APL 3032 Lenda da Monstruosa Mentira
Consta que foi em Pendilhe que nasceu esta lenda. Não se sabe em que data se situa, mas dizem que o caso se passou há muitos anos com um cavaleiro fidalgo chamado Múnio Viegas.
O sol batia nos cabelos doirados de Aldonça, tornando-os mais belos e brilhantes. Com a cabeça reclinada, apoiava-a numa das mãos, tão brancas que faziam inveja à própria neve. Nos olhos reflectia-se uma nesga de céu. Suspirava Aldonça na janela da torre. De súbito estremeceu. Pressentiu que estava alguém junto dela. Voltou-se e encontrou o olhar profundo do seu tutor Múnio Viegas. Ele sorriu-lhe e sossegou-a:
— Não vos assusteis. Andava à vossa procura e tinha a certeza de que estaríeis aqui.
Aldonça esboçou um movimento de indecisão. O tutor chamou docemente pelo seu nome. Aldonça voltou a estremecer.
— Que quereis, Senhor?
Ele estava sério. A sua voz tinha um acento triste:
— Aldonça, sei que esperais por D. Jaime. Mas não creio que ele venha aqui.
A jovem voltou a olhar o tutor, mas desta vez com inquietude.
— Não virá? Porquê, se mo prometeu? A guerra acabou. Vem cheio de glória e eu esperei por ele. Mandou-me há poucos dias um recado. Jurava-me o seu amor e marcava o dia de hoje para nos encontrarmos.
A jovem calou-se. O tutor replicou:
— Assim aconteceu, como dissestes. Mas existe algo que vós não sabeis ainda e que o impedirá de tornar a ver-vos.
A jovem levou uma das mãos à boca para não gritar. Todavia, a sua voz era de uma ansiedade imensa ao perguntar:
— Que estais dizendo? Ele não voltará a ver-me?
— Não.
— E porquê?... Morreu?
— Não… mas será como tal, pois irá morrer para o mundo.
— Morrer?
— Sim, Aldonça. D. Jaime vai professar no mosteiro onde imagináveis casar!
— Não pode ser!
— Assim será!
— Mas ele... amava-me e eu amo-o!
— Ouvi, Aldonça. Tenho um terrível segredo a revelar-vos.
A jovem, que arfava de excitação e mágoa, fitou o tutor.
— Falai depressa, pois tantas reticências matam-me!
D. Múnio envolveu a jovem num olhar que várias vezes ela vira nele. Um olhar dúbio, que muito a assustava. E esclareceu:
— Minha Aldonça! Quando vosso pai vos confiou à minha guarda éreis uma menina muito bela mas contáveis apenas cinco anos. Porém, eu já tinha vinte e estava para casar. Convosco veio, também, a revelação do grande e único segredo que o meu amigo guardava avaramente: vós sois filha de um grande amor da sua vida… mas não sois filha do casal.
D. Múnio silenciou. Aldonça abriu os olhos num espanto.
— Que dizeis? Meu pai não era casado com minha mãe? Não morreram ambos de uma epidemia?
— Não, Aldonça. Isso é o que nós dizemos, mas vosso pai morreu há doze anos num combate. Vossa mãe faleceu antes, quando vós nascestes. Antes de partir para a luta foi-me o segredo confiado. Fui buscar à ama que vos tratava e trouxe-vos para aqui. Crescestes ao lado de meus filhos. Tendes sido acarinhada por minha esposa. E de mim tendes recebido o maior amor da minha vida!
Aldonça tapou o rosto com as mãos, soluçando. Depois perguntou:
— E D. Jaime? Que tem ele a ver com isto?
— D. Jaime é filho do matrimónio… mas o vosso pai é o mesmo!
— Não! Não pode ser!
— Acalmai, Aldonça! Aflige-me ver-vos assim!
— Sinto-me desesperada! O meu Jaime... o meu único amor... é meu irmão! Oh!... que horror! Preferia mil vezes a morte!
— Foi o que ele disse. Por isso aconselhei-o a professar.
— E eu farei o mesmo!
— Vós não!
— Não… porquê?
— Porque não poderei viver sem vós!
— Acaso não terei eu de viver sem o meu amor? É pior do que se tivesse ficado por lá, nesse campo de batalha. Poderia, ao menos, pensar nele com toda a ardência da minha alma! Assim… se o fizer... terei vergonha de mim própria!
— É isso mesmo, Aldonça. Portanto, o silêncio de um claustro não é aconselhável. Olhai à vossa volta! Deixai-vos amar, e o tempo que tudo apaga há-de acalmar-vos!
Aldonça olhou o tutor.
— Se o claustro é mau para mim... também será mau para ele. Porque o aconselhastes então a professar?
Porque receei que, vendo-vos… ele não soubesse calar o amor que vos tributa!
Aldonça levou as mãos ao rosto, num gesto de horror.
— Oh, calai-vos! Calai-vos!
E numa súbita explosão de cólera:
— Porque não impedistes então, há mais tempo, que nos encontrássemos, antes que este amor crescesse?
— Bem o tentei, Aldonça! Acreditai que fui eu quem mandou para a guerra D. Jaime. Ele não soube que manobrei na sombra para o afastar.
— É terrível, o que me contais!
— Bem sei!
— Deixai-me professar também!
— Não o consentirei!
— Porquê?
— Porque necessito de vos ver a meu lado!
— Tendes os vossos filhos!
— Uns andam longe... Outros… aborrecem-me!
— Que dizeis?
— A verdade. Só a vós eu amo!
— Não poderei ficar aqui!... Odeio esta torre onde tantas vezes esperei por ele... Odeio esta torre onde agora vejo imundo o maior sonho da minha vida!
— Levar-vos-ei para outra torre. Dar-vos-ei outra casa. Sereis feliz ainda, prometo-vos!
Havia um entusiasmo crescente e estranho na voz de D. Múnio. Aldonça olhou-o surpreendida. Ele tentou disfarçar, mas ainda se tornou mais suspeito:
— Perdoai a vossa mãe, que se deixou perder de amores por um homem como era vosso pai! E perdoai a vosso pai a loucura de amar outra mulher que não era a sua... Vossa mãe era aragonesa e tão bela... tão maravilhosamente bela… que só a vossa beleza poderá superar a sua!
Estava bem junto de Aldonça. Apertava-lhe as mãos. A jovem perturbou-se. Não sabia bem que pensar, que atitude assumir. Tudo aquilo lhe parecia muito estranho. Esquivou-se, sem contudo falar. Foi ele quem cortou o silêncio que caíra.
— Aldonça! Achais-me velho? Tenho apenas trinta e dois anos!
A jovem sentiu que algo estava mal. Uma repulsa semelhante à que sentira quando soubera que amava um irmão tomava-lhe os nervos. Sem olhar para o tutor, pediu com firmeza na voz:
— Deixai que me retire. Preciso estar só para meditar no meu futuro.
— O vosso futuro pertence-me! Só eu poderei decidir.
— O meu futuro pertence a Deus e Ele decidirá!
Alucinado, D. Múnio agarrou-a pelos ombros.
— Olhai para mim, Aldonça, e dizei-me: achais-me velho? Respondei! Vosso pai tinha a minha idade quando conheceu vossa mãe!
Aldonça mordeu os lábios para não chorar. A máscara havia caído ao seu tutor. Compreendera agora todos esses olhares estranhos, todo o carinho excessivo, toda a maldade com que a pusera ao facto do maior desgosto da sua vida! Indignou-se. Repetiu:
— Deixai que me retire!
— Não! Agora, liberta de D. Jaime que acaba de entrar no mosteiro... vós podereis ser feliz noutra casa, longe de tudo isto... e comigo!
Num safanão, Aldonça libertou-se do abraço que ia receber. Desceu as escadas tortuosas e entrou nos aposentos da esposa do seu tutor. Ia a chorar. Ao vê-la, a dama alarmou-se.
— Que tendes, Aldonça?
Ela ia contar a verdade. Mas um sentimento misto de caridade e timidez emudeceu-a. A dama voltou a perguntar:
— Que tendes? Chorastes?
Então Aldonça contou o que D. Múnio lhe dissera, mas apenas o que dizia respeito a D. Jaime. Ouviu-a a dama com espanto. Depois, com indignação no olhar e na voz, comentou:
— Pobre Aldonça! Como puderam forjar tão monstruosa mentira!
A jovem olhou a dama. Somente o olhar a interrogou. Mas era tão poderoso e firme que a interrogada respondeu.
— Minha filha! Conheci a tua mãe e o teu pai! Ela era aragonesa e muito bela. Teu pai era amigo do meu esposo. Estávamos para casar quando ambos morreram de uma epidemia. Eram casados e felizes!
Aldonça abriu os olhos. O seu espanto era enorme. Perguntou ainda:
— E D. Jaime?
— D. Jaime é filho de um nobre cavaleiro que nada tem a ver com o vosso pai! O meu esposo bem o sabe!
— Então, porque mentiu?
— A sua atitude é degradante! E talvez em breve o fiqueis sabendo! Mas agora vamos depressa ao mosteiro. É necessário chegar lá antes que D. Jaime professe!
Da torre, D. Múnio viu a esposa partir acompanhada de Aldonça. Compreendera que fora louca a sua mentira, pois mesmo que D. Jaime já tivesse professado, Aldonça nunca poderia amar outro homem senão ele e decerto odiaria com todas as forças da sua alma aquele que tinha truncado a sua felicidade. Fora um louco, bem o reconhecia. Mas louco estava ele de amor por Aldonça. Restava-lhe, pois, deixar partir a rapariga para longe e suportar a esposa que havia escolhido. Encerrar-se-ia nos seus domínios e tentaria arrepender-se dos seus maus pensamentos e das suas más obras.
Estava a tarde a finar-se quando as senhoras chegaram ao mosteiro de S. João. A esposa de D. Múnio fez-se anunciar e pediu para falar a D. Jaime. Disseram-lhe que este se preparava para tomar o hábito. Pediu a senhora para falar ao superior. Contou-lhe o sucedido e esperou que este desse licença para falarem ao jovem cavaleiro.
Quando D. Jaime entrou na sala e viu Aldonça, a sua palidez tornou-se mais acentuada. A esposa de D. Múnio, compreendendo que ele ainda não havia sido informado da verdade, sorriu-lhe, dizendo:
— D. Jaime! Porque repudiais a vossa noiva?
Ele fez-se mais pálido ainda.
— Senhora, acaso não sabeis do terrível segredo que nos une?
Ela esclareceu, serena:
— Vós é que não sabeis o terrível segredo que vos ia desunindo!
D. Jaime mostrou-se surpreendido:
— Que dizeis, Senhora? De que segredo falais? Que mais há ainda?
— Embora me pese dizê-lo, D. Múnio há dois anos que luta com uma louca paixão pela sua pupila.
O jovem cavaleiro franziu as sobrancelhas e fechou os punhos.
— Não me digais, Senhora, que a história que ele contou...
— ...Foi forjada pelo seu ciúme! É certo, D. Jaime. Ele imaginou uma monstruosa mentira!
— Quereis então dizer que Aldonça e eu... não somos irmãos?
— Não! Conheci bem os pais de Aldonça. Sua mãe era uma virtuosa e bela senhora e seu pai o mais fiel dos maridos.
D. Jaime correu para a noiva de braços abertos. Ela deixou-se abraçar, chorando. O jovem cavaleiro, emocionado, dizia frases incompletas, ora louvando a Deus por o ter poupado a tão grande desgosto, ora jurando a Aldonça o seu amor eterno. Por fim, lembrou-se da esposa de D. Múnio. Libertou a noiva do seu abraço, e veio beijar a mão da bondosa senhora, dizendo:
— Que Deus vos recompense da alegria que me destes! Bem mereceis ser amada com mais verdade!
Ela sorriu.
— Já o fui, D. Jaime. Meu marido escolheu-me, não lhe fui imposta. Que isto vos sirva de exemplo para a vossa vida futura! Olhai para a vossa esposa como a única na vossa existência, e não vos deixeis prender por outras mais novas e mais belas que hão-de surgir no vosso caminho!
— Assim o prometo! Mas agora... como há-de Aldonça voltar para o castelo?
— Aldonça não voltará para casa do tutor que o não soube ser à altura dos seus deveres. Levá-la-ei a casa de uma amiga que mora aqui perto. E vamos marcar o casamento para amanhã. Eu aqui estarei com alguns dos meus filhos.
— Que Deus vos abençoe!
Aldonça beijou a testa da nobre dama que lhe tinha restituído a felicidade.
Lá fora, a tarde havia caído e a noite começara a descer.
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 251-256
- Place of collection
- Pendilhe, VILA NOVA DE PAIVA, VISEU