APL 3020 Lenda da Vingança do Jovem Lázaro
Há muito tempo, o lugar de Escampados, da freguesia de Ceivães, era habitado por numerosas famílias. Entre elas duas já se destacavam pelo seu poder e fortuna. Dir-se-ia que todo o dinheiro do lugar estava concentrado nessas duas casas. Porém, talvez porque uma delas desejasse sobrepor-se à outra, o ódio dividia-as. Numa casa era patrão e senhor Julião Álvares. Na outra, impunha a sua lei André Fernandes. André tinha uma filha muito formosa nos seus desenvoltos dezassete anos. Chamava-se Adélia. Julião possuía um filho único, Manuel, moço arrogante mas generoso. Como o ódio que separava as duas famílias era grande, jamais Manuel e Adélia haviam estado frente a frente.
Uma tarde, porém, quis o destino que Adélia, passeando pelos campos, se encontrasse com Manuel. O elo de ligação foi uma tempestade. Havia calor. O firmamento estava carregado. Mas a rapariga não suspeitou que esse calor derivasse em tormenta. Rebentou com estrondo o primeiro trovão. E logo umas bagas grossas de chuva começaram a cair, primeiro mais espaçadas, depois umas após outras, num frenesim de quem tem pressa de chegar.
Adélia, com um vestido leve a cobrir-lhe o corpo, correu para uma cabana meio desmantelada que viu a pouca distância. Antes de entrar, hesitou. Alguém estava lá dentro. Mas uma voz agradável incitou-a:
— Entrai, senhora; não vos farei mal. O mesmo não direi dessa chuva que desaba sobre vós!
Adélia entrou quase confiante. Sorriu.
— Saio tão pouco... e logo hoje acontece-me este dissabor.
O rapaz sorriu também.
— Pois o que me acontece neste momento é maravilhoso! Como pôde viver nesta terra uma mulher tão bela sem que disso me apercebesse?
— Saio muito pouco, como já vos disse. E meu pai não costuma trazer-me para estes lados.
— Quem é vosso pai?
— André Fernandes.
O jovem companheiro de Adélia franziu as sobrancelhas. Fugiu-lhe o sorriso. Indagou:
— Sois então a filha de André Fernandes?
— Sou. Porque vos surpreendeis?
— Não me surpreendo... Sinto-me apenas confuso. É que eu... sou Manuel, o filho de Julião Álvares.
Adélia teve um movimento de recuo. Olhou a paisagem assolada pela tempestade. Ele lembrou num ar cortês:
— Agora que o destino nos juntou, de nada serve fugir. Esperemos, com paciência, que a tempestade passe. E conversemos. Chamais-vos Adélia, não é assim?
Timidamente, a jovem concordou:
— Sim, é esse o meu nome.
— Pois, Adélia, creio que é chegado o momento de acabarmos com tantas iras e rancores. Não concordais?
Ela sorriu. E sorrindo olhou Manuel. Achou-o alto, belo, de olhar profundo e terno. E a tempestade não mais a incomodou...
Havia hora e meia que os jovens conversavam. E meia hora que a tempestade seguira para outras bandas. Foi Adélia quem despertou primeiro do sonho em que se haviam envolvido.
— Manuel, olhai o campo. Está quase seco. Decerto que há muito deixou de chover.
Ele acariciou-lhe os cabelos.
— Não vos aflijais. O que preciso é que cheguemos separados. Depois, tentaremos a pouco e pouco apaziguar os ânimos. Penso que não deve ser difícil falar ao meu pai.
— Tentarei também falar ao meu. Mas não já. Esperemos mais algum tempo.
— E sereis capaz de estar assim longe de mim?
— Virei aqui todas as tardes. Prometo!
Os jovens separaram-se. Iam tão contentes que nem deram pela presença da velha tia Avelina, uma espécie de bruxa que vagueava de vez em quando pelo campo em busca de ervas para as suas rezas.
E, assim, antes mesmo que Adélia falasse ao velho André, foi este que, dois dias depois, veio falar com ela. Estava furioso.
— De hoje em diante não mais sairás de casa!
Adélia tremeu. Mas teve forças para indagar:
— Porquê, senhor meu pai?
— Porque me desobedeceste!
— Em quê?
— Falas com o filho do Julião!
— Quem vos disse?
— Vi eu. Fui espiar-vos à cabana pertencente ao nosso inimigo. Que vergonha!
— E porque fostes até lá? Esse terreno não nos pertence!
— Fui levado pela velha Avelina. Foi ela quem descobriu tudo!
— E qual é o nosso crime?
— Bem sabeis que Julião e eu nos odiamos!
— Que vos fez ele?
André hesitou. Ela insistiu, heróica:
— Sereis acaso vós que...
— Não! Não lhe fiz nada. Mas odeio-o!
— E porquê?
— Porque o pai de Julião disputou uma das nossas propriedades. Bateram-se, ele e meu pai, e feriram-se. Então, à hora da morte, teu avô fez-me jurar que não me reconciliaria com o seu inimigo. E jurei. Depois da jura, meu pai, já com a voz extinta, declarou: «Se não cumprirdes a vossa promessa, virei do sepulcro para vos castigar o perjúrio!»
André suspirou fundo e continuou:
— Como vês, minha filha, não mais poderás falar ao filho de Julião Álvares.
Algum tempo passou. Adélia continuava encerrada em casa, chorando sem descanso e relembrando todas as palavras trocadas com Manuel. Por seu turno, o jovem enamorado vagueava pelos campos e não voltava a casa sem visitar a cabana meio desmantelada onde ele, certa tarde, conhecera o amor.
Entretanto, a velha bruxa congeminou um plano para a sua ganância e pô-lo logo em prática. Surgia, misteriosa e oculta, junto de Adélia, trazendo-lhe saudades e a confiança de Manuel. Daí recebia prendas ao desbarato. Depois, acercando-se de Manuel, levava-lhe suspiros e lágrimas de Adélia, recebendo dinheiro.
Desesperado com esta situação e sabendo que a sua amada se definhava, Manuel foi falar com um frade que por ali costumava passar, vindo de um convento próximo. Contou-lhe toda a sua história e pediu-lhe auxílio. Então, o frade reuniu o povo num domingo e falou-lhe sobre o tema: «Se não perdoardes... não sereis perdoado!»
Tão bem se houve o frade com a sua pregação, que o povo chorava sentido. Há sempre algo que perdoar. E em nós motivos não faltam que mereçam a generosidade de Deus. Ora o povo, que bem conhecia o ódio existente entre as duas melhores casas da região, olhava intencionalmente Julião Álvares e André Fernandes. Ajoelhados, os dois homens nem se atreviam a levantar a vista do solo.
Terminada a cerimónia, o povo dispersou-se. E o bom do frade foi visitar os antagonistas, cada um em sua casa. Falou-lhes novamente. Ouviu o receio de André em ser perjuro. Assegurou-lhe o frade que existem juras que Deus não aceita. Juras que levem as almas à condenação eterna não são atendidas. Enfim, de tal maneira o frade se esforçou em reunir as famílias desavindas, que conseguiu a reconciliação.
A alegria foi enorme. Organizou-se uma festa onde entrou todo o povo, e as bodas de Adélia e Manuel foram proclamadas.
Loucos de alegria, os jovens enamorados julgavam ainda estar sonhando. E enquanto o povo cantava, comia e bebia, os jovens estreitavam as mãos no receio de ser breve tão grande felicidade. Dizia ele:
— Meu amor, quis sempre dar-vos coragem, mas acreditai que cheguei a desanimar!
Num sopro, ela respondeu:
— E eu julguei que morria… sem tornar a ver-vos!
Enlaçaram-se. De súbito, a rapariga teve um movimento de receio. Ele perguntou:
— Que tendes?
— Olhai... além... aquele forasteiro... Olha-nos de uma forma estranha...
Manuel sorriu.
— Não o reconheceis?
— Não!
— É Lázaro, o neto da velha tia Avelina, que deve ter vindo de licença. É militar e anda na guerra.
Lázaro, continuava olhando Adélia de forma estranha. Dir-se-ia o gato quando descobre o rato e fica suspenso com receio de o perder ao primeiro movimento. Foi essa a impressão que a jovem sentiu. Mas o noivo não pareceu impressionado e em breve os receios de Adélia se evolavam.
A noite descera. Envolta numa nuvem de fumo que saía de um defumador, a velha Avelina entregava-se a práticas estranhas. Tossindo com a fumarada, Lázaro enervou-se:
— Deixe-se disso! Não acredito em bruxarias!
Indignada, a velha volveu:
— Como queres então conquistar Adélia, se ela está tão enamorada de Manuel?
— Há-de haver alguma maneira... Nem que tenha de a raptar!
A velha afligiu-se.
— Não faças isso, rapaz! Olha que te desgraças! Pensa lá bem: não haverá por aí outra rapariga?...
Lázaro cortou-lhe a palavra.
— Nenhuma me impressionou como Adélia. E estava abraçada ao outro quando a vi! Além disso… com dinheiro… não vejo mais ninguém.
A velha suspirou.
— Tens razão! Ela é o melhor partido cá da terra. Mas como há-de ser isso?
De súbito, deu uma palmada na testa.
— Espera! Que parva tenho sido! Há uma maneira!
Lázaro arregalou os olhos:
— Qual?
— Lembras-te da jura que André fez ao pai? Todo o povo sabe disso.
— Lembro-me. Mas não creio que o velho cumpra a promessa de vir lá de cima para castigar o filho.
— Não crês tu... mas crê o povo!
— E depois?
— E depois... tu serás o justiceiro!
— Eu?
— Sim, tu! Podes fazer de fantasma que vem do sepulcro castigar o perjuro.
Lázaro riu.
— Não me faltava mais nada! Escapar da morte tantas vezes para agora fazer de fantasma!
— Pois é a única maneira. Verás que André se tomará de medo e proibirá a filha de casar. Depois... entrarás tu no jogo.
Lázaro encolheu os ombros.
— Seja! Para apanhar Adélia serei fantasma, ladrão ou assassino, se preciso for!...
A tia Avelina bem espalhou a falsa notícia de que seu sobrinho voltara para a guerra. Bem o viram com a roupa aos ombros a despedir-se da gente do povo. Até foi a casa de André Fernandes e fez questão de dizer adeus à menina Adélia.
Nessa mesma noite, todo o povo ficou horrorizado com os lamentos e ruídos de correntes que vinham do lado do torreão onde morava André. E o povo comentou:
— É ele! É o pai de André Fernandes que vem castigá-lo!
Correram para a torre, formando um círculo. De súbito, os lamentos, os gritos estridentes ouviram-se mais alto. E do lado do cemitério apareceu uma figura branca que a passo lento se dirigia para a casa do torreão. Nesse momento a curiosidade das gentes foi inferior ao medo. Dispersaram em pânico. Em casa de André, Adélia, os criados e o próprio dono da casa, não duvidavam já do castigo do velho Fernandes. Mas o fantasma retirou-se depois de um grito prolongado.
Até à véspera da boda, todas as noites aquilo acontecia. Então, completamente tresloucado, o povo caiu em massa em casa de André, pedindo que desistisse do casamento de sua filha Adélia com o filho de Julião. André cedeu. Manuel e a jovem sentiram mais forte ainda esta segunda separação tão imprevista. Não acreditando em castigo de fantasmas — conforme lhe ensinara o frade seu amigo — juntou Manuel alguns companheiros dos mais fortes e desembaraçados, e esperaram a fúnebre aparição. Quando soavam as doze badaladas da meia-noite — hora fatídica nesse tempo — o fantasma, que ainda não havia sabido da resolução de André, surgiu na noite escura. Então Manuel e os outros caíram sobre ele. O fantasma ficou por terra sem cobertura e cheio de mossas. O povo veio espreitá-lo. E abriu a boca de espanto. Sim, era o jovem Lázaro! Bem o reconheciam! Insultaram-no. Bateram-lhe. Correu a velha Avelina a chamar a guarda. Porém, ao saber do sucedido, foi Lázaro quem a guarda levou preso, já a manhã vinha alta. Lograra fugir para o campo mas fora apanhado. Contudo, jurou vingar-se. Nos poucos momentos que esteve só foi a casa buscar o necessário para a sua grande vingança. Ao passar pela fonte do lugar pediu permissão para beber água. Foi-lhe concedida. E enquanto fingia que se dessedentava, deixou na água uns sapos negros, venenosos, que a avó tinha em casa.
Durante esse dia várias pessoas pereceram de doença súbita e ignota. No dia seguinte, dia da boda, Adélia, Manuel e seus pais morriam também, sem se saber de quê. O alarme correu. Parecia louco, o povo do lugar. Não havia casa onde não existisse pelo menos um cadáver. E no terceiro dia os que restavam fugiram espavoridos.
Os povos vizinhos no quarto dia olharam o céu. Uma nuvem de corvos sobrevoava a povoação amaldiçoada, que ficou como um escampado. Só mais tarde o jovem Lázaro confessou a sua grande vingança por um amor súbito não atendido!
Levou tempo para que Escainpados voltasse a ver gente feliz, edificando ali as suas casas.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 173-178
- Place of collection
- Ceivães, MONÇÃO, VIANA DO CASTELO