APL 3001 Lenda da Prisioneira Enamorada

No lugar de Torre da freguesia de Bouro houve em tempos longínquos um castelo com uma torre de menagem, que já hoje não existe. Diz a lenda que o senhor de uma família fidalga organizou em certa ocasião um torneio ao qual assistiram cavaleiros de vários países. Ora, o senhor de Bouro tinha uma filha lindíssima, para quem já havia escolhido esposo entre os mais nobres que viriam ao torneio. Seria ela, a formosa Almerinda, quem entregaria ao vencedor o prémio obtido pelo seu esforço, destreza e valentia.
Almerinda não tinha contudo preferência por qualquer dos fidalgos. O seu jovem coração conservava-se virgem de amor. Nem sequer conhecia a intenção do pai. Daí a curiosidade e o anseio natural que manifestava em relação aos fidalgos convidados.
Na véspera do torneio, já os concorrentes tinham chegado e eram hóspedes do senhor de Bouro. Almerinda, porém, não tinha licença para aparecer senão no dia da festa, para assistir às justas e entregar o troféu ao vencedor. Todavia, como ardia em curiosidade, deu instruções à sua aia e companheira Raquilde para que iludisse a vigilância e entrasse no torreão norte onde estavam hospedados os concorrentes.
A ausência de Raquilde, que se conservou afastada apenas algumas horas, pareceu um século à jovem castelã. No castelo, o movimento era desusado. Ouviam-se o matraquear das ferraduras dos cavalos no lajedo dos pátios e as gargalhadas dos escudeiros que acompanhavam tão grandes senhores. Ouvia-se ainda, de quando em vez, toques de alaúde e algum cantar de trovador. Almerinda sonhava. Sonhava com o seu príncipe encantado, um jovem esbelto de olhar profundo, falas meigas, estrangeiro e tão valente que fosse ele quem alcançasse o prémio a receber de suas mãos. Mas não conseguia ouvir mais que vozes confusas.
A excitação de Almerinda era cada vez maior, crescia com o fim da tarde. Quase ao escurecer, Raquilde apareceu-lhe, também deveras alvoroçada. A jovem castelã correu a fechar-se com a sua companheira de brinquedos.
— Raquilde! Diz-me tudo o que sabes... e o que fizeste.
A jovem aia estava ofegante.
— Senhora, vim correndo porque ia sendo descoberta pelos guardas.
— Mas que viste?
— Muitos homens.
— E como eram eles?
— Todos fortes, tagarelas e distintos.
— Novos ou velhos?
— Quase todos muito jovens.
— De que nações?
— Disse-me um moço de estrebaria que vieram dois espanhóis, dois franceses, um inglês e seis portugueses.
— Tantos?
— É verdade. O torneio terá diversas fases. Ele explicou-me, mas eu não percebi bem.
Almerinda estava cada vez mais excitada.
— Como conseguiste vê-los?
— Disfarcei-me de criado e fui levar-lhes bebidas.
A jovem castelã levou as mãos ao rosto.
— O que tu fizeste por mim!... E que te pareceram?
— Distintos.
— Todos?
Raquilde sorriu enleada.
— Entre todos... pareceu-me...
Vendo-a hesitar, Almerinda incitou-a:
— Diz tudo! Quero saber tudo!
— Bem... Não gostei dos franceses!...
— Porquê?
— Um deles é quase um velho; e o outro...
— No outro, que lhe achaste?
— Disse-me que eu tinha cara de mulher... e depois...
— Depois, o quê?
— Foi grosseiro comigo. Disse qualquer coisa aos outros que os fez rir perdidamente.
Almerinda franziu as sobrancelhas e exclamou:
— Ponhamos de parte os franceses. Mas o inglês? Como o achaste?
— Triste. Esteve sempre a um canto. Pareceu-me altivo. Olhava para todos como se nada lhe agradasse... E é demasiadamente pálido e louro.
— E os portugueses?
Raquilde suspirou:
— Dos portugueses... só três se aproveitam. Os outros têm uma cara horrível.
— E desses três... qual achaste melhor?
Raquilde hesitou:
— Não sei bem. São todos bem parecidos. Mas um fala e gesticula como se estivesse em casa dele. Manda nos criados com tal arrogância, que já ouvi rogarem-lhe uma praga! Tratam-no por senhor D. Álvaro.
Almerinda meneou a cabeça.
— Não gosto de arrogâncias demasiadas. Mas diz-me: e os espanhóis?
Raquilde sorriu.
— Um deles parece um velho cocheiro, com uma barriga que nem sei como se atreve a montar um cavalo e a entrar num torneio.
— E o outro?
Raquilde calou-se um instante. Parecia confusa. Almerinda insistiu:
— E o outro?
A jovem aia mordeu os lábios antes de responder.
— Senhora... O outro... descobriu que eu era mulher!
Almerinda afligiu-se.
— Que dizes? Que aconteceu?
— Esperou-me no corredor e, tirando-me o gorro onde escondia os meus cabelos… fez com que estes se espalhassem pelos meus ombros.
Almerinda corou. 
— Pobre Raquilde! E depois?
— Depois... calculai... perguntou se eu era a bela Almerinda. Claro que neguei logo… e tive de lhe contar toda a verdade.
Almerinda tapou o rosto com as mãos.
— Que horror! Nunca devias ter descoberto o meu segredo!
Raquilde choramingou:
— Tendes razão! Fui fraca ante aquele olhar tão franco, tão límpido... e tão belo!
Almerinda franziu as sobrancelhas.
— Raquilde! Falas como se ele fosse na verdade o homem mais belo que viste até hoje?
Num assomo de sinceridade, Raquilde disse apenas:
— E é!
Fez-se um pequeno silêncio. Almerinda sentiu invadi-la um mal-estar estranho. Raquilde, por seu turno, não ousava olhar de frente a sua jovem ama. Foi a castelã quem quebrou o silêncio.
— E sabes, ao menos, quem é esse homem?
— Sei. É o alcaide de Maldá. Talvez o menos poderoso, pois traz apenas três homens na sua comitiva. Mas é, acreditai, o que tem melhor figura, o melhor rosto... os mais belos olhos... uma voz que enleia a mulher que o escuta!
Almerinda enervou-se.
— Falas como uma enamorada. E lembra-te de que ele... e os outros... são hóspedes de meu pai...
Raquilde, sempre de olhos baixos, retorquiu:
— Não esquecerei que sou uma das vossas mais humildes servas.
Havia tristeza nas palavras da jovem aia. A castelã de Bouro assim o compreendeu. E para pôr termo à embaraçosa situação, ordenou:
— Prepara-me as roupas da noite. Quero recolher cedo. Amanhã será um dia excitante, e pressinto que destes onze cavaleiros meu pai escolherá o meu futuro esposo. Oxalá eu o possa vir a amar!

O dia nasceu risonho e já veio encontrar o castelo em grande azáfama. Houve, até, quem não se deitasse para preparar o festim.
Começaram a chegar outras damas, muito belas e ricamente ataviadas. Almerinda, num lindo vestido de tule azul pálido bordado a ouro e pérolas, estava fascinante.
Os jogos começaram logo de manhã. Mas o principal seria ao meio da tarde. A jovem castelã era como uma flor rara entre as outras senhoras convidadas. E, um a um, os cavaleiros que tomavam parte nos jogos iam sendo apresentados a Almerinda. Em primeiro lugar, o altivo e distante inglês. Depois vieram os franceses. Em seguida os espanhóis. Almerinda fervia de interesse. Mas não precisou que lhe anunciassem o alcaide de Maldá: descobriu-o logo entre os onze disputantes dos diversos jogos. E descobriu-o porque Raquilde o descrevera perfeitamente...
Quando chegou a vez dos portugueses, o senhor de Bouro deixou propositadamente para o fim aquele em quem pusera as suas esperanças para futuro genro. Declarou, de olhos brilhantes:
— Minha filha, apresento-te o senhor D. Álvaro de Miranda, a quem muito estimo e que nos honra com a sua presença.
O jovem inclinou-se. Tinha um belo porte.
— Sois tão bela quanto imaginei! Vosso pai não exagerou a vossa descrição!
Almerinda olhou o pai. O outro tornou:
— Se vos não importais, ficarei convosco enquanto não se realizam os jogos mais arriscados. Não entro em coisas banais.
A jovem sorriu. Mas em breve o seu sorriso se esvaía. Compreendera que esse jovem altivo devia ser aquele de que Raquilde lhe falara e que também não tivera o dom de conquistar o seu coração. Todavia seu pai dava-lhe, publicamente, honras especiais, e isso poderia ser mau prenúncio.
As justas começaram. De quantos jogos se celebraram, sobressaiu em grande plano o jovem espanhol de olhar profundo. E quando se chegou ao final do torneio, foi o troféu entregue ao vencedor: o alcaide de Maldá!
À noite houve festa nos salões. E o alcaide de Maldá conseguiu falar a sós com a jovem castelã. O amor nasceu com impetuosidade naqueles dois corações. Um amor espontâneo desde o primeiro momento em que os seus olhares se trocaram. Porém, logo caíram na realidade. O senhor de Bouro tinha os seus planos e breve tratou de os transmitir à filha: era o fidalgo português, D. Álvaro de Miranda, que lhe destinara para marido!

Certa tarde, uma semana depois de terem terminado os festejos, declarou-lhe:
— Almerinda! Constou-me que D. Afonso de Maldá procura falar-te amiudadas vezes.
A jovem ficou uns momentos amedrontada, mas confirmou:
— Assim é, meu pai.
O castelão impacientou-se.
— Pois fica sabendo que tenho outros projectos: casarás dentro de dois meses com o senhor D. Álvaro de Miranda, cavaleiro de boas famílias e de bons haveres!
Almerinda empalideceu.
— Senhor, eu não amo a D. Álvaro!
— Cedo o amarás. A maior parte das damas que aqui estiveram regatearam as suas atenções.
— É possível. Não pretendo diminuir o valor de tão nobre cavaleiro. Contudo...
O castelão interrompeu a filha.
— O que pensas neste momento não me interessa. Se tens nalguma conta a vida do alcaide de Maldá, diz-lhe, hoje mesmo, que se retire para a sua terra, pois deste momento em diante, se te cortejar, afrontará a honra de teu noivo, o nobre D. Álvaro de Miranda, e a de teu velho pai! E as afrontas de honra pagam-se com a vida!
Almerinda sentiu uma tremenda vontade de chorar. Mas dominou-se.
— Senhor! Deixai então que fale ainda uma vez com D. Afonso. Ele foi o cavaleiro mais em evidência nos festejos. Merece a cortesia de que seja eu, de viva voz, a anunciar-lhe os vossos desígnios a meu respeito.
O senhor de Bouro hesitou uns instantes, mas declarou por fim:
— Seja! Falarás com ele na presença da tua aia Raquilde. Quando voltas a vê-lo?
— Daqui por duas horas.
— Pois diz-lhe também que esta noite mesmo terá de abandonar as nossas terras. Só a D. Álvaro permito que se conserve aqui por mais alguns dias!

A tarde, caindo, deixava no horizonte uma espécie de fumo que se esbatia, e a paisagem surgia como vista através de lentes embaciadas. A hora do entardecer, hora de penumbra, hora cinzenta, como certo poeta lhe chamou, tem o condão de pôr nas almas um pouco dessa mesma penumbra.
Posta ao corrente do assunto pelo senhor de Bouro, Raquilde olhava a sua ama sem articular palavra. Respeitava-lhe o silêncio, pois de silêncio necessitava também o seu cérebro e o seu coração. Raquilde amava, violentamente mas em segredo, o jovem alcaide de Maldá. Sabia que jamais podia aspirar à reciprocidade desse amor. Mas para ela, a quem a natureza negara sempre uma completa felicidade, já lhe bastava vê-lo e ouvi-lo, mesmo que o olhar dele se dirigisse a outra e as suas palavras de amor fossem para a que a elegera sempre como sua companheira privilegiada. Assim, saber que ia perder totalmente a possibilidade de estar uns momentos por dia contemplando aquele a quem dera já o seu coração atordoava-a. Enlouquecia-a quase. E perguntava a si mesma, no silêncio do seu coração, como poderia a sua ama mostrar-se aparentemente tão tranquila. Se fosse com ela, arriscaria tudo. Tudo! Amizades e a vida, para não mais deixar D. Afonso!
Estando nestas reflexões, Raquilde estremeceu quando Almerinda, cortando o silêncio que as rodeava, observou:
— São horas! Acompanha-me ao pátio sul e fica alerta, pois não quero que algo de mal aconteça a D. Afonso!
Sem responder, Raquilde seguiu a jovem Almerinda, que se embrulhava num manto de tecido raro. Queria estar mais bela ainda, nesse derradeiro encontro.
Não esperou muito, a jovem castelã. A poucos passos, saindo por detrás de um arbusto, D. Afonso veio ao seu encontro. Estranhou a palidez da jovem.
— Almerinda! Que tendes?
— Meu pai foi informado do nosso amor e opõe-se terminantemente a ele. Vai casar-me com D. Álvaro daqui a algumas semanas!
Foi a vez do alcaide de Maldá empalidecer. Mas perguntou:
— E qual é a vossa resolução?
Almerinda olhou o jovem cavaleiro.
— Que imaginais?
Ele impacientou-se.
— Não sei. Dizei-mo!
— Meu pai consentiu em que viesse até aqui dizer-vos que abandoneis estas terras para sempre!
— Assim o quereis?
Ela olhou-o com energia.
— Sim!... Mas levai-me convosco... e já!
Um grito abafado fê-los voltar a cabeça. Era Raquilde, que não soubera calar o seu desgosto. Chorava! Almerinda perguntou:
— Porque chorais?
Ela gritou:
— Levai-me também convosco!
Porém o seu olhar suplicante não se dirigia à sua jovem senhora mas ao alcaide. Almerinda compreendeu então toda a extensão do drama. E exclamou:
— Raquilde, bem sabes que é preferível ficares! Diz a meu pai que fugi, mas para França e não para Espanha!
E voltando-se para D. Afonso:
— Partamos imediatamente para o castelo de Maldá!
Sem hesitar, D. Afonso tomou a jovem nos braços, sentou-a à garupa e partiu num galope. Caindo por terra, chorando, Raquilde nem reparou que a tarde findava. Os cavaleiros do senhor de Bouro vieram encontrá-la nessa mesma posição, gemendo e chorando.
Interrogada pelo próprio D. Álvaro, ferido no seu amor próprio e no seu ciúme, fácil foi arrancar à jovem aia o segredo da sua ama. O despeito é arma terrível para quem a sabe manejar. Ela própria pediu que a levassem ao castelo de Maldá, onde encontraria a sua senhora.
Preparou-se, rápida, a perseguição. Saíram o senhor de Bouro, D. Álvaro de Miranda, dois acompanhantes e a aia.
Havia três horas que Almerinda havia chegado ao castelo de Maldá. Tudo lhe parecia belo. Tudo tinha um significado novo. Olhava o céu azul de um dia bonito, tão cheio de promessas. Sorria! D. Afonso perguntou-lhe:
— Estais feliz?
— Muito! Aqui, respiro liberdade!
De súbito, calou-se. Observava, pela sacada, um cortejo de cavaleiros que se aproximava. Chamou:
— Afonso, vinde ver! Não achais que daquela banda… podem vir da minha terra?
D. Afonso não respondeu. A cavalgada aproximava-se cada vez mais. Ela voltou-se para o alcaide.
— Podeis recusar-vos a recebê-los! Sois o alcaide e eles não serão bem-vindos!
D. Afonso continuou pensativo. Depois acariciou o rosto da sua bem-amada.
— Querida! Se o vosso pai me procurar, devo-lhe uma explicação. Mas, na verdade, não posso bater-me com ele!
Almeripda retorquiu:
— D. Álvaro acompanha-o, decerto! 
— Nesse caso... não devo ocultar-me! É a minha honra que fica em jogo!
E afirmando-se melhor no grupo, cada vez mais próximo:
— Reparai! Ali vem vosso pai, D. Álvaro, dois criados e a vossa criada Raquilde!
Almerinda mordeu os lábios.
— Foi ela! Foi ela quem nos atraiçoou!
— Talvez!
— Estou certa! Ela teve a ousadia de amar-vos e quer vingar-se! Quem havia de supor! Pois descei, que eu também quero recebê-los!
 
O encontro foi duro, rápido, inesperado. Mal se viram, D. Álvaro e D. Afonso cruzaram as espadas. Rijo e um tanto atabalhoado foi esse manejo. Mas D. Afonso, mais sabedor e valente, feriu de morte D. Álvaro. Então, num acesso de raiva incontida, o senhor de Bouro, esquecendo a sua idade, desafiou D. Afonso. Procurava matá-lo, fosse como fosse. As duas mulheres assistiam aterrorizadas à cena. D. Afonso apenas se defendia. Não queria matar o pai da sua bem-amada, nem sequer ferir um velho num combate desigual.
Subitamente, Raquilde correu para a frente da espada de D. Afonso, exclamando:
— Matai-me, vós, pois que vos amo sem remédio!
D. Afonso ainda quis desviar o golpe, mas não o conseguiu: o senhor de Bouro feriu mortalmente a jovem Raquilde. O combate terminou. Mas o velho castelão, chamando os seus criados, ordenou que levassem sua filha, enquanto D. Afonso, ferido também gravemente num ombro quando tentava defender a jovem aia, era transportado pelos seus para dentro do castelo de Maldá.
Chegada às suas terras, Almerinda foi encerrada numa torre e vigiada dia e noite. Não mais viu o pai nem teve novas do seu cavaleiro. Ali viveu alguns anos, a prisioneira enamorada. E morreu por amor, a que fora uma das mais belas castelãs do Norte de Portugal.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 25-32
Place of collection
Bouro (Santa Maria), AMARES, BRAGA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
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