APL 2727 Lenda dos Aroches
No ano 39 da nossa era governava, em Roma, Caio Germano Calígula. O seu carácter doentio e sanguinário só lhe grangeara inimigos. E os que o serviam, ou eram iguais a ele, ou faziam-no apenas por medo. Certo dia conta a nossa lenda, que não fica longe da história — o jovem romano Licínio Balbo foi obrigado a comer à mesa do imperador com o cavalo deste — o célebre «Incitatus» — ao qual eram prestadas honras de primeiro cônsul! Apavorado e revoltado com tal desaforo, Licínio abandonou Roma e entrou, clandestinamente, na Andaluzia.
Há muito tempo que não chovia. Os campos de Aroche mostravam a desolação motivada pele sede das suas árvores e arbustos. Fazia calor, um verdadeiro calor, andaluz. Mas no palácio de Flávio Valério havia defesa contra a alta temperatura. E Flávio, aquele que governava Aroche em nome de Roma e de Calígula, era bem digno do seu senhor! Por isso o povo oprimido o odiava. Odiava-o e temia-o. Mas o governador tinha o poder nas mãos, carta branca para qualquer represália ou castigo. E sabia-se temido, embora não ignorasse que não era respeitado. Porém, para um devasso como Flávio Valério, a opinião do povo não interessava. E se algum dos seus súbditos mais categorizados ousava proceder de forma diferente e criar um pouco de simpatia entre os governados, Flávio Valério mostrava logo o seu pesado desagrado.
A cadeira de grande espaldar onde Flávio se recostara gemeu sob o peso do seu corpo, não muito pesado, é certo, mas demasiadamente entregue à lassidão. O governador de Aroche pensava. Pensava naqueles que mandara chamar e deviam estar a aparecer. E gozava já, antecipadamente, da alegria de ver amachucado e ferido no mais íntimo do seu orgulho aquele que viera de Roma comandar meia centena de homens e tomava agora atitudes de amigo ou pai do próprio povo.
Os pensamentos de Flávio Valério foram cortados pela aparição de um soldado dizendo que estavam à porta as pessoas que mandara chamar. Levantando a cabeça num ar importante e sorrindo, sorrindo com maldade, Flávio Valério mandou levantar o reposteiro e tentou ser amável.
— Entra, Júlio Decêncio e traz a tua filha! Precisamos conversar.
O homem que acabava de dar entrada no salão era de meia-idade e tinha no rosto uma expressão dura, embora franca. A seu lado, linda na sua simplicidade, sua filha Márcia nem se atrevia a olhar em volta. O homem de meia-idade cumprimentou o dono da casa.
— Salve, Flávio Valério! Que me queres?
O governador sorriu melifluamente, olhando a formosa donzela, e respondeu com um grosseiro comentário:
— Que tesouro possuis, Júlio Decêncio! A tua filha decerto agradaria ao nobre Calígula!
Júlio Decêncio tornou mais dura a sua expressão.
— Se foi para me ofenderes que me mandaste chamar, retirar-me-ei imediatamente!
Flávio olhou-o com cinismo. Falava pausadamente, como quem mede cada uma das suas palavras.
— Não sejas tão soberbo! Se tens a sorte de possuir como filha uma mulher lindíssima, tens todavia a desgraça dessa mesma mulher tomar atitudes suspeitas a Flávio Valério e a Roma!
O militar franziu as sobrancelhas.
— Suspeitas? Que queres dizer, Flávio Valério? Explica-te!
Tornando-se subitamente sério e agreste, embora sem subir de tom, o governador de Aroche declarou:
— Diz-se que a tua filha Márcia é afecta à causa de Tiago, o filho de Zebedeu! E já a ouviram falar de Cristo!
O velho militar olhou a filha numa interrogação de aflitiva surpresa. E indagou:
— Márcia! Acabam de fazer-te uma grave acusação. E verdade o que Flávio Valério afirma?
Márcia olhou o pai com tristeza. O seu ar humilde desaparecera, sem contudo se mostrar arrogante. Respondeu, serena:
— Meu pai... Os grandes de Roma não gostam de ser desmentidos!
Júlio Decêncio irritou-se.
— Mas Flávio não está em Roma, está em Espanha!
Suavemente, Márcia acrescentou:
— Onde governa em nome de Calígula!
Atarantado, o velho militar olhava ora a filha, ora o governador de Aroche. Este sorria mais abertamente. Continuava a gozar com o desespero do seu compatriota. E sentenciou:
— Ouviste a tua filha? Aqui não és tu quem governa Aroche, pois tens na mão meia centena de plebeus. Quem governa sou eu, que represento Roma! Compreendes?
Ia continuar a sua reprimenda quando descobriu, junto ao reposteiro da entrada do salão, um jovem de aspecto altivo e desembaraçado. Tornou a sorrir e comentou:
— Vejo ali, à porta, alguém que muito interessa ao nobre Calígula e, por consequência, a mim próprio! Entra, cidadão Licínio! E os guardas que te apanharam e trouxeram que fechem bem as portas!
Licínio entrou com desembaraço, como se estivesse na sua própria casa. Sorria também, e quando falou havia bastante ironia na sua voz.
— Estás contente por me teres descoberto? É na verdade uma grande proeza que irá agradar ao teu amo!
Pela primeira vez, Flávio Valério mostrou-se francamente irritado.
— Amo, dizes? Não! Ele é nosso imperador!
Sempre ironizando, Licínio retorquiu:
— E o seu cavalo, mais do que tu!
— Vê como falas do nobre Calígula!
Olhando de frente, bem nos olhos, o governador de Aroche, o jovem declarou:
— Desprezo Calígula com todas as forças da minha juventude!
Voltou o sorriso mau a iluminar a expressão de Flávio Valério.
— É pena que estejas destinado a morrer tão cedo!
Desconhecendo ainda os outros dois personagens que assistiam a esta cena, Licínio replicou:
— Não és tu quem pode decidir da minha vida ou da minha morte.
Nova surpresa de Flávio.
— Quem pode, então? O tal Deus que anda por aí na boca dos rebeldes?
Serenamente, Licínio respondeu:
— Não o conheço ainda, mas não me repugna acreditar que será mil vezes superior a Calígula!
Foi a vez do governador parecer recordar-se do militar e de Márcia. Voltando-se para o homem, declarou com certo escárnio na voz:
— Júlio Decêncio! Talvez tua filha Márcia possa ajudar o cidadão Licínio. Ele diz que o não conhece ainda. Compreendes? Ainda!
E sublinhava esta última palavra.
Licínio olhou a jovem, então, e não escondeu o seu interesse. Márcia não deixou que fosse o pai a responder. Serenamente e com dignidade humilde, declarou apenas:
— Pudesse eu ser prestável ao meu semelhante!
Flávio troçou:
— Semelhante? Que palavra estranha! Creio que é usada frequentemente por Tiago!
Desta vez, Márcia retorquiu, sorrindo:
— Na verdade o caso não constitui segredo, visto que o nobre Flávio Valério também a conhece!
Com admiração sincera, Licínio exclamou:
— Eis uma mulher como deviam ser todas em Roma!
Maldosamente, Flávio interpôs-se.
— Bela, não é verdade, Licínio? Por isso a vou recomendar a Calígula!
Forte e precisa, como em comando, soou a voz do militar.
— Não o farás! Márcia é minha filha, não o esqueças! Por ela exporei a vida!
Melifluamente, Flávio declarou:
— Veremos o que decide o nosso Imperador.
Júlio Decêncio tornou a falar:
— Terás de haver-te comigo, Flávio Valério! Comigo e com os meus homens!
O governador deu uma gargalhada que soou falsa.
— Isso é uma ameaça? Que ideia a tua! Pois vou dar-te um conselho.
A sua expressão endureceu. A sua voz soou com aspereza.
— Cuidado, Júlio Decêncio! Tenho visto outros serem mortos por muito menos!
O militar empalidecera, mas a sua expressão e voz continuaram duras.
— Pois faz o que entenderes!
E voltando-se para a filha:
— Vem, Márcia! Esta casa é pequena demais para nós!
Flávio voltou a gargalhar:
— Vai-te! Vai-te, beldade! Em breve voltarás!...
Sem mais cumprimentos, Júlio Decêncio e sua filha Márcia abandonaram o salão sem que o governador lhes tolhesse a passagem Quando saíram ambos, Licínio olhou o governador cara a cara.
— Agora já podes dizer o que pretendes de mim. Também me queres mandar a Calígula?
Flávio riu sem vontade.
— Sempre o mesmo, este jovem Licínio!
Sorriu cinicamente e continuou:
— Sabes? Formei outro projecto. Outro projecto que me sabe melhor...
Licínio comentou:
— Não me soou bem a tua voz.
O governador sorriu com a ironia que já lhe era habitual.
— Que pena! Julguei que irias agradecer-me o deixar-te sair livre!
— Compreendo-te. Queres apanhar-me com mais segurança. Conheço os processos de Roma! Mas vou ser, uma vez ao menos, obediente: vou sair… e já!
E fazendo uma reverência quase cómica, o jovem Licínio saiu do salão.
Passaram-se alguns dias, calmos e claros, sem que a sombra de Flávio viesse enegrecê-los. Refeita do susto que tivera, Márcia recomeçou a sua vida normal. Ela era daquelas que nunca retrocederia por medo!
A manhã começara a romper. Quase a medo, a luz ia surgindo da treva. Embuçada num manto negro, Márcia saiu de casa, sem que a vissem. O ar fino e frio bateu-lhe nos olhos. Rodeou a esquina da rua com passos apressados. De súbito, estacou. Pressentiu que alguém a seguia. Tapou melhor o rosto e voltou-se. Um homem, também embuçado, dirigiu-se para ela e deu-se a conhecer.
— Salve, Márcia, a mulher mais destemida que encontrei!
— Salve, nobre Licínio Balbo!
Ele admirou-se.
— Sabeis já quem sou? Conheceis o meu nome?
— Depressa tentamos saber o que nos apoquenta o espírito...
— E... eu tive a sorte de entrar nos teus pensamentos?
— Desde que te vi em casa de Flávio. Pareceste-me um homem honrado!
— Grande é a minha alegria pelo conceito que de mim fazes. Deves calcular que também tu me interessaste, visto que te segui e a esta hora. Há cinco dias que te espreito.
— Não sei se deva zangar-me...
Ela sorriu. Ele sorriu também.
— Não te zangues, porque não foi por mal! Sei quanto vale Flávio e receio por ti.
— E por ti... não receias?
— Só depois de te conhecer soube o que era o receio. Flávio mandou espiar-te!
Ela acenou com a cabeça antes de afirmar gravemente:
— Bem sei. Por isso saio de casa a esta hora, tão imprópria, na verdade, para uma jovem como eu. Mas tem cuidado, Licínio Balbo! Se nos vêem juntos, tanto pior para ti!
O jovem romano deitou-lhe um olhar onde ia toda a sua admiração.
— Desejo defender-te! Concedes-me essa graça?
Ela perguntou então, com voz triste:
— Queres defender-me… perdendo-te?
— Perdido estou eu já!
A jovem sentenciou:
— O teu corpo, talvez! A tua alma, não!
— A minha alma?
Havia surpresa na sua voz. A jovem tomou alento.
— Sim! A tua alma não está ainda perdida. E ela merece todo o nosso carinho!
Meigamente, Licínio indagou;
— Foi Tiago quem o disse?
— Foi o próprio Nazareno!
Licínio assustou-se:
— Márcia! Vejo que estás exposta a grande perigo! Bem sabes o que aconteceu ao Nazareno e a muitos que o seguem!
A jovem pousou a sua mão no braço do companheiro. Uma expressão de doçura iluminou-lhe as feições. Sorria de uma forma estranha, que hipnotizou o próprio Licínio. E declarou, por fim:
— Sou tão feliz agora, Licínio! É tão doce a doutrina de Jesus! Se a conhecesses...
Ela suspendeu a frase olhando-o nos olhos, O jovem pediu então, com entusiasmo.
— Márcia! Ajuda-me a conhecê-la!
Dando-lhe a mão, a rapariga disse apenas, quase num murmúrio:
— Anda comigo!
E ambos, lado a lado, continuaram seguindo pela estrada deserta, nessa manhã que vinha nascendo clara, espalhando à sua volta infinitos raios de luz!
Desde esse dia memorável para Licínio Balbo, este passou a ser visita da casa de Júlio Decêncio e de sua filha Márcia. Que amor forte nasceu espontaneamente entre os dois jovens! Márcia andava feliz, apesar da ameaça constante que pairava sobre eles. Mas tinham fé em Deus. Uma luz intensa iluminava agora o cérebro e o coração do nobre Licínio Balbo!
Mas não tardou que uma nuvem negra viesse toldar esse céu azul. E a nuvem era o odioso Flávio Valério! Alguém viera avisar Licínio que se preparava o rapto de Márcia. Aflito, o jovem enamorado correu a casa de Júlio Decêncio, pondo-o ao corrente do que se passava. O velho militar ficou perplexo.
— Tens a certeza que prepararam para amanhã o rapto de Márcia?
Licínio mostrou-se alarmado.
— Tenho a certeza! Dei parte das minhas jóias a um dos validos de Flávio Valério. Foi ele quem me avisou, porque será ele quem organizará o rapto. Está marcado para as primeiras horas do dia de amanhã.
O velho militar tomou-se apopléctico.
— Pois irei hoje mesmo matar Flávio ao seu palácio!
Márcia, que vinha entrando e ouvira toda a conversa entre o pai e o noivo, implorou:
— Não vá, meu pai! Não quero sangue derramado por minha causa!
O pai continuava excitado.
— Não queres? Mas como subtrair-te à cobiça de Flávio, sem combate?
Licínio, que conseguira refazer-se um pouco da excitação em que se encontrara, propôs:
— Tenho uma ideia: Márcia sairá esta mesma tarde de Aroche com metade dos teus homens e sob o teu comando, cidadão Júlio Decêncio. Entretanto, eu ficarei com a outra metade a proteger a retirada. Entrarão na Lusitânia e procurarão lá abrigo e reforços.
Júlio Decêncio ficou um momento pensativo, tal como nos solenes minutos que precediam uma batalha. Depois declarou com energia:
— Talvez não seja desacertado o teu plano. Conheço uma terra onde possuo alguns amigos. Iremos para lá.
Márcia aproximou-se lentamente do velho militar. Havia tristeza no seu rosto e na sua voz.
— Meu pai! Uma filha deve acatar as ordens daquele que lhe deu o ser. Não serei desobediente. Mas, se me é permitido, direi que sem Licínio a minha estada lá será um constante suplício... e a minha vida resultará sem interesse. Perdoe-me, pai! Esta é a minha verdade.
Licínio aproximou-se e tocou-lhe num ombro, fazendo-a voltar o rosto. Ela olhou-o, enquanto o velho militar baixava a cabeça, pensativo. Então Licínio falou-lhe.
— Márcia! Compreendo-te e amo-te ainda mais, se possível for! No entanto, justamente porque te amo, devo salvar-te a honra, que está mais em perigo do que a tua vida!
O pai de Márcia ajuntou, com voz grave:
— Licínio tem razão. Deves obedecer-lhe.
Fazendo enorme esforço para não chorar, a jovem murmurou quase:
— Pois seja. Partamos. Mas partamos todos com destino igual... embora em grupos pequenos, para que se não dê por isso.
A sua voz ia tomando calor e os seus olhos iam tomando brilho.
— Formaremos uma nova Aroche... E lá, sob o signo de Deus, poderemos ser felizes!...
Licínio não respondeu. Olhava o velho militar. Então, respirando fundo, Júlio Decêncio ergueu o busto, e ao seu olhar voltou a chama brilhante dos velhos tempos de glória.
— Licínio! Acho bem a proposta de Márcia. Prepara os nossos homens para partirem contigo. Eu, Márcia e os da minha casa seguiremos imediatamente. Em breve te chegará às mãos a planta do local onde iremos acampar.
Juntando as mãos, Márcia ergueu ao Céu uma oração mental. Vendo-a assim, recolhida, bela e serena, Licínio sentiu-se forte. A empresa era decerto arriscada — principalmente a sua saída de Aroche. Mas também ele tinha agora uma nova força a alimentar-lhe a vontade. Força que era fé e esperança. Força que lhe daria a possibilidade de furtar o seu corpo e a sua alma ao jugo de Roma.
Beijando a testa de Márcia, Licínio saiu correndo.
Na rua, o ar fresco bateu-lhe no rosto. O jovem respirou fundo. Era o seu primeiro passo para a libertação!
Foi assim que segundo conta a lenda se fundou na Lusitânia a nova Aroche, a qual com o decorrer dos tempos o povo passou a chamar Arronches!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume I, pp. 311-318
- Place of collection
- ARRONCHES, PORTALEGRE