APL 2705 Lenda do Amor Imortal
Em tempos que já lá vão, na Corte britânica, onde então reinava Eduardo III, o rei que criou a Ordem da Jarreteira, vivia, entre outros, um homem simples e bom, de sangue plebeu mas de alma nobre. Chamava-se Roberto Machim e gozava da amizade de fidalgos poderosos, que encontravam nele um fiel servidor.
Entre os numerosos amigos que a sua lealdade e honestidade conquistara, distinguia-se um certo D. Jorge, que se tornou seu companheiro inseparável.
Lutavam ambos, lado a lado, quando era necessário. E lado a lado se divertiam também.
— Às vezes chego a pensar que não há lógica na vida...
— E porque pensais assim, D. Jorge?
O outro deixou de rir.
— Ora, conheço fidalgos que não merecem o brasão que usam... E conheço-te a ti, que não és fidalgo... e mereces um brasão!
Roberto Machim encolheu os ombros, a enxotar um assomo de vaidade.
— Oh, D. Jorge... isso é um exagero de amizade!
— Não, Roberto... Podes acreditar no que te afirmo... Considero-te um exemplo entre todas as pessoas que conheço e tenho grande satisfação em ser o teu melhor amigo.
Roberto Machim suspirou. Que havia de dizer mais? Que podia dizer mais? Olhou D. Jorge em silêncio, mas esse olhar exprimia toda a sua gratidão. Mal sabia ele que não tardaria em ter a prova cabal de tão bela amizade...
Pois um dia, tal como a tradição tem mantido através dos séculos, D. Jorge entrou alvoraçado nos aposentos do amigo. Alvoraçado e feliz.
— Roberto! Arranja-te depressa, por favor... Tens de me acompanhar.
E perante o olhar intrigado do outro, explicou rapidamente:
— Chegou minha prima Ana de Harfet... Quero cumprimentá-la... mas preciso de ti...
— De mim?... Porquê, D. Jorge?
O fidalgo foi mais explícito:
— Ouve, Roberto... Tu sabes umas certas palavras... Usas sempre duma tal gentileza, tens um modo de dizer as coisas... que impressionas realmente... E eu desejo que minha prima Ana de Harfet fique impressionada... Compreendes?
Um sorriso prazenteiro nasceu no rosto de Roberto Machim.
— Claro que compreendo!
O fidalgo voltou a excitar-se.
— Então, porque esperas?... Vamos!... Despacha-te!... Não temos tempo a perder...
Enquanto acabava de se vestir, Roberto Machim não reprimiu um comentário e uma pergunta:
— Que entusiasmo, D. Jorge!... Ela é assim tão formosa?
— Tu verás, Roberto, tu verás...
E Roberto Machim viu daí a pouco. Viu e ficou deslumbrado. Mais do que isso: enfeitiçado!
A prima de D. Jorge, a jovem e rica Ana de Harfet, era na verdade duma beleza extraordinária. Autêntico rosto de anjo em corpo de sereia.
— Ana... Quero apresentar-vos o meu melhor amigo... Roberto Machim.
— Muita honra, senhor...
Devagar, como se rezasse, ele murmurou:
— Perdoai-me, senhora... se não encontro palavras para traduzir o meu encantamento... Mas quando se entra em êxtase, não se pode falar!
Surpreendida, Ana passeou o olhar entre ele e D. Jorge. Ruborizou –se. A voz tremeu um pouco:
— Lisonjeais-me deveras com tal apreciação...
— E pela minha honra vos juro que sou Sincero!
Esse foi afinal, conforme conta a lenda remota, o primeiro encontro dum longo e maravilhoso romance de amor, nascido entre duas almas que se sentiram mutuamente atraídas, desde o primeiro olhar.
D. Jorge depressa compreendeu o que se passava. E ele, que também se candidatara ao coração de sua prima, logo cedeu lealmente o lugar a Roberto Machim.
— Eu vejo como os dois se amam... Nada mais há a fazer!
O amigo olhou-o bem de frente.
— Agradeço-vos mais uma vez, D. Jorge... E tendes razão... Nada mais há a fazer!
Entretanto, o fidalgo aproveitou o ensejo para esclarecer a dúvida que lhe dominava o espírito.
— Só receio uma coisa, meu bom Roberto... Os pais de Ana de Harfet são demasiadamente severos nos preconceitos de linhagem...
O olhar do outro tornou-se mais duro.
— Compreendo... Eles não quererão misturar o sangue nobre de Harfet com o sangue plebeu de Roberto Machim...
E, logo, num impulso de fúria, gritou como que desafiando tudo e todos:
— Mas que nos importa isso? O nosso amor é mais forte do que todas as barreiras!
D. Jorge curvou a cabeça, olhando o solo. E disse baixinho, como que a falar para si próprio:
— Deus queira que eles não recorram a processos extremos para evitar esse amor... Deus queira!
E o que D. Jorge temia, aconteceu realmente... Os pais de Ana de Harfet, ciosos dos seus pergaminhos e compenetrados de que, por meios pacíficos, não podiam modificar a paixão avassaladora de sua filha, resolveram utilizar os tais processos extremos... Levando o caso até junto do próprio Rei, conseguiram que este ordenasse o casamento da jovem e bela Ana de Harfet com um dos fidalgos da corte, na cidade de Bristol.
Roberto Machim, ao tomar conhecimento de tal notícia, deixou ventar terrivelmente toda a sua cólera. Praguejou e uivou ameaças. E de tal modo o fez, que o Rei o mandou prender durante alguns dias, enquanto o casamento se preparava e realizava.
Não foi fácil a tarefa. Roberto Machim estava disposto a resistir pela força. Mas acabou por ser dominado pelo número de adversários e não teve outro remédio senão submeter-se à vontade do Rei.
Quando saiu da prisão, encontrou à sua espera o bom e fiel D. Jorge. Uma única pergunta enchia o peito de Roberto Machim. O peito e o cérebro. E foi essa pergunta que ele atirou imediatamente ao amigo, mesmo antes de agradecer a sua dedicação:
— Como está Ana?
— Morrendo aos poucos...
Roberto cravou as unhas nas mãos até fazer sangue.
— Morrendo de amor...
D. Jorge deu-lhe lugar na sua carruagem e continuou:
— Sim... Ana morrerá se continuar em Bristol, onde agora vive com o marido. Nem parece a mesma!
Olhou o amigo. Este enchera-se de silêncio. De silêncio e de rancor. O rancor que se podia ler nos seus olhos.
— Sabes, Roberto? Ana tem sido extraordinária... Segundo se diz, o marido ainda nem sequer lhe tocou... Vivem absolutamente separados... Mas a saudade mata-a... Como ela gosta de ti, meu amigo!
Só então Roberto Machim pareceu despertar do seu torpor febril. Inclinou-se para o fidalgo.
— Quereis provar-me ainda uma vez mais a vossa amizade, D. Jorge?
O outro sorriu levemente.
— Para isso aqui vim… logo que soube que ias ser libertado.
Roberto Machim endureceu a voz:
— Julgais, acaso, que estou a ser vigiado?
— Não julgo... tenho a certeza!
— Então, por favor… ide vós a Bristol... Peço-vos que faleis a Ana... E sabei da sua parte se ela está disposta a fugir comigo para França.
— Fugir? Mas tu não quiseste fugir... mesmo quando soubeste que El-rei ia ordenar a tua prisão!
— Pois fugirei agora... Sim... fugirei pela primeira vez na minha vida... mas levando Ana comigo!
D. Jorge olhou-o, alarmado.
— Sabes o que estás a dizer, Roberto?
— Sei!
— Sabes o que arriscas?
— A minha vida e a vida de Ana!
Suspirou e completou o pensamento:
— A dela, que é a que mais me preocupa, tal como dissestes há pouco, já está em perigo... Quanto à minha, sem Ana, acreditai, nem é vida... Que arrisco pois, afinal?
O ar autoritário de D. Jorge atenuou-se:
— Tens razão, Roberto!... Vou deixar-te a esta esquina... Depois seguirei para Bristol e só voltarei de lá para te trazer notícias seguras.
Houve uma pausa breve.
— Escuta, Roberto... Prepara um barco. Aqui tens dinheiro!
Um gesto de recusa. Outro gesto de insistência.
— Não quero dinheiro!
— Aceita!... Depois mo devolverás, quando puderes... Por agora bem sabes que, para arranjar gente que te leve pelo mar até França, é preciso quase uma fortuna.
Venceu a insistência.
— Que Deus vos pague, D. Jorge!
Quando chegou o dia marcado para a grande aventura, o coração de Roberto Machim parecia um cavalo à desfilada. Faltava apenas transpor a pequena ponte, entrar no barco, onde já se encontravam doze homens às suas ordens, e lá iria encontrar, também, a bela, a desejada, a inesquecível e querida Ana de Harfet. Que manhã maravilhosa!
Os olhos verdes de Roberto Machim pareciam agora da cor do mar. Cor de desespero ou cor de esperança?...
Ana de Harfet, a mesma de sempre, bela e atraente, esperava-o. Mas o seu rosto estava pálido, sulcado de lágrimas.
— Roberto! Meu adorado Roberto! Pensei que morreria sem voltar a ver-te!
Ele tentou dominar a comoção. Mas não o conseguiu. Os seus olhos também se embaciaram. E a sua voz tremeu também.
— Oh! Ana! Minha maravilhosa Ana.
E apertava-a. Febrilmente. Doidamente. Queria ter a certeza absoluta de que não estava a sonhar.
— Meu amor... Meu único amor...
Ela mal podia respirar. Mas nada dizia. E ele compreendeu de súbito que estava a abusar da sua força. Afrouxou então o abraço e fitou-a bem no rosto.
— Como estás magra e pálida!
Ana de Harfet sorriu. Um sorriso débil.
— Já posso morrer, porque voltei a ver-te! E sinto que me amas, como tinhas jurado amar-me!
No olhar de Roberto Machim voltou a brilhar essa expressão altiva e quase desdenhosa que era a sua bandeira.
— Agora, Ana, serás minha... Só minha… e desafio mar e terra a que nos separem!
Por momentos calou-se, de rosto erguido, de olhar em fúria, num verdadeiro repto às forças da Natureza. Depois, gritou para a tripulação uma ordem, que era também um desejo:
— Vamos... A nossa rota será agora a caminho da França!
Talvez a ordem se tenha cumprido. Mas, conforme nos conta a tradição, o desejo nunca se realizou...
Batidos pela tempestade — como se a Natureza quisesse responder ao desafio ousado de Roberto Machim — os tripulantes não conseguiram dominar a embarcação e foram levados à deriva, nem eles sabiam para onde...
Fosse pela maldição do ódio ou fosse pela fatalidade do destino — suportaram a mais terrível e brutal das tempestades.
De joelhos, vergada pela tormenta e pelo pavor, Ana de Harfet suplicava:
— Piedade, Virgem Santíssima, tende piedade de nós!
E foi possivelmente a força das lágrimas e das preces da jovem e bela Ana de Harfet que conseguiu chegar ao Céu e amainar a fúria da Natureza.
Mas Ana não resistiu. Tombou, no delírio da febre. E só muitos dias depois voltou à realidade da vida...
Pareceu surpreendida. O mar estava calmo. O Sol brilhava. Teria sido tudo apenas um pesadelo?
Mas logo viu o rosto de Roberto inclinado sobre o seu próprio rosto. Angustioso. Excitado.
— Sentes-te melhor?
Ela tentou sorrir.
— Sim... estou melhor... Ainda bem que o vento serenou!
Os seus olhos buscaram em vão a linha do horizonte.
— Onde estamos?
Ele cerrou os dentes, hesitou antes de responder.
— Não sei, querida!... Este piloto percebe tanto da arte de navegar como eu... Andamos à deriva... E já quase não temos mantimentos!
Ana de Harfet fechou os olhos. Talvez cansada. Talvez pensativa. Depois, voltou a perguntar.
— E há quantos dias andamos assim?
— Há dez dias!
O olhar dela esgazeou-se, numa aflição íntima. Repetiu como num eco:
— Há dez dias?... E quando acabará isto?
Ele procurou disfarçar a emoção que o dominava.
— Não te inquietes... Eu sinto-me bem... enquanto estiver ao pé de ti!
Ana voltou a sorrir.
— Meu pobre cavaleiro… não te entendes com o mar!
Roberto Machim olhou-a, sério e decidido.
— Hei-de domá-lo, como se fosse um cavalo selvagem!
Calaram-se. O ritmo do barco, agora brandamente embalado pelas ondas, dava-lhes uma dormência de sentidos.
Ela murmurou:
— De qualquer forma, sinto-me feliz, Roberto... Muito feliz!
Mas uma voz alvoraçada partiu o diálogo. Era D. Jorge que corria à frente dos outros tripulantes.
— Roberto! Ana! Estamos salvos. Venham ver... Além há terra!
E daí a pouco, conduzida a embarcação nesse sentido, os mareantes viram avidamente uma ilha coberta de arvoredo, que mais lhes dava a ideia de uma paisagem do Paraíso.
Para lá se dirigiram, ancorando numa bela enseada, como que talhada ali, no Oceano, por inspiração divina.
Roberto Machim sentia-se novamente vencedor da Natureza.
— Vamos descer, amigos... Ana virá depois... Primeiramente temos de averiguar se a terra é segura...
D. Jorge adiantou-se uns passos.
— Eu acompanho-te... Quero ser o teu companheiro, nas horas boas e más.
Desta vez, o outro assentiu sem relutância:
— Pois seja... Obrigado, amigo!
A sua voz soou como um clarim de marcha:
— Vamos!
E assim desceram, e assim pisaram terra, e assim abriram os segredos dessa ilha que lhes pareceu de sonho...
Logo se instalaram, para construir o seu novo mundo. Ana de Harfet foi levada com todo o cuidado. Estava muito fraca, mas deu a impressão de que revivia ao sentir-se em terra.
— Roberto... como isto é belo!
Ele ajoelhou à sua beira.
— Sim, meu amor.. Aqui ficaremos, se quiseres... Caça e pescaria não faltam. Frutos também não... Será este o cenário do nosso amor.
Ana quis responder mas não conseguiu. Faltaram-lhe as palavras. Ficou num sorriso. Sorriso vago e misterioso.
O mesmo sorriso com que olhou para Roberto Machim, pela última vez, daí a poucos dias.
— Ana... que tens?... As tuas mãos estão muito frias... Vou aquecê-las nas minhas...
Era tarde, Ana de Harfet, a bela, a irresistível Ana de Harfet sofrera já demais para resistir a tão violentas emoções.
E ali se finou, num fim de tarde melancólico quando o Sol desaparecia no horizonte do mar. Dupla agonia...
Aparvalhado, quase louco, Roberto transformou-se num farrapo humano. Deixou que enterrassem a pobre e linda Ana de Harfet e ficou junto da sua campa, sem nada fazer, sem nada dizer.
Na manhã seguinte, D. Jorge e os outros vieram encontrá-lo de bruços sobre a campa rasa, chorando como uma criança.
O seu melhor amigo correu para ele.
— Roberto... então!... Coragem!...
Mas o outro afastou-o rudemente, com o resto das suas forças.
— Deixa-me!
E voltou a cair sobre a campa, chorando e soluçando.
— Não posso mais... Ana, não posso viver sem ti... Leva-me... Leva-me contigo, meu amor!...
Numa última tentativa, D. Jorge ajoelhou junto dele. Deixou que serenasse. Quando o viu quieto e silencioso, voltou a falar:
— Vamos, Roberto... A vida continua... Tens de ser forte, como sempre foste!
Esperou qualquer reacção. Alarmou-se. De súbito agarrou-se desesperadamente ao amigo.
— Roberto!... Roberto!... não me ouves?... Que é isto, meu Deus? Tu morres?
E escutou apenas, num sopro de voz:
— Sim… morro, sim… morro para me juntar a ela!
Roberto Machim foi enterrado ali mesmo, junto daquela a quem sempre adorara. E sobre a campa de ambos, ficou somente uma tosca cruz de madeira (da madeira que enchia a ilha) a assinalar para sempre aquele amor imortal...
Ainda hoje se diz que o nome de Machico, a bonita vila da Ilha da Madeira, deriva precisamente do nome de Roberto Machim, que lá aportou um dia com a sua bem-amada Ana de Harfet e lá ficou para sempre como símbolo de uma paixão imortal!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 105-112
- Place of collection
- MACHICO, ILHA DA MADEIRA (MADEIRA)