APL 3047 Casal do Abade (versão B)
A estrada privativa que sai da Porta do Jardim do Cerco e se dirige para o fresco, ensombrado e calmo Salabredo corta em determinada altura o muro que é a divisória das primeiras Tapadas, e, pouco depois de entrar na segunda Tapada, à direita, logo se enxergam as pedras amontoadas dum Casal cujas paredes o tempo foi destruindo; transmite a quem o vê um ambiente de solidão e de tristeza: é o Casal do Abade.
É a esse Casal que se encontra ligada numa graciosa tradição (e quantas vezes verdadeira) que regista o ânimo duma mulher, bem como a bondosa compreensão dum Rei.
D. João V fiel aos sentimentos de magnanimidade que dominavam a sua vontade, queria que tudo quanto tivesse de oferecer ao País fosse revestido da maior perfeição talvez para não ser atingido pelos comentários que atacam as realizações levianamente planeadas.
Assim uma vasta área de terrenos, isolada do mundo e dos homens, para além de constituir uma reserva de caça, podia levar aos seus frades os benefícios incalculáveis de se poderem abastecer de tudo quanto a terra lhes pudesse fornecer para sua alegria, recreio, saúde e comodidade.
Os terrenos reunidos e abrangendo planaltos, encostas e vales, garantiriam as felizes pesquisas de água que satisfizessem todas as necessidades do Convento; as terras arroteadas concederiam o trigo, o milho e o linho; as mais humosas, fundas e frescas permitiriam a instalação de grandes e ubérrimas hortas com ruas e regadeiras; os tanques, para além das águas para efectuar as regas ao fresco da tarde e da manhã, poderiam permitir a graça e distracção de criar peixes de água doce.
Podiam-se plantar as mais afamadas fruteiras tradicionais desde as figueiras moscatéis às macieiras Reinetas e Riscadinhas; desde as pereiras de Santo António, Carvalhais, Pérolas ou Carapinheiras que vêm cedo até à Lambe-lhe-os-dedos, óptimas para doce, à Sardoeira, à Rosa ou Rocha, sem esquecer ameixoeira Rainha Cláudia, a amoreira frondosa, as limeiras, os vermelhos diospiros túmidos e agridoces, os marmeleiros e as gamboas; não faltariam os pêssegos maracatões, vermelhos, brancos, amarelos ou cor de rosa, nem as romanzeiras que na floração se vestem de vermelho gritante.
Existiriam zambujeiros e carvalheiros seculares enraizados desde há séculos e nas sebes cresceriam os sabugueiros, as piteiras e o chuchamel.
Nas vinhas poderia existir todo um mundo de delícias em cor, tamanho e gosto plantando-se as Diagalves, o Fernão Pires, o Dedo de Dama e o Barrete de Clérigo, sem esquecer os moscatéis admiráveis, todas as deliciosas mas com o predomínio da perfumada e extraordinária Moscatel Roxa. Haveria espaço bastante para não esquecer a Jampal, a Formosa, o Arinto, a Malvásia, a Ferral e das tintas o Bastardo, a Tinta Fême, o Santarém, a Trincadeira e tantas outras.
Haveria jardins com trepadeiras e canteiros com rosas, cravos e camélias; não faltariam os lírios; por toda a parte cresceriam as mais variadas flores sem esquecer as perfumadas violetas, todas elas criadas com a finalidade de alindar todos os dias do ano a Igreja esplendorosa, onde, em toda a suavidade e pujança os órgãos entoariam hinos em louvor do Deus Criador.
E entretanto lá fora atravessando léguas de terras, casas e casais, os carrilhões alegrariam a vila e os campos nos dias de festa.
As aquisições de terras, a certa altura, encontraram dificuldades e o rei informado de que a maior parte de todas elas consistia duma velha casaleira que vivia só e teimosamente se negava a vender o seu casal.
Tanta vez veio à baila a resistência da mulher aos planos do Rei, que D. João V decidiu ir ele próprio um dia resolver de vez o intrincado caso. E foi.
Assim, um belo dia, pelo fresco da manhã, decidiu-se a enfrentar com o seu coche dotado de encoiramentos amortecedores, as covas daquele caminho de carro de bois que passava pela lagoa, e cansado e mal tratado, lá chegou ao casal onde uma casaleira rabujenta afrontava as iras do Rei de Portugal.
Ela apareceu anafada, corada, bem agasalhada, com muitas saias sobrepostas avolumando-lhe as ancas. Trazia consigo um ar de digna simplicidade e um carrapito no alto da cabeça.
O Rei à medida que a mulher se aproximava fixou nela a sua luneta inquiridora, mirando em pormenor o seu ar natural digno e calmo.
E estabeleceu-se então o diálogo entre o senhor todo poderoso e a casaleira sem família:
- Então vocemecê continua a teimar em não me vender o seu casal?
- Saiba Vossa Majestade que aqui vivo só e sem família nenhuma. Aqui nasceram meus pais e meus avós. Aqui nasci eu onde casei, enviuvei e envelheci. Nunca conheci outro sítio – respondeu a mulher.
O Rei insistiu:
- Tenho todo o chão que preciso e só me falta o seu casal. Porque não há-de mudar para outra terra melhor?
A velha redarguiu logo, respeitosamente:
- Vossa Majestade pouco tempo terá que esperar porque já sou velha. E assim, quando eu morrer tudo se resolverá por si.
D. João V voltou ao ataque:
- Então acha bem que uma obra tão importante não se possa acabar porque vocemecê se recusa a sair daqui? Pois ofereço-lhe um melhor local, maior e de bom chão, com árvores, água e boa terra de horta. E terá bons vizinhos.
A casaleira ripostou logo na defesa da sua casa:
- Saiba Vossa Majestade que a melhor vizinhança é a completa solidão. Nunca incomoda a gente.
No auge da impaciência por estar perdendo o seu precioso tempo com uma causa tão pequena o Magnânimo teve um acesso de zanga, mas logo surgiu a dominá-lo o seu espírito magnânimo. E entre paciente e admirado da teimosia da velha que a sua consciência afirmava que estava cheia de razão, concluiu que só à custa de dinheiro conseguiria ganhar aquela causa.
Então afastou-se da sua numerosa comitiva que a tudo assistia, chamou-a de parte e disse-lhe em voz baixa:
- Olhe mulher: eu dou-lhe esta bolsa cheia de dobrões de ouro para que você me venda o seu Casal. É uma fortuna; mas dou-lha de bom grado ainda que em segredo, para acabar de vez com esta demanda…
Então, sucedeu o imprevisto:
A velha casaleira, olhando-o de frente, acenou-lhe para lhe falar em particular, e, afastando-se ainda mais da comitiva disse-lhe a meia-voz:
- Pois se Vossa Majestade me promete não me tirar do casal, eu dou-lhe duas bolsas iguais a essa, cheias de dobrões de ouro… duas bolsas!... Aceita?
Perante tal audácia, numa luta íntima entre o orgulho e a justiça, num assombro de desilusão e de zanga, ele foi finalmente vencido pelo sentimento de generosidade de um bom Rei.
Percorreu com um olhar severo, de alto a baixo, a simples e modesta mulher; fitou-a de novo com a sua luneta numa secreta homenagem, como desejando fixar na consciência o perfil duma velha respeitável, e, vagarosamente, voltou-lhe as costas dirigindo-se para o seu coche.
Ele não era um vencido; pelo contrário ele, Rei, tinha obtido nesse dia, uma retumbante vitória concedida pela sua consciência e bondade.
Quando o eco da pesada viatura foi esmorecendo e se perdeu de todo na volta do caminho, o sossego voltou ao Casal.
O silêncio era profundo.
Então a envelhecida casaleira, tristemente, olhou em redor. Lembrou-se de todos aqueles que ali nasceram, trabalharam e sofreram: de todos aqueles que ela amara. Habitava talvez no íntimo, uma pequenina ponta de orgulho como se esta quisesse assegurar que tudo aquilo que ela fizera fora um acto de coragem impulsionado por amor a todos eles.
Vagarosamente, subiu os toscos degraus que levavam ao terreiro. Dominava-a uma completa paz interior.
No terraço de terra batida havia a um lado um canteiro de malmequeres brancos, tendo em frente um tufo de sardinheiras vermelhas.
Logo junto à porta sentou-se naquela pedra grande que servira de banco a todos os seus parentes.
Então, sem saber porquê, cansada, entre contente e saudosa, como se tivesse terminado uma luta violenta que a tivesse esgotado no corpo e na alma, apoiou a cabeça nas mãos e começou a chorar convulsivamente.
Lágrimas naquela idade e num ambiente de total solidão, significam e firmam vincadamente uma eterna fidelidade na amizade e no amor.
Esse mundo de amargura que se assenhoreou da sua alma traduz afinal essas duas simples palavras: ‘para sempre’.
Preenchem completamente a vida deste mundo e esperam terminar no novo e definitivo encontro.
Benditas sejam as dolorosas visitas da saudade.
Um frondoso carvalheiro, que morava perto, balanceou os ramos e agitou as folhas como se todos batesse, palmas de aplauso não só à coragem e fidelidade da casaleira, mas também à recta conduta dum rei portador dum grande coração.
E os pintassilgos em bando, que nesse momento surgiram em revoada baixa e ondulante a caminho do Salabredo, chilreavam como se gritassem num coro de alegria:
Magnífico… magnífico… magnífico…
Mas ninguém ficou a saber a quem eles se queriam referir: se ao soberano omnipotente rodeado de fama e prestígio, com o seu nome escrito a letras de ouro, se à modesta e fiel casaleira cujo nome se perdeu na poeira dos anos.
(António Vitorino França Borges, Casal do Abade, p. 6-11).
- Source
- CAETANO, Amélia "Lendário Mafrense" in Boletim Cultural '93 , Câmara Municipal de Mafra, 1994 , p.257-260
- Place of collection
- MAFRA, LISBOA
- Collector
- António Borges (M)