APL 2714 Lenda da que Mal Pica

Chegara O Inverno. E com ele o frio. E com ele a desolação. Em certa zona das Beiras, lá para o sul de Castelo Branco, havia um pequeno povoado, onde vivia Aninhas, uma rapariguita de ar aciganado, que punha tentações nos olhos dos homens.
Ora, uma noite, parou ali um emproado fidalgo, que se dirigiu sem demora ao chefe do povoado.
— Maldito frio!... Acendei-me a lareira, depressa!... Depressa!... Não ouvis, velho imbecil?
Mas o outro era velho, de facto. E a muita idade não lhe consentia pressas...
— Vou já, meu senhor, vou já... Nós também temos muito frio...
Altivo, arrogante, o fidalgo olhou o velho de alto a baixo, num ar de soberano desdém.
— Que me interessa o vosso frio? Quero apenas que se cumpram as minhas ordens, nada mais... Compreendeis? Sou eu o dono de todas estas terras!
E quedou-se, soberbo, no meio da sala, escutando os ecos da sua própria afirmação.
Foi então que, atraída pelo volume e pela força das palavras, surgiu Aninhas, a neta do velho chefe do povoado.
— Deixe lá, avozinho. Eu vou tratar de tudo...
E sem olhar o outro sequer, acrescentou num ar de mal contida ironia:
— Este senhor fidalgo, certamente, vem muito apressado... e muito friorento... Coitadinho!
O visitante voltou-se para ela, surpreendido e desconfiado.
— Onde estavas escondida?... Ainda não te tinha visto...
Avançou, sorrindo, a tentar ser lisonjeiro.
— Que lindo palminho de cara tu tens...
E quis fazer-lhe uma festa. Mas a rapariga fugiu-lhe habilmente.
— Tire as mãos, senhor fidalgo... Olhe que pode sujá-las na minha cara...
Ele disfarçou a contrariedade com uma risada.
— Já vejo que és de força... Mas isso agrada-me, pequena... Estou habituado a domesticar as minhas éguas bravas...
Aninhas fingiu que não ouvia. Limitou-se a apontar para as chamas que começavam a crepitar.
— Pronto... A lareira já está acesa, senhor fidalgo... Pode chegar-se, para se aquecer…
Esquivou-se de novo à aproximação dele, e aconselhou, num tom meio sério, meio gaiato:
— Cautela com o fogo, senhor fidalgo, cautela...
 
Espicaçado no seu brio, o altivo e desdenhoso fidalgo deixou-se ficar por ali mais uns dias, cortejando a bela e esquiva Aninhas.
— Posso fazer de ti uma rapariga rica e feliz...
A rapariga riu-se.
— Ora, feliz já eu sou... E rica, não preciso de o ser...
Ele aproximou-se mais e segredou-lhe uma pergunta de malícia:
— E se eu te raptasse... se fugíssemos para o meu palácio em Lisboa?...
Aninhas pôs-se subitamente séria.
— Creio que o melhor é não tentar, senhor fidalgo...
O fidalgo empertigou-se.
— Falarei então com o teu avô... Ele será mais compreensivo… e mais esperto do que tu, com certeza!
A rapariga encolheu os ombros. De descrença. Ou de indiferença. Mas o fidalgo não hesitou. E abalou, resoluto, decidido a levar por diante a sua vontade.

Enganou-se porém, redondamente, o fidalgo presunçoso. A sua proposta desagradou por completo ao velho chefe do povoado, que chegou mesmo a irritar-se.
— Como?... Pois o senhor atreve-se?... Não, nós não somos dessa gente que o senhor julga... Oiça bem: a minha neta somente casará com quem ela quiser... E eu não a troco, senhor fidalgo ou lá o que é, eu não a troco por todo o oiro deste mundo!
Arfando de emoção por ter ido tão longe nas suas palavras, o velho chefe terminou com um convite bem explícito:
— Porque não se vai embora daqui, senhor fidalgo?... Quanto mais depressa, melhor!
O outro voltou a encher-se de soberba ofendida. Endireitou-se, muito solene. E a sua voz esganiçou-se, de raiva.
— Pois então escuta, velho idiota: hoje mesmo, tu e a tua neta sereis expulsos destas terras que são minhas... Vós é que vos ireis embora! Não vos quero ver mais na minha frente!
Tal ordem desfez de súbito todo o orgulho do velho chefe. Ele percebeu que se excedera — e que ficaria a perder, pois o outro era o mais forte e poderoso.
Num reflexo sincero de medo, exclamou em voz trémula:
— Oh, senhor!... Por tudo vos peço que não nos expulseis! Que será da minha neta e de mim? Para onde iremos nós?
E, agarrando-se desesperadamente às mãos do fidalgo, suplicou, num eco de alma:
— Não leveis tão longe a vossa crueldade, senhor fidalgo!
Porém o outro estava verdadeiramente enfurecido. Todas as palavras, agora, lhe soavam a insulto. Quando ouviu falar em «crueldade», a sua fúria cresceu. Libertou-se, num safanão brusco, atirando o velho por terra... Não contente com isso, para saciar a sua raiva, fustigou-o com o chicote, implacavelmente, enquanto gritava:
— Aqui tens velho cretino... Isto é para aprenderes a tratar com fidalgos como eu!...
O velho gemeu de dor, rolando no solo. Agora, para ele estava tudo perdido. Não haveria mais esperança...
Aninhas acorreu, excitada e aflita. Os seus olhos inundaram-se de espanto. E de piedade. E de ódio, também.
— Ah, fidalgo vilão... Haveis de pagar caro a vossa ruindade!
Mas, desta vez, o fidalgo voltou-lhe costas, sem a olhar sequer. E as suas ordens soaram enérgicas e definitivas:
— Quero que esta gente abandone as minhas terras… hoje mesmo!... O velho, a rapariga, e todos os seus companheiros. Não os quero ver mais aqui!... E se for necessário empregar a força para os fazer partir, pois que se empregue a força!... Não merecem qualquer espécie de piedade!
 
Não foi necessário usar de violência. Todos abandonaram as velhas casas, nesse mesmo dia, tomando o rumo da aventura e do desconhecido...
Andaram muito, muito, segundo se diz. Passaram fome e frio, desalento e pavor, tristeza e abandono. Mas não renunciaram. Não voltaram atrás para pedir perdão, como o fidalgo esperava...
Um dia chegaram junto da pequena ermida de Nossa Senhora das Neves. Estavam exaustos. De comum acordo resolveram ficar ali. Porém, como se ainda os perseguisse a vingança do odioso fidalgo, outra calamidade lhes surgiu: uma praga de formigas!
O velho chefe, cada vez mais adoentado e mais temeroso, foi o primeiro a confessar o seu desânimo.
— Oh, meu Deus... Meu Deus!... Nós não podemos mais... Este castigo terrível, que não merecemos de modo algum, será a nossa ruína… a nossa morte!...
Como sempre acontecia, Aninhas veio em seu socorro.
— Oh, avozinho, não perca a fé!... Deixe lá... Deus há-de ajudar-nos!
Mas desta vez o velho não se convenceu.
— Tu não vês, Aninhas, que estamos reduzidos à miséria?... Não temos casas, nem terras… não temos nada, nada!
Lágrimas pesadas rolaram pelo rosto encarquilhado do pobre velho. Lágrimas diluídas em fel. E, baixinho, como que falando consigo próprio, ele murmurou:
— Até as nossas vaquinhas... tão poucas são já... e morrem todas, por causa das formigas... Porquê, meu Deus, porquê?...
Num último assomo de coragem, a rapariga ergueu-se.
— Temos de reagir, avozinho! Já que lutámos até aqui... é preciso continuar a luta!
E voltando-se para os outros, acentuou:
— Não podemos ficar aqui... Temos de procurar outro local... Portanto, aqueles que quiserem acompanhar-me, venham comigo... Deus guiará decerto os nossos passos!
 
E foram todos, incluindo o velho chefe, apesar de cansado e descontente. Mas, em plena jornada, Aninhas voltou a ter uma ideia, que lhes pareceu muito boa e oportuna.
— Desta vez, não seremos nós a procurar o local que nos interessa... Deixemos essa missão às nossas vaquinhas... Onde elas se sentirem bem, aí nós ficaremos para sempre!
Aplaudiram com fervor as palavras da rapariga e resolveram fazer como ela dissera. Ao soarem as ave-marias na ermidinha distante, soltaram as vacas e deixaram-nas ir à vontade, pelos campos fora...

Conta-se que foi Aninhas a primeira a chegar ao local onde as vacas pastavam já tranquilamente.
E ela gritou alegrias. E o seu grito correu ao encontro dos outros que se arrastavam pelo caminho, dando-lhes novas esperanças e novas forças.
— Venham todos! Venham todos! Isto é magnífico... Parece um céu aberto!... Deus lembrou-se de nós!
Quando o velho chegou junto dela e os seus olhos abraçaram o panorama, não pôde calar o seu encantamento:
— É admirável, Aninhas!... Que vista lindíssima... Que ar tão puro!
Todos a tinham rodeado, dando graças a Deus. E felicitando a rapariga pela sua bela ideia...
Foi então que Aninhas apontou para as vacas e disse, num tom de vitória jubilosa:
—Vejam como as nossas vaquinhas estão contentes... Sabem porquê?
Olharam-na, numa onda de interrogação. Onda que se desfez em sorrisos, mal ela falou:
— Porque aqui as formigas são bem poucas... E qualquer destas formigas, como podem ver, mal pica... mal pica...
No meio do contentamento geral, a voz do velho chefe, que todos respeitavam, ergueu-se segura e profética:
— Pois já que assim é... esta nossa terra há-de ficar a chamar-se Malpica!
 
E desse modo nasceu na Lenda e desse modo passou à História a pitoresca e bonita aldeia da Beira Baixa, que primeiramente se chamou apenas Malpica — e agora se chama Malpica do Tejo.
E consta ainda, na memória do povo, que o tal fidalgo atrevido e enfatuado veio a acabar de morte horrorosa, mordido e envenenado por umas formigas terríveis, que ninguém chegou a saber donde tinham vindo...

 

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 199-203
Place of collection
Malpica Do Tejo, CASTELO BRANCO, CASTELO BRANCO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography