APL 3046 Casal do Abade (versão A)
Na segunda Tapada, sobre uma colina, vêem-se ainda hoje as paredes arruinadas de um antigo prédio. É o Casal do Abade. Porque se chama assim, não sei, nem aqui o dizem. Mas as lendas são sempre mais atraentes quando envolvem um poucochinho de mistério.
Nesse casal vivia em tempo de D. João V uma velha. Seria a ama canónica do abade, que lhe sobrevivesse e dele herdasse um farto pé de meia.
Estava ela muito bem descansada no seu casal, ao qual a prendiam decerto recordações agradáveis da época em que o abade florescera na robustez da juventude.
Mas el-rei, a troco de ter sucessão, fizera voto de mandar edificar um grande mosteiro com muitas terras em redor. Vê-lo ali, o mosteiro colossal, que pode resistir ao grande terramoto do século XVIII.
Essas terras tinham dono, e era preciso adquiri-las por meio de transacção amigável ou expropriação forçada.
Um dia el-rei D. João V foi pessoalmente ao Casal do Abade com o propósito de entrar em ajuste acerca da compra.
A velha fartou-se de dizer ‘real senhor, real senhor’, como quem quer doirar a pílula, mas não havia meio de a convencer a alienar o casal.
Tudo eram mesuras, gestos de humildade, palavras doces ‘meu senhor, real senhor’, mas queria muito ao seu casal vendê-lo a quem quer que fosse, ainda mesmo ao seu rei.
O senhor D. João V não era pessoa que recuasse em questões de dinheiro. Achava barato o que aos outros parecia caro: o carrilhão de Mafra, por exemplo. Portanto, deixando-se ir ao sabor do seu génio magnânimo, disse à velha, por último:
- Vende-se o casal, que eu dou-te um barrete cheio de peças.
A velha olhou humilde para o rei e com um sorriso, que parecia de ironia e doçura, respondeu curvando a cabeça:
- Pois, meu senhor, para que vossa majestade me não queira tomar o casal, sou eu capaz de lhe dar… dois barretes cheios de peças.
Não diz a tradição como o caso veio a liquidar-se: certamente seria por expropriação violenta, tão violenta que alguns proprietários apenas foram indemnizados 30 anos depois.
Mas naquele dia el-rei D. João V, o Magnânimo, ficou de cara à banda, porque a velha lhe resistiu, quando as novas não ousavam fazê-lo.
(Alberto Pimentel, Sem passar a fronteira, p. 98-99).
- Source
- CAETANO, Amélia "Lendário Mafrense" in Boletim Cultural '93 , Câmara Municipal de Mafra, 1994 , p.256
- Place of collection
- MAFRA, LISBOA
- Collector
- Alberto Pimentel (M)