APL 2843 Lenda da Praga de Fogo

A lenda que vou contar nasceu em Mourilhe, pequena freguesia do concelho de Montalegre, junto ao rio Cávado. Aí, em tempos que já lá vão, vivia uma espécie de tribo moura que por motivo de guerras havia sido afastada dos seus palácios e castelos. O terreno em que podia circular era limitado e as relações entre mouros e cristãos continuavam difíceis. Mas Aben Amid, o filho mais velho de Mohamed, começou a sentir saudades das terras que tinha deixado e resolveu transpor o círculo que o fechava e descobrir novos caminhos.
Andando de povoação em povoação, Aben Amid veio até às margens do rio Minho. Aí, o destino fê-lo parar. Os seus olhos acabavam de extasiar-se ao descobrir uma linda minhota. Tentou falar-lhe. Da primeira vez ela esquivou-se. Mas Aben Amid era alto, forte, de rosto bonito e olhar profundo. Leonor — pois assim se chamava a rapariga cristã — em breve sentiu que não podia esquivar-se ao moço árabe, pois o seu coração chamava por ele. E a paixão dominou-os. Todavia, Aben Amid tinha de voltar a Mourilhe. E nessa tarde dispôs-se a pedir à bem-amada que partisse com ele para a sua aldeia.
Uma aragem fresca brincava com os cabelos de Leonor.
Ela sorria contente. Vendo-a tão bela, Aben decidiu-se. Jamais poderia conceber a ideia de uma separação.
Quase à queima-roupa declarou:
— Leonor! Tenho de voltar para a minha aldeia!
Ela empalideceu. Tremeu-lhe a pequenina mão. Tornou-se ansioso o seu olhar. Os lábios abriram-se, mas não conseguiu articular palavra. Aben Amid tomou-lhe as mãos num impulso de violento amor.
— Leonor! Vem comigo!
A rapariga não respondeu logo. Ele insistiu:
— Vem comigo, Leonor!
As lágrimas começaram a correr, silenciosas, pelo rosto da jovem cristã. E a sua voz conseguiu fazer-se ouvir:
— Aben Amid! Só a ti quero! Só a ti amarei! Mas não posso acompanhar-te! Sou cristã e tu és mouro. Se partir... não só atraiçoarei os meus como te obrigarei a impores aos teus a minha presença.
Aben Amid beijou-lhe as mãos e declarou:
— Todos obedecem a meu pai!
Cada vez mais triste, Leonor tornou:
— Assim creio que seja. Mas teu pai será o primeiro a insurgir-se.
Animando-a, Aben Amid não lhe dava tempo a pensar.
— Meu pai só pode desejar a minha felicidade. E quando te vir compreenderá porque te escolhi.
A jovem cristã olhou de frente o seu bem-amado.
— Aben, não estejas a tentar-me! Se tens de partir... vai-te depressa para que não oiça mais a tua voz!
— Se partir sem ti, morrerei de saudade... ou virei buscar-te, quer queiras, quer não!
Leonor já não chorava. Os seus olhos procuravam agora no horizonte uma imagem distante. E perguntou, sem desviar os olhos:
— E se eu for contigo? Que acontecerá?
Aben Amid apertou-a nos braços, num arrebatamento:
— Serei o homem mais feliz do mundo!
Leonor não respondeu logo. Deixou-se abraçar. Depois, acariciando os cabelos negros do jovem mouro, declarou decidida, embora apreensiva:
— Pois bem, Aben... prepara o teu cavalo. Mas promete-me que, se não me receberem com agrado, serás tu que voltarás comigo!
— Juro por Alá!
E a tarde, sumindo-se devagar, ainda sorriu feliz ao receber aquela jura.
 
Partiram os dois enamorados. Ele mais moreno ainda no seu traje claro. Ela muito branca e loira, no seu trajo garrido. Mas ambos, nesse momento, imensamente felizes!
Era manhã alta quando chegaram a Mourilhe. Pelos caminho ficavam-se a olhá-los. E os mouros cochichavam entre si, perguntando:
— Que mulher será aquela que Aben Amid leva no seu cavalo?
Mas não ousavam dar a resposta...
Entretanto Aben Amid entrava em casa do pai. O velho mouro, a ver o filho com Leonor, perguntou-lhe com severidade:
— Aben! Por onde andaste?
Ele respondeu:
— Não muito longe daqui.
— E quem é essa mulher?
— É aquela que o meu coração escolheu.
O velho mouro tomou-se de cólera.
— Endoideceste? Ela é cristã!
Serenamente, Aben explicou:
— Que por amor de mim deixou os seus e seguiu-me!
Duro, o velho mouro tomou:
— É, portanto, uma traidora, aos seus e à sua religião!
Aben revoltou-se.
— Não deve falar assim de Leonor, meu pai!
Leonor pela primeira vez fez ouvir a sua voz. Havia amargura nas suas palavras.
— Teu pai tem razão, Aben! Eu não devia ter vindo! Se não podias viver sem mim, ficasses na minha terra. E lá, meu pai, sendo cristão, receber-te-ia melhor do que o teu me está recebendo!
O velho mouro olhou-a com rancor.
— És cristã e orgulhosa! Pois saiam ambos! O meu tecto não pode albergar traidores!
Aben Amid tornou-se subitamente pálido. Jamais esperara tanta dureza, tanta incompreensão.
— Meu pai, não se amofine! Eu sairei. Pouco tempo mais a minha presença o poderá molestar.
O velho gritou:
— Que Alá faça cair sobre a tua cabeça o seu castigo!
Do fundo da sala surgiu uma fraca figura de mulher. Era Almina, a moura que criara Aben desde pequenino, pois era órfão de mãe. Ao vê-la, Aben correu a abraçá-la. Mas Almina pouca atenção lhe deu. Os seus olhos grandes estavam cravados no rosto congestionado do velho mouro. Sentenciou:
— Mohamed! Não faças tremer o poder de Alá!
E voltando-se para os jovens:
— Filho, a minha casa será tua!
Aben beijou-a na testa, agradecido.
— Sempre contei com a tua amizade!
Mas a voz do velho mouro ecoou, severa:
— Sai tu também, Almina! Quero ficar só!
Almina tomou uma das mãos da jovem cristã.
— Vem, minha filha. A minha casa é menos rica mas encontrarás nela mais amor.
E saíram os três, deixando Mohamed a espumar raivas.
 
Junto à porta da casa de Almina, esta parou. Beijou Leonor na testa e declarou, solene:
— Minha linda jovem de cabelos cor de Sol! Aqui tens o meu lar que será também o teu. Verás que hei-de amar-te como amo Aben Amid!
Havia lágrimas nos olhos e na voz de Leonor.
— Deus compensará a tua caridade!
Almina sorriu:
— Deus? Falas do teu Deus?... Ele nem sequer me conhece!
Leonor pegou-lhe com carinho numa das mãos:
— Deus vê tudo quanto se passa à sua volta! Também será capaz de perdoar-me, pois é infinitamente bom e generoso!
Almina parecia encantada. Olhou o «seu menino» e disse:
— Aben! A mulher que escolheste também agrada ao meu coração. Já tem duas amizades. Há-de conquistar o resto!
Aben conservava-se abatido.
— Duvido, minha boa Almina! Creio que em breve ficarás sem a nossa companhia.
Ela assustou-se:
— Não, Aben! Não quero morrer sem que os teus dedos fechem os meus olhos! Deixa-me falar a sós com o teu pai. Fiquem aqui. Não me demoro.
E Almina correu a casa do velho Mohamed. Com ar altivo, ela olhou os mouros que o rodeavam, desejosos de saber ao certo o que se estava passando. E exclamou com voz firme:
— Velho Amid! Ordena a essa gente que se retire porque preciso falar-te a sós.
A voz de Mohamed Amid soou, também vigorosa:
— Não me venhas pedir por Aben! Deixou de ser meu filho!
Almina achou coragem para se impor.
— Manda retirar essa gente, ou faço-os fugir com uma praga das minhas, que os fará tremer!
Mohamed teve um trejeito de raiva, mas ordenou:
— Retirem-se! Esta velha julga que temos medo dela... Depois voltarei a chamá-los.
Quando ficaram sós, Mohamed indagou:
— Que desejas de mim?
Sempre enérgica, Almina declarou:
— Desejo dizer-te que sou muito velha e assisti, portanto, ao desenrolar de vários acontecimentos.
— Foi para me dizeres isso que ficámos sós?
— Sim, para te dizer isso e muito mais!
E em tom mais cordial:
— Velho Amid! Porque não restituis a Aben a paz do seu coração? Ele ama aquela lindíssima Leonor. Não poderá esquecê-la!
Enérgico, Mohamed retorquiu.
— Ele só deve amar Zoleida, a quem o prometi! Ela espera-o a todo o momento.
Almina abanou a cabeça, numa reprovação:
— Bem sabes que o teu filho nunca amou Zoleida!
— Mas eu assim o quero!
— Ninguém pode mandar no coração! É para te recordar esta grande verdade que estou aqui, a sós contigo.
O velho Amid mostrou-se menos à vontade.
— Que pretendes de mim? Diz tudo por uma vez!
— Perdoa a teu filho pelo amor que dedicaste um dia à não menos bela Anália. E ela era também minhota e cristã!
O velho cerrou os punhos. Bateu com eles na sua própria testa, como alucinado. Depois gritou:
— Cala-te, velha danada! Não remexas na lama do passado!
— Remexo no passado para que ele reviva aos teus olhos! Lembra-te do que sofreu Zuraida, a pobre mãe de Aben, quando partiste e a deixaste em vésperas de ser mãe!
Mais fortemente ele gritou:
— Cala-te!
Porém Almina não se intimidava. Estava defendendo o «seu menino». Continuou:
— As lágrimas que Zuraida chorou com o teu encantamento pela linda minhota que surpreendeste um dia lavando-se no rio!...
Completamente tresloucado, Mohamed Amid avançou para a velha Almina.
— Cala-te, já, ou far-te-ei calar para sempre!
Jogando a própria vida, Almina continuou o mais serenamente que pôde:
— Anália, a tal minhota era fraca e débil. Não estava habituada a certa maneira de viver... Além disso, as lágrimas dos justos produzem o seu efeito… e Anália caiu doente e morreu pouco depois. Mas Zuraida perdoou-te… e tu voltaste… mais inflexível… mais duro… menos humano!
— Cala-te! Cala-te mulher!
— Falarei até ao fim! Zuraida era para ti um remorso vivo! Por isso a maltrataste, sendo ela a mãe de teu filho! E Zuraida morreu também!
Num berro, o velho indicou-lhe a porta.
— Vai-te! Vai-te por Alá... antes que morras também! Não te quero ver mais, nem a Aben... nem à tal minhota! Desapareçam todos da minha vista, antes que eu pratique qualquer acto desesperado!
Almina olhou Mohamed. Compreendeu que não valeria a pena insistir. Leonor, ali, seria um vivo remorso para Mohamed. E um deles, mais tarde ou mais cedo, teria de desaparecer. Sem mais uma palavra, saiu do aposento, a caminho de casa.
Ao entrar na sua modesta casinha, Almina tremia ainda de emoção. Aben correu para ela. Mas as lágrimas que deslizavam silenciosas pelo seu rosto disseram tudo. Abraçando a velha ama, o jovem declarou:
— Almina, não chores! Vamos partir os três para outras terras. Não poderei separar-me de ti.
Almina suspirou. Aben beijou-a na testa e reafirmou, seguro:
— Não ficaremos aqui mais tempo. Acompanha Leonor enquanto vou despedir-me de meu pai.
E sem esperar resposta, Aben Amid saiu. Sós, Leonor olhou a velha moura que criara o seu bem-amado.
— Almina, tu és tão boa! Não chores! Serás feliz em casa de meu pais, juro-te!
Almina olhou a jorem. Murmurou:
— Mas Aben sofre! Ele adora o pai... Ele adora-o!
Ficou um momento pensativo. Depois, o seu rosto iluminou-se.
— Espera, Leonor! Vou tentar um último recurso. Não me demoro. Talvez falando com Zoleida...
Leonor indagou:
— Quem é Zoleida?
— A moura que o ama desde pequenina e que Mohamed escolhera para nora.
— E Aben?
— Aben nunca a amou. Fica descansada, Leonor.
— Mas essa tal Zoleida... poderá fazer algo por nós?
— Talvez. Eu... também fiquei solteira porque Amar... o homem que eu amei... amou outra mulher... e eu deixei-o partir. Talvez que Zoleida… Ela ama-o tanto!..
Leonor olhava espantada para a velha Amima. Como era estranha e boa essa mulher! Mas já Almina saía de casa, quase correndo. Ia em busca de Zoleida. Porém, a jovem moura não estava onde Amima a procurou. Soubera que Aben se dirigia para casa do pai, trazendo outra mulher...
Então, entrara ali às escondidas e ouvira as palavras trocadas entre pai e filho. Desesperada, louca de dor e ciúme, compreendendo que nunca mais tornaria a ver Aben por via dessa linda minhota de cabelos louros, dirigiu-se a casa da velha Almina. Mas Aben estava lá. Escondeu-se. Esperou o momento propício. E quando a sorte deixou Leonor só, à disposição de Zoleida, esta entrou devagar, como uma sombra, em casa de Almina, e apunhalou Leonor pelas costas. Depois fugiu cobardemente, esperando o resultado da sua louca façanha.
Quando Aben e Almina reentraram em casa, julgaram morrer de dor. Almina não encontrava lágrimas, nem voz, nem movimentos. Parecia petrificada! Aben correra sobre o corpo da sua infeliz bem-amada. Dizia-lhe coisas sem nexo. Beijava-a sobre o seu sangue. Dir-se-ia querer com o seu calor restituir a vida à que a vida lhe roubara. E só passados longos momentos Aben se voltou para a velha ama.
— Almina! Deixa ver o meu manto. Quero cobrir com ele o corpo de Leonor.
Quebrando o gelo que a petrificara, Almina gritou numa fúria:
— Malditos! Mil vezes malditos!
Aben tinha os olhos rasos de lágrimas. O queixo tremia-lhe.
— Vamo-nos embora!
— Para onde?
— Para longe disto tudo!
— E vais levar Leonor?
A voz de Aben soou aparentemente calma:
— Levo! Leonor é minha! Ninguém se regozijará com a nossa dor!
Almina alarmou-se ainda mais:
— Aben, meu querido menino! Leonor está morta... Como havemos de levá-la?
Aben nem pestanejou. Olhava fixo a sua bem-amada.
— Leonor é minha! É minha! Ninguém poderá arrebatar-me este precioso tesouro!
Almina volveu-lhe:
— Aben! Mas Leonor está morta!
— Leonor viverá para mim! Só para mim! Partamos, Almina!
Almina começou a gritar:
— Aben! Enlouqueceste, meu filho! Agora já não poderemos partir! Leonor está morta! Morta, compreendes?
Abraçando Leonor de encontro ao peito, Aben montou no cavalo e deu de esporas, gritando ainda:
— Pois fica tu, já que não queres acompanhar-nos! E diz a meu pai... que seremos felizes os dois!...
O trote do cavalo foi rareando aos ouvidos de Almina. Ficara de novo como petrificada. Mas a reacção violenta surgiu. Gritou como protesto:
— Aben! Aben! Meu filho! Perdeste a razão! Vem cá! Volta, Aben!
Mas Aben já ia longe e nunca mais voltou. Desesperada, Almina voltou-se para o casario da aldeia:
— Malditos sejam todos os desta terra! Que o fogo destrua estas casas, o fogo que hei-de pôr com estas minhas mãos! Oh, hão-de saber quem é Almina, malditos cães danados! Enquanto o fogo não destruir esta terra por três vezes, jamais ela será purificada!
E rouquejando de tanto gritar:
— Mourilhe! Esta é a praga que te roga a velha Almina!

E Mourilhe sofreu por três vezes a praga de fogo!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 289-295
Place of collection
Mourilhe, MONTALEGRE, VILA REAL
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
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