APL 936 Dona mirra
Perto da aldeia de Galafura, pertencente ao Concelho do Peso da Régua, há um lugar chamado Monte de S. Leonardo, um miradouro de sonho, que delicia os olhos dos que têm o prazer de o visitar.
À sua volta, divisa-se a paisagem verde e amarela das cepas, espalhadas pelos socalcos que sobem até ao monte, tribuna e altar de S. Leonardo.
Lá ao fundo, lobriga-se o azul doirado das águas do rio Douro, a espreguiçar-se na sua lenta caminhada para o mar.
O eminente miradouro foi honrado pela presença de Presidentes da República e cantado pela musa inspiradora de Miguel Torga. Dele disse Hermano Saraiva que é preciso visitá-lo para se poder afirmar que se conhece Portugal.
Hoje, é fácil ir lá de automóvel; mas, outrora, era um matagal de giestas que se entrelaçavam, tornando o monte quase inacessível. Apenas alguns pastores se atreviam a subir até ao alto, em busca de pasto para os rebanhos, ou alguns lenhadores, à procura de lenha para o forno.
Foi ali, debaixo do lugar, onde hoje está a capela de S. Leonardo, que um rei mouro construiu um palácio cujas paredes são forradas com chapas de oiro e cujos tectos são marchetados de pedras preciosas, para lá morar com sua filha, D. Mirra.
A entrada está voltada para nascente e é defendida por duas fragas encostadas no vértice que, segundo a lenda, se estreitam durante o dia, para impedir a passagem a intrusos, e se afastam durante a noite, para os seus moradores poderem sair a contemplar o rio e as estrelas.
Se alguém ousar transpor aquela porta, será esmagado implacavelmente pelas duas fragas que se juntam, pelos poderes mágicos do rei mouro.
Certo dia, o rei teve de ausentar-se para terras da moirama e deixou ali a filha, na esperança de voltar em breve. E, para que ninguém lha roubasse, encantou-a com estas palavras: Fechai-vos, fragas, até que nasça linho sobre este monte; com o linho, façam uma toalha; e, sobre á toalha, comam um jantar; e até que sejam ditas, tim, tim, por tim, tim, estas mesmas palavras.
Ora um pastor, que, por coincidência, andava por ali, ouviu estas palavras e, sem perda de tempo, tratou de semear linho e foi-o regando até ele crescer. Depois, arrancou-o, pô-lo de molho, ripou-o, maçou -o espadelou-o, fiou-o e fez uma toalha.
Em seguida, preparou o jantar e levou-o, juntamente com a toalha, para o monte. Chegado ao alto, estendeu a toalha sobre as duas rochas e comeu o jantar que havia preparado.
Depois, dirigiu-se à boca da mina que dá para o palácio e começou a dizer as palavras que ouvira ao rei, para desencantar a filha. Mas atrapalhou-se, não as disse correctamente e a porta não se abriu.
E, como ninguém mais conhecia o segredo, D. Mirra lá continuou encantada.
Entretanto, os dias e os anos iam passando e o rei nunca mais voltava. Então, cansada daquele solitário encantamento, D. Mirra começou a tentar libertar-se dele.
Uma noite, estendeu no sopé do monte uma manta coberta de figos, para que alguém os levasse todos e lhe quebrasse o encanto.
De manhã, passou por lã um aldeão que ia para o trabalho e, ao ver aqueles figos, limitou-se a apanhar um punhado deles, meteu-os nos bolsos do casaco, e foi para o campo.
No dia seguinte, quando os foi procurar para matar o bicho com aguardente, verificou que eles se tinham transformado em peças de oiro. Arrependido de não ter levado todos os figos da manta, correu ao monte, para buscar os que tinham ficado.
Porém, quando lá chegou, já não viu figos nem manta, e regressou a casa muito triste. Mas a sua pouca sorte ainda não ficou por ali: ao chegar a casa, notou que as peças de oiro se tinham convertido em pedaços de carvão!
Falhada a tentativa, a moira apareceu, em sonhos, a um morador de Galafura, pedindo-lhe que fosse à meia noite à encruzilhada do fundo do monte, onde estaria um cavalo branco à sua espera, para o levar ao seu palácio, onde encontraria um grande tesoiro.
O homem compareceu no local indicado e à hora marcada; mas, vendo que o cavalo só tinha três patas, teve medo de o montar e regressou a casa sem nada, com grande pesar seu e maior ainda da moira encantada.
Mas D. Mirra não desistia. Apareceu, pouco depois, a uma menina que andava a apanhar lenha na Fonte dos Mouros e disse-lhe:
- Vai ter com a tua mãe, que está a cozer pão, pede-lhe que te faça um bolo e traz-mos que eu dou-te muito dinheiro. Mas toma bem atenção: não digas para quem é.
A menina foi e fez o que a moira lhe recomendou. Mas a mãe estranhou o pedido e perguntou-lhe para quem era o bolo. E, como ela não lho quis dizer, a mãe declarou:
- Pois, se não dizes para quem é, também não to faço.
Então, a filha não teve remédio senão revelar-lhe toda a verdade.
Depois, com o bolo numa cesta, dirigiu-se ao lugar onde encontrara a Senhora, mas ela não apareceu. Apenas lhe ouviu a voz dolente a dizer:
- Quem não é capaz de guardar um segredo só merece o meu desprezo.
E retirou-se, desgostosa, para o palácio, enquanto a menina recolhia, triste, a sua casa.
Mas D. Mirra não se dava por vencida. Voltou a aparecer, transformada em menina, a atar giestas com fitas amarelas, a uma mulher que por ali passava, com o jantar para o marido e disse-lhe:
- Se fores capaz de desatar estas giestas, dou-te tantas moedas de oiro como de laços desapertares.
A mulher pousou a cesta e pôs-se a tentar desfazer os nós, mas em vão: quantos mais nós desatava mais nós apareciam. E desistiu.
Então, a moira, cansada e desiludida, recolheu ao palácio, à espera do pai que nunca mais voltou, e lá continua encantada com as palavras do pai e com a beleza deslumbrante da paisagem.
- Source
- FERREIRA, Joaquim Alves Lendas e Contos Infantis , Edição do Autor, 1999 , p.136-139
- Place of collection
- Galafura, PESO DA RÉGUA, VILA REAL