigo. O mais simples que o meu senhor vos poderá dar.
Henrique, receoso, perguntou:
— Que me ides fazer?
— Ficareis calvo para toda a vida! Ao ver-vos, vossa mulher relembrará a sua cobiça, a sua vaidade, e se quiserem ser felizes só terão o amor para vos unir! E agora ide-vos! O dinheiro que vos dei já se desfez em cinza!
Henrique saiu correndo. O rochedo rodou após ele. O mundo da fantasia havia desaparecido. De repente, levantou-se um vento enorme. Foi apenas alguns segundos. Tudo serenou depois. Mas quando Henrique entrou em casa, Isabel gritou de olhos esbugalhados:
— Henrique! Que vos aconteceu? Que é feito do vosso cabelo? Estais completamente calvo!
Henrique levou as mãos ao rosto, sentou-se e murmurou:
— Tudo por culpa da vossa ambição, Isabel! Tudo por vossa causa! Agora tudo perdi. E talvez perca também o vosso amor! Mas aceito o castigo e peço perdão a Deus por ter deixado de seguir o caminho que havia traçado!
Isabel olhou o marido com pesar. Os seus braços bonitos rodearam-lhe o pescoço. Beijou-lhe a cabeça agora sem cabelo. A sua voz soou contricta:
— Perdoai-me, Henrique! Perdemos tudo, mas resta-nos o nosso grande amor! E com ele seremos ricos!
Lá fora, o vento cantou, de novo, mas desta vez uma canção alegre.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp.65-71
Place of collection
Bordeira, ALJEZUR, FARO
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