APL 2792 Lenda do Capitão de Deus

Esta é mais uma história lendária de D. Sebastião. Lenda que se confunde, por vezes, com a própria realidade, lenda que possui algo de intangível — esse algo que simboliza, afinal, a essência da eternidade. E se acaso termina, como é da tradição, numa manhã de nevoeiro — começa, em contraste, numa linda manhã de sol. Numa linda manhã de Primavera...

Recuemos no tempo até ao mês de Junho de 1578... No palácio real, em Lisboa, vai uma grande azáfama... A capital portuguesa vive uma das suas maiores horas...
No seu gabinete do paço, o moço rei D. Sebastião escuta extasiado as palavras do padre Luís Gonçalves da Câmara.
— Acreditai, meu Senhor! Aquela terra de Marrocos foi santificada pelo sangue dos mártires portugueses.
O sacerdote fez uma pausa e aproximou-se do jovem soberano. A sua voz tornou-se mais doce. Mais lenta. Mais incisiva.
— Quantas vidas se perderam?... Quantos homens, por amor de Cristo e glória da nossa Fé, ficaram escravos para sempre?... Quantos?
E, como se a resposta viesse do coração, ele cruzou os braços sobre o peito para que a sua voz ganhasse mais ressonância.
— É preciso vingar a memória de todos eles, meu Rei e Senhor!
A testa de D. Sebastião encheu-se de pequenas pregas. Cada prega um pensamento. Cada prega uma decisão.
— Dizeis bem, amigo: é preciso vingar a sua memória... Eu a vingarei!
E enchendo de mais brilho o seu olhar já brilhante, e enchendo de mais força a sua voz já forte, o moço soberano de Portugal quase gritou:
— Estou resolvido a partir!... Irei conquistar Marrocos!
O padre Luís Gonçalves da Câmara ergueu as mãos numa bênção.
— E sereis capitão de Deus!... Nenhum outro nome terá maior projecção na História do que o vosso nome... Nenhuma figura será mais respeitada do que a vossa!
Mas D. Sebastião já não o ouvia. Lentamente, aproximou-se da janela alta e olhou o sol, que tudo fazia resplandecer lá fora. E para si próprio repetiu baixinho, como num êxtase:
— Capitão de Deus!... Serei capitão de Deus!...
E, assim arrastado pelo seu sonho de glória, o jovem rei de Portugal partiu ao encontro da aventura e da morte...
A sua trágica odisseia faz parte da História propriamente dita, desde a abalada do Tejo, depois de muitos dias de tempestade, como que num presságio cruel, até à estadia em Cádis, com uma grande corrida de toiros e um jogo de canas «al uso de Xerez»; desde a arribação a Tânger, quando soavam as doze badaladas da meia-noite, até à sortida em campo aberto, contra cerca de mil mouros, nos arredores de Arzila; desde esse irresistível desejo de se bater contra Abde Almélique, o novo senhor de Marrocos, até à trágica batalha de 4 de Agosto de 1578...
A lenda começou, por assim dizer, na parte final da luta, que durara apenas pouco mais de quatro horas. Já então os últimos companheiros de el-rei lhe suplicavam que fugisse pelo caminho de Arzila, aproveitando uma derradeira oportunidade. E quando Fernando Mascarenhas, rodeado de inimigos por todos os lados, lhe grita desesperado: «E agora, Senhor, que havemos de fazer com tanta multidão?», o rei de Portugal, rompendo de novo a massa compacta dos mouros, respondeu-lhe noutro grito, não de desespero, mas de ousadia: «Fazer o que eu faço!»
A tragédia, porém, estava no fim. Aniquilado o valoroso terço dos soldados algarvios comandados por Francisco Lourenço, D. João de Portugal acerca-se do seu rei e pergunta-lhe: «Que pode haver aqui que fazer, senão morrermos todos?...» Mas D. Sebastião, do alto do seu corcel cansado, olha-o severamente e responde: «Morrer, sim, mas devagar».
E, segundo se vem contando desde então e pelos tempos fora, o rei de Portugal atirou-se para a frente, perdendo-se na turbamulta dos mouros. E alguns teriam ainda ouvido ele bradar:
— Um capitão de Deus nunca se rende!...
 
Pois conta-se que, desiludido e humilhado, sofrendo dores e lágrimas, padecendo tormentos de alma e de corpo, D. Sebastião se arrastou pelo Mundo, numa vagabundagem de penitência, sem querer voltar ao reino que o esperava... E de terra em terra, de refúgio em refúgio, teria chegado a uma maravilhosa ilha do oceano Atlântico: a ilha de Arguim...
Aí reinava um senhor poderoso, pai de duas encantadoras jovens, qual delas a de mais perturbante beleza.
O moço rei, triste e desalentado, sentiu-se bem nessa terra extraordinária, onde parecia respirar-se paz e felicidade. E solicitou do senhor da terra que a sua presença fosse consentida durante algum tempo.
— Mas quem sois vós? — quis o outro saber, com arrogância.
— Sou... um pobre penitente, que anda expiando pecados cometidos.
— Criminoso, então?
— Não, Senhor!... Sou um capitão de Deus!
E o brado foi tão sincero, tão forte, tão espontâneo, que o senhor da ilha não soube recusar.
— Pois ficai... Ficai o tempo que quiserdes, desde que não perturbeis o nosso viver!
— Assim o juro, Senhor! Pela minha honra!
E de novo a firmeza das suas palavras, o fulgor do seu olhar, o aprumo da sua presença, impressionaram deveras o senhor da ilha. De tal modo que, nessa noite, ele não se pôde calar diante de suas filhas.
— Ficai sabendo que temos agora na ilha um forasteiro bastante estranho.
— Estranho, em quê, meu pai? — perguntou uma delas.
E logo a outra perguntou também:
— Estranho, porquê?
O pai olhou-as. Sorriu. Eram sempre assim. Completavam-se. Depois, tentou explicar a ambas, simultaneamente:
— Bem... parece-me estranho, porque me faz lembrar um guerreiro, mas fala como um trovador... Traz uma grande espada consigo, mas transporta-a como se fosse um alaúde... Compreendem? Existe qualquer coisa nele que eu não compreendo... Apresenta-se humilde como um vencido, mas o seu olhar é brilhante como o de um triunfador...
E as duas filhas, quase ao mesmo tempo, disseram então:
— Queremos conhecê-lo, meu pai!

No dia seguinte, quando D. Sebastião se ergueu e saiu da tenda que lhe tinham destinado, viu as duas jovens à espera dele.
— Viemos para vos conhecer, senhor forasteiro.
— Aqui estou... Que quereis de mim?
— Saber quem sois.
— Sou... sou um homem sem história para contar.
O mistério adensou a curiosidade das duas irmãs. Olharam-se e sorriram. Mas ele percebeu isso e antecipou-se.
— E vós… quem sois? Posso sabê-lo?
— Decerto que sim... Somos as filhas do senhor da ilha.
O moço rei iluminou o rosto, num ar de admiração.
— Céus! Como é possível haver homem tão afortunado como vosso pai? Além de possuir uma ilha prodigiosa como esta… tem duas filhas como vós!
— Sois lisonjeador...
— Sou sincero!
Fez-se uma pausa. Sentindo que tomara ascendente, o visitante ajuntou:
— Não vos procuro os nomes, porque, se não vos importais, vos chamarei conforme me pareceis... Assim, vós sereis a Esperança... E vós outra sereis a Saudade...
Riram elas, alegres, satisfeitas, envaidecidas. Riu ele também, orgulhoso do efeito suscitado.
E as jovens perguntaram:
— Quereis ser nosso amigo?
E ele respondeu prontamente:
— Sim, com toda a minha alma!
Porém, de súbito, o seu olhar enublou-se e ele disse baixinho:
— Apenas com uma condição...
— Qual? — interrogaram as duas, a medo.
— Não deveis querer saber nada do meu passado... Eu nada vos poderei dizer.
Elas entreolharam-se, de novo, muito sérias. Pensativas. E prometeram que sim.
Daí em diante, a ilha ainda pareceu mais bela aos olhos dos três jovens. Andavam quase sempre juntos — e a sua felicidade pare insuperável... Todavia, um pormenor espicaçava constantemente a atenção das duas raparigas: o jovem forasteiro nunca abandonava a sua espada. Quem sabe? Talvez até dormisse com ela... E tanto pensaram no assunto, que resolveram investigar...
Certa noite, quando o silêncio caíra por completo sobre a ilha, envolvendo-a num manto de estrelas e de luar, as duas irmãs sorrateiramente entraram na tenda onde estava dormindo o jovem forasteiro.
Sim, era verdade! Ele dormia sem abandonar a grande espada que sempre trazia consigo!
Porém o que mais as surpreendeu foi o facto de descobrirem que ele estava dominado por um terrível pesadelo.
Revolvia-se, inquieto e angustiado, chamando entre gemidos e queixumes:
— Vamos a eles, companheiros! Eu sou o Capitão de Deus!... Essa mourama maldita não poderá levar a melhor... Deixai-me, eu sei o que faço… Eu sei o que quero!... Que me dizeis? Que me renda? Nunca! Um rei não se rende!...
A sua respiração era opressa, dava quase ideia de um estertor. Elas tiveram pavor da morte e saíram correndo. Mas dentro de cada uma ficara a frase que não mais lhes sairia da memória: «Um rei não se rende!»

A medo o foram esperar, na manhã seguinte. Apareceria ele, como costumava fazer, alegre, sorridente, assobiando por vezes?...
Pois apareceu assim mesmo. Contudo, notou imediatamente que elas estavam perturbadas. Havia qualquer coisa de diferente na maneira como o olhavam. Havia qualquer coisa de diferente no modo como lhe falavam. Ambas se esquivavam habilmente à curiosidade dele...
Tal ambiente manteve-se durante alguns dias. Até que o moço rei D. Sebastião resolveu atacar o assunto de frente.
— Dizei-me, boas amigas: que se passa convosco... que sois diferentes para comigo?
— Diferentes, nós, porquê?...
— Diferentes, nós, em quê?...
Ele procurou esclarecer.
— Sim... O vosso sorriso já não é tão franco... O vosso olhar já não é tão inocente... Que se passa? Eu preciso de saber... Eu quero saber!
— Falais como um rei, senhor...
A frase ficou suspensa no espaço. Suspensa entre o olhar interrogativo dele e os suspiros fundos delas. E nada mais disseram nesse dia. E nada mais disseram em outros dias...

Certa manhã, inesperadamente, aquela a quem ele chamava Esperança procurou-o às escondidas da irmã.
— Perdoai-me, mas quero falar-vos a sós.
— Dizei, Esperança...
— Chamais-me Esperança, e tendes razão: é a esperança que aqui me traz... Eu amo-vos, senhor, e espero ser correspondida por vós...
Foi a vez dele suspirar.
— Se chamais amor à grande amizade que nos une, como irmãos, eu também vos amo, Esperança.
— Não! Eu chamo amor à paixão que pode existir entre dois seres que se desejam, como eu vos desejo e vós me desejais certamente.
— Aí vos enganais, Esperança... Eu já não posso amar assim!
— É a vossa última palavra?
— É a minha última palavra!
Silenciosamente, tristemente, ela abalou. Então, poucos minutos depois, surgiu a outra irmã.
O moço rei fitou-a com simpatia.
— Também vós, Saudade?... Que desejais?
— O vosso amor!
— Como?... Não compreendo... Explicai-vos melhor...
Ela aproximou-se, num ar felino. Rosto com rosto. Corações batendo em surdina.
— Escutai, nobre cavaleiro desconhecido... Sei que vós repudiaste o amor de minha irmã... Escutei a vossa conversa... Por isso, estou convencida que é a mim que vós amais!
— Pois também tenho de desenganar-vos, minha boa, minha doce amiga. Bem gostaria de vos amar, de facto. Mas não posso...
Ela ergueu a voz, num tom mais duro:
— Não podeis... ou não quereis?
Antes de responder, ele suspirou fundo.
— Como entenderdes... Para mim, sereis sempre... a minha Saudade!
Sem mais palavras, ela deslizou no caminho e afastou-se vagarosamente...
 
O moço rei voltou a viver isolado, pois não mais lhe apareceram as duas jovens. E um dia, o senhor da ilha enviou um emissário a convocá-lo, com a maior urgência.
D. Sebastião não demorou a comparecer.
— Aqui estou, Senhor. Que me quereis com tamanha pressa?
A voz do outro transpirou irritação.
— Quero dizer-vos que traístes o nosso pacto. Eu dei-vos licença para ficar aqui, desde que não provocásseis perturbações na nossa vida.
— É então… de que me acusais?
Num rompante de cólera, o senhor da ilha avançou para ele.
— Ainda ousais perguntar?... Pois não sabeis o que fizestes às minhas filhas? Eram as duas irmãs mais amigas deste mundo... Agora, odeiam-se! E odeiam-se por vossa causa!
O moço rei baixou a cabeça. Vencido. Emocionado.
— Tendes razão... Hoje mesmo sairei desta ilha!
E assim sucedeu, segundo conta a voz da tradição. Tal como chegara na névoa do mistério, ele abalou também numa manhã de nevoeiro. O nevoeiro que sempre acompanhava a sua vida...
Mas conta a lenda ainda que as duas irmãs, ao saberem dessa abalada, se revoltaram abertamente contra seu pai. E fosse pelo que fosse — por magia ou coincidência, ou por qualquer desígnio superior — verdade é que nesse mesmo momento a ilha de Arguim desapareceu engolida pelo oceano, arrastando consigo a Esperança e a Saudade d’el-rei D. Sebastião... E enquanto se sumia nos mares a ilha de Arguim, ia espontando numa auréola de luz e de encanto outra ilha maior e mais bela: a ilha da Madeira.
E foi aí que o moço rei D. Sebastião, nessa aventura errante e infinita, resolveu deixar para sempre a sua companheira de tantas horas e de tantas honras, essa espada ainda ensanguentada pelas recordações de Alcácer Quibir.
Passando pela ilha da Madeira, D. Sebastião teria fincado a sua espada toda de ouro na rocha do cabo Garajau. E teria dito, numa verdadeira expressão de êxtase:
— Aqui vos deixo, minha bem-amada... Mas um dia virei buscar-vos... Um dia, quando voltar a ser o Capitão de Deus!
E de novo seguiu o seu caminho, deixando a Ilha do Sol e perdendo-se na bruma do futuro.
Porém, para muitos, talvez um dia ele volte, na verdade, a buscar a sua espada ao cabo Garajau, e a desenterrar a Esperança e a Saudade que ficaram sepultadas na ilha que está no fundo do mar...

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 275-281
Place of collection
FUNCHAL, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)
Narrative
When
1578
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography