APL 1079 Comido pelos lobos

A tarde tinha terminado, com ela a claridade e a jornada de trabalho.
Agora, ali estavam os três sentados, apáticos, a olhar o lume que lhes afogueava as faces.
 O trabalho era de sol-a-sol e muitas vezes com água até à cintura, esforço de heróis.
 Mas havia a promessa de reparar os muros de sirga no Tejo e hoje a de passar a noite em Salavessa.
 Deitou-se a pensar nas palavras da mãe. O que a levaria á opor-se tão obstinadamente ao seu intento tão simples?
 Depois do silêncio e da escuridão terem avassalado o casebre, pegou na guitarra e saiu.
 A noite parecia tranquila mas, do Monte Pombo a Salavessa àquela hora e só...!
 Já os ouvira uivar pouco depois de sair de casa. Agora, apareciam ali a dois passos, do outro lado da ribeira do Ficalho.
 Voltar para trás? Nem-pensar.
 Um pesadelo na tranquilidade do leito.
 Que visão!... O seu único filho a ser devorado pelos lobos, a luta desigual, os últimos movimentos, o último grito. Depois, o vermelho do sangue a pintar a ramagem, aterra, o xisto musgoso. As feras a disputarem o corpo sem vida.
 Acordou em pé, fora da cama e com o coração a saltar-lhe da caixa. Correu ao quarto vizinho. A cama estava vazia e fria. Saiu. Correu e chamou, correu mais e chamou. Em vão, tudo em vão.
 Na ribeira, junto da borda, chamou mais e mais. Então a guitarra, como que possuída de vida própria, respondeu-lhe em voz lânguida tombando pela encosta.
De madrugada, entre as estevas e forte matiço, foram encontradas as migalhas do manjar e um par de botas com pés humanos.

Source
HENRIQUES, Francisco Contos Populares e Lendas dos Cortelhões e dos Plingacheiros , Associação de Estudos do Alto Tejo, 2001 , p.66-67
Place of collection
Vila Velha De Ródão, VILA VELHA DE RÓDÃO, CASTELO BRANCO
Collector
Francisco Henriques (M)
Informant
João Dias Caninas (M), Vila Velha De Ródão (VILA VELHA DE RÓDÃO),
Narrative
When
20 Century, 90s
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography