APL 3043 Lenda da Donzela Soldado
Conta o povo, nas suas histórias amassadas com verdade e fantasia, que em Garvão, no distrito de Beja, existiu em tempos um castelo habitado por um nobre chamado D. António de Azevedo. Este nobre tinha uma filha muito bela, embora se não conhecesse bem a origem do sangue materno. O pai adorava-a e fazia-lhe todas as vontades por mais excêntricas que parecessem. Contudo, quando a viu já mulher, pensou logo em casá-la com um nobre da sua estirpe, rico e com poder.
Escolher noivo para a bela Vitória — tal era o nome da donzela — parecia tarefa simples, pois quem a via logo gostava dela. Porém, Vitória encontrara certo dia um jovem chamado Florêncio. Vinha de Granada, trazia fama de guerreiro, pois ali combatera os mouros, mas não era nobre nem poderoso. Conhecendo os desejos de seu pai, Vitória não quis contar-lhe a sua paixão repentina; e passou a encontrar-se em segredo com Florêncio, sem no entanto desencorajar as intenções paternas. E um dia, como era inevitável, o pai interpelou-a:
— Minha filha, temos de pensar a sério no teu casamento.
Ela disfarçou, sorrindo.
— Ora... ainda sou tão nova, não achais?
— Há mais de um ano que andas a dizer isso! Não pensas, na verdade, em casar?
— Eu penso, mas...
— Mas o quê?
— Qual o noivo que me destinais?
— Aquele que as mulheres tuas amigas vão invejar!
— Quem? Florêncio de Granada?
— Não! Esse é um rapazote sem futuro, que não me serve para genro!
— Mas serve-me para marido!
— Que dizes?
— Que só amo Florêncio e só com ele casarei!
O pai de Vitória não cabia em si de espanto.
— Sabes o que estás a dizer?
— Inteiramente.
— Deves-me obediência, não o esqueças!
— Acaso tenho sabido o que isso é ao longo da minha vida? Sempre me fizestes todas as vontades, mesmo quando alguma era menos acertada. Porque me contrariais agora?
— Porque és minha filha e já concertei o teu casamento com alguém a quem não devo faltar. Previno-te que ele chegará aqui dentro de um mês. Quanto ao tal Florêncio, em breve o verás partir, de novo, para a guerra!
— Cuidado, meu pai! Não obrigueis Florêncio a partir! Nunca vos perdoaria.
— Vosso noivo não poderá encontrá-lo aqui!
— Mas eu já odeio esse homem que pretendem impor-me, embora ainda não saiba quem é!
— E eu, pela primeira vez, imponho que o aceites para teu esposo.
E sem dar tempo a ouvir qualquer resposta desabrida, D. António deixou o aposento, onde Vitória ficou como que aturdida. Era a primeira vez que via o pai tão intransigente. Mas no dia seguinte, quando esperou em vão pela chegada de Florêncio, compreendeu que o caso era sério: seriam capazes de lhe impor um marido, desmentindo todo um passado de transigências e fraquezas, sempre que ela tratara de impor a sua forte vontade.
Vitória quis saber de Florêncio. Já não escondia de ninguém o seu amor. Mas uns não sabiam dele. Outros, melhor informados, disseram-lhe que havia partido para se alistar nas guerras contra os mouros.
Chorou Vitória amargamente. Deixou de comer, de sorrir, de dormir. Mas no seu peito pouco afeito à derrota, um sentimento mais forte surgiu de repente: o desejo de vingança. Voltou a comer, a sorrir e a dormir. Tinha o seu plano. Seria uma questão de tempo. Arranjou dinheiro e aliciou um mensageiro para que buscasse Florêncio, lhe contasse a verdade, que certamente tinha sido deturpada, e o fizesse regressar em segredo para a raptar no próprio dia do casamento.
Entretanto chegava o noivo de Vitória. Era mais velho do que ela doze anos, baixo, fraca figura, embora de boas maneiras. Ao vê-lo, Vitória começou a rir, o que fez corar D. António e empalidecer o festejado. Havia muita gente convidada para assistir ao anúncio de casamento. E embora nem todas as damas desejassem o recém-chegado para esposo, todas censuravam o procedimento descortês de Vitória.
Cada vez mais alarmado com o carácter da filha, D. António só pensava em casá-la o mais brevemente possível. E assim o casamento foi marcado. Sem se alterar, Vitória ouviu o anúncio. Teria ainda quinze dias de liberdade. E nesses quinze dias Florêncio, que não poderia estar longe, haveria de voltar!
O dia do casamento chegou. Vitória, mais pálida do que nunca, já não ria. Florêncio ainda não tinha dado sinal de si. Chegou a hora fatídica. Foi levada ao altar pelo braço magro e curto de um marido que detestava. Mordia os lábios para não chorar, a turbulenta Vitória. Numa angústia crescente, assistiu ao banquete nupcial. Não comeu nem bebeu. Nem mesmo quando seu esposo lhe veio trazer aos lábios uma taça de bom vinho. Parecia a estátua do ódio, ou da vingança!
Alguém segredou a D. António:
— Não auguro nada de bom deste casamento!
Embora receoso da atitude da filha, mas supondo Florêncio fora de jogo, D. António respondeu:
— Agora, já não é comigo: é com o marido! Disse que Vitória casaria com ele... e casou!
Mas a pessoa que interpelara o dono da casa teve uma expressão de perplexidade: acabava de ver sorrir Vitória como em triunfo. Alguém lhe dissera algo que a transformara. Alguém que chegara junto dela e saíra no mesmo instante.
O momento difícil aproximava-se. Vendo sua filha beber e comer com apetite, D. António sorriu aliviado. O esposo conduziu Vitória para o quarto nupcial. Ela ia pálida, como quem tivesse que decidir um caso de vida ou de morte.
Já no aposento, o marido declarou:
— Vitória... Deste momento em diante sois minha esposa; e devo prevenir-vos que não encontrareis em mim a benevolência que sempre encontrastes em vosso pai!
Numa voz sem cor, ela respondeu:
— Sei o que me espera e o que vos espera!
— Neste momento... o leito nupcial!
Vitória sentiu um suor frio correr-lhe pelo corpo. Se era verdade o que lhe haviam dito durante o banquete, que Florêncio acabava de chegar, porque tardaria tanto? O momento crucial já não tardava, e por nada deste mundo ela desejaria entregar-se a esse homem com quem casara odiando-o.
Ele aproximou-se.
— Em que pensais, que tanto vos atormenta?
Vitória não respondeu. Ele tornou:
— Sou o vosso esposo! Devo saber tudo quanto vos aflija.
Ela mordeu os lábios. Depois encarou-o de frente.
— Já que tanto insistis, sabei que amo outro homem e casei convosco! Mas ficai sabendo que jamais vos pertencerei!
O fidalgo empalideceu.
— Compreendeis o valor das vossas palavras? Podia repudiar-vos neste momento e ficaríeis marcada para sempre. Mas amo-vos e quero-vos! Para isso fecharei os olhos e os ouvidos para não ver a vossa expressão de ódio nem escutar os vossos vitupérios!
— Pois fechai-vos também a vós, para que eu vos não veja nem oiça! Odeio-vos, repito!
Ele começou a encolerizar-se.
— Não desafieis os meus sentimentos! Sou homem habituado ao comando! Sei como fazer-me obedecer!
— Pois experimentai!
Ele cerrou os punhos. Respirou fundo. Baixou o tom de voz.
— Vitória, deixemo-nos de discussões impróprias da nossa condição! Vou tirar a minha roupa e espero que vos apronteis também.
Vitória viu a espada do esposo sobre uma cadeira. Ele estava desarmado e ela aprendera, num dos seus muitos caprichos de rapariga, a manejá-la como poucos homens o faziam. A espada era como uma forte tentação. Então, num impulso incontido, a indomável Vitória pegou na espada e enterrou-a de surpresa no peito daquele que lhe haviam dado para esposo. O fidalgo caiu morto no solo. Logo, Vitória vestiu a roupa do marido. E com todas as suas armas, absolutamente irreconhecível, de cabelo cortado, saiu do castelo em busca de Florêncio. Depressa o encontrou. Mal o viu correu para ele.
— Florêncio!
Varado pelo espanto, o rapaz nem sabia que dizer. Ela informou-o do sucedido.
— Acabo de cometer um crime. Deixei trespassado pela sua própria espada aquele que me haviam dado por marido!
Florêncio ia responder. Mas já uma patrulha se aproximava. Um dos homens gritou:
— Apanhem-nos! É Florêncio de Granada com um amigo! Decerto sabe onde escondeu D. Vitória, que desapareceu do castelo!
O grupo rodeou-os. Com grande espanto de Florêncio, a sua bem-amada feria quantos dele se aproximavam com uma destreza quase diabólica. Quando parecia estar tudo terminado, um dos feridos, que correra a buscar socorros, voltou gritando:
— Prendam-nos! Mataram o genro de D. António de Azevedo!
Vendo o caso mal parado, Florêncio gritou para Vitória:
— Foge para Granada enquanto eu os aguento! Se puder, irei ter contigo!
A rapariga esgueirou-se por entre os guardas e logrou fugir. Porém, Florêncio ficou prisioneiro. Acusaram-no da morte do rival. Para não culpar Vitória, não negou o crime. Por isso foi julgado e condenado à morte.
Alucinada com a ideia de que o seu bem-amado iria pagar por um crime que não cometera, Vitória vagueou pelos campos, sem rumo certo. Junto à fronteira foi surpreendida por um grupo de bandoleiros. Atacada, deixou-se prender. Estranharam os homens a sua compleição física e a sua voz. Mentiu com um à vontade que os convenceu. Disse que era um oficial jovem que fugira por ter cometido irregularidades e morto um superior. Em seu lugar ficara um amigo íntimo que estava inocente e ia morrer. Pediu para viver com eles, ajudá-los, e logo que acreditassem no seu valor militar e na sua bravura o ajudassem a salvar o amigo.
Acederam os bandoleiros. Nessa mesma noite forjaram um assalto. Tamanha intrepidez mostrou a jovem, que ganhou a admiração dos companheiros proscritos. Três dias depois, Vitorino — tal como Vitória disse chamar-se — propôs que assaltassem a prisão onde Florêncio estava encerrado, na vila de Garvão. De princípio, os bandoleiros acharam a obra muito arriscada, sem proveito que se visse. Mas com tal entusiasmo Vitorino expôs o seu plano, que os homens cederam.
Penetraram de noite na vila, até próximo da prisão, que ficava junto da muralha norte do castelo. Envergando o seu rico traje militar, fácil foi para Vitória chegar à porta da cadeia, que lhe foi franqueada, sem suspeitas. Mal entrou, atacou os guardas, que caíram feridos. Logo os bandidos correram a tirar as chaves ao carcereiro. Os condenados saíram todos. Não havia tempo para distinções. Depois de largarem fogo à prisão, Vitória e os seus companheiros fugiram, levando Florêncio com eles.
No acampamento dos bandoleiros, Vitória ria e bebia. Florêncio, porém, não se mostrava contente. Vitória interpelou-o:
— Não nos agradeces o que fizemos por ti?
Florêncio respirou fundo, antes de responder:
— Desde que a minha noiva morreu, a minha vida acabou-se para mim.
Um dos bandidos perguntou:
— E como morreu ela?
— Quando soube que eu fora condenado à morte.
— Mas não foste tu o culpado!
— Libertou-te! Portanto, agora, goza a vida!
Esta frase fora de Vitória. Florêncio abanou a cabeça.
— Já te disse que não mais serei feliz sem a minha noiva!
Ela mostrou-se enervada.
— Terás as noivas que quiseres! E talvez a tua não tenha morrido. Talvez esteja bem perto de ti. Procura-a! Ela foi capaz de tudo, para ficar fiel ao seu amor!
Florêncio murmurou:
— Foi longe demais! Agora só tenho um caminho: seguir para Granada e alistar-me.
Ela revoltou-se:
— Não! Não irás!
— Porque não?
Escondendo a sua condição dentro do grupo de bandoleiros, Vitória declarou:
— Não te deixarei partir sem mim! Tudo o que fiz e o que faço foi para te agradar, para não pertencer a outro homem!
Os bandoleiros olharam-na surpreendidos. Um deles exclamou:
— Bem me queria parecer que ela era uma mulher. Disse-o ao chefe e ele pregou-me um sermão! Iludiste-o com a destreza com que manejas a espada e matas o teu semelhante!
Florêncio concordou:
— É isso! Para Vitória, o seu semelhante não conta, só conta a sua vontade. Como me sinto desiludido! Não foi esta a mulher que amei!
Desesperada, Vitória levantou-se e desafiou Florêncio:
— Pega nesta espada e mata-me, se tanto me odeias!
Ele voltou-lhe as costas. Ela gritou-lhe, enfurecida:
— Aonde vais?
— Para Granada!
— Pois não irás, eu te prometo!
E abriu-lhe o peito de uma só estocada. Florêncio caiu morto, murmurando:
— Ó Senhor Deus! Dai-lhe entendimento, para que possa ainda salvar-se!
Os bandoleiros entreolharam-se. Aquela mulher nem para eles servia. Vitória pediu uma enxada, abriu uma cova, enterrou aquele a quem sempre amara no seu imenso egoísmo, e partiu a caminho de Granada. Aí conseguiu, mercê de várias mentiras, alistar-se como soldado no tércio de voluntários que ia partir para a Flandres.
De tal forma heróica se portou esse soldado, que a todos causava estranheza e em breve era um dos mais respeitados. A sua bravura, a sua destreza, a sua camaradagem, os seus actos de altruísmo começaram a tecer à sua volta uma auréola de mistério. E o que mais espantava os seus companheiros era os momentos em que, julgando-se isolado, o jovem soldado chorava amargamente e pedia perdão a Deus!
Certa vez, porém, o soldado caiu ferido. Foi levado em braços e o seu segredo descoberto. Conservava-se ainda donzela. Pediu um padre, confessou-se de todos os seus crimes, e morreu pronunciando o nome de Deus, que pelas suas culpas havia morrido numa cruz, e o nome de Florêncio, vítima do seu terrível egoísmo.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 339-344
- Place of collection
- Garvão, OURIQUE, BEJA