APL 3202 [A Sereia de Peniche]
Um dia, nas águas sossegadas da praia do Carreiro do Cabo, entretinha-se a mulher de um pescador a dar banho a uma sua filhinha de tenra idade.
As ondas vinham beijar de mansinho as areias douradas e finas que desciam dos médões rasteiros dos Remédios em ondulações brandas e preguiçosas.
Entrementes, perante a surpresa da mãe, a criança saltou dos braços maternos e, com um brilho estranho de felicidade nos olhos e um sorriso a divinizar-lhe as feições, atirou-se ao mar. Espanto, gritos de receio de que a menina se afogasse, correria assustada das outras mulheres que se encontravam também ali perto, à beira-mar. Mas, perante o assombro dos presentes, a menina emergiu das ondas, calma, serenamente deixando-se apertar nos braços da mãe que chorava de alegria por tornar a vê-la. Mas a criança dava a ideia de vir diferente: o olhar, o sorriso, os cabelos castanhos e ondulados, irradiavam reflexos maravilhosos de uma estranha felicidade e como que exultava uma animação maior em toda ela.
Passaram-se anos sobre este dia. A criança crescera em graça e beleza; uma graça e uma beleza que fariam adivinhar a presença misteriosa de qualquer sortilégio. Os pais bebiam os ares pela filha e nada encontravam de singular no seu convívio; mas as mulheres que haviam assistido à cena de anos antes — velhas mulheres embiocadas cheias de crendices e de assombros — pressentiam naquela existência como que um halo sobrenatural, qualquer coisa de misterioso que não sabiam explicar. E, à boca pequena, maravilhadas do seu próprio receio, iam contando que, algum dia a moça se transformaria em sereia, por ter recebido os poderes do encanto quando surgira do mar, estranhamente feliz.
Ora, um dia, o filho do ouvidor do Conde de Atouguia, deslumbrado pelo fascínio irradiante da rapariga, apaixonou-se loucamente por ela. Mas não deixou o seu amor ser tão puro e tão forte que, à sombra do poderio e dos Privilégios de que seu pai gozava, a não tivesse seduzido e abandonado miseravelmente.
A donzela, humilhada e cheia de vergonha, carpiu largamente a sua desgraça. A beleza que a todos assombrava pela sua singularidade, foi-a ela perdendo, dia após dia, perante as lágrimas tristes dos pais que a adoravam e que nada podiam fazer para o evitar. Até que o seu desgosto de amor a levou à morte, sendo levada a enterrar no adro da igreja de Nossa Senhora da Vitória, à altura existente no Cabo Carvoeiro.
Certa noite, voltava o moço sedutor de uma festa nos Remédios em que tomara parte, seguindo pela costa a caminho da Ribeira, onde morava. Não muito longe do Carreiro do Cabo, ouviu uma voz harmoniosa entoando os versos de uma canção nostálgica. Com mil cuidados, não fosse surpreender e assustar a dona de voz tão bela, aproximou-se. E, cheio de admiração, viu, sentada junto de uma gruta existente ali perto, uma mulher, extraordinariamente formosa.
À luz do luar que recortava figuras estranhas e sinistras pelos rochedos, pareceu-lhe, cheio de assombro, o vulto da sua antiga namorada. Acercou-se, cheio de receio e curiosidade. A mulher, porém, ao pressenti-lo, desapareceu misteriosamente.
Mas aquela visão deixara o moço estupefacto e ansioso. E, na noite seguinte, voltou de novo a passar perto da gruta, ouvindo novamente a mesma voz a entoar a canção triste da véspera; lá estava a mesma mulher, esbelta e enigmática, sentada à beira da rocha. Aproximou-se, tentando tocar-lhe para certificar-se do que os seus olhos viam mas no momento em que o ousou fazer, ela voltou-se inesperadamente para ele e enlaçou-o, gritando numa voz estranha e ameaçadora que chegara finalmente a hora de ele expiar o crime da sua desonra. O seu grito teve o condão de enfurecer as ondas do mar, que se levantaram e ergueram, raivosas, até ao cimo da gruta, arrastando os dois jovens, no meio de um turbilhão de espuma, para o fundo dos abismos.
Alguns dias depois, foi encontrado junto do Médão Grande o corpo do infeliz sedutor, lamentavelmente pisado e moído como se tivesse sido exposto a bárbaras torturas.
Quanto à donzela seduzida, diz o povo que se transformou realmente numa sereia — como o haviam pressentido as velhas mulheres embiocadas, cheias de crendices e de assombros — e que, saudosa dos seus amores, todas as noites em que o mar se pavoneia, sereno, acarinhando a terra e o luar brilha no céu escuro espargindo um manto de prata por sobre os rochedos de recortes sinistros, volta à gruta misteriosa em que o mancebo a encontrara. E aí, entre a hora fantasmagórica da meia-noite e as duas da madrugada, eleva a sua mágoa para os céus, em cânticos de tal maneira tristes e requebrados, melodiosos e encantadores, que enternecem e fazem chegar lágrimas aos olhos dos rudes pescadores que passam a caminho do mar alto, ou dos caminhantes que se aventuram a horas tão mortas por caminhos tão escusos e perigosos…
- Source
- CALADO, Mariano Peniche na História e na Lenda , Edição do Autor, 1991 , p.416-417
- Place of collection
- PENICHE, LEIRIA