APL 2876 Lenda do Monge Arrependido
Há muitos, muitos anos, nos começos do século X, existia ainda uma povoação chamada Portelas, situada no Alto Alentejo, e que era habitada ora por mouros, ora por cristãos. Andavam portanto sempre em guerra. A povoação estava um pouco isolada, junto à serra, e era por vezes assaltada por verdadeiras legiões de bandoleiros. Daí, o desassossego dos seus habitantes, que viviam em permanente vigilância.
Certa noite, uma das casas mais ricas de Portela foi assaltada pelos bandoleiros. Travou-se combate rijo. Os criados do senhor de Portelas receberam os assaltantes com saraivadas de setas, pondo-os em fuga. Mas um deles não passou do pátio. Caiu, torcendo-se numa agonia dolorosa. Como os donos da casa eram cristãos, mandaram que recolhessem o ferido e o tratassem. Em breve, porém, os vieram informar que o ferido pouco tempo teria de vida. Afligiu-se a senhora da casa. E correu, acompanhada pelo marido, a visitar o moribundo.
Ao chegar ao quarto onde este se debatia com a morte, aproximou-se dele e perguntou:
— Quereis confessar-vos?
O homem olhou a mulher que assim falava como se a ouvisse já no outro mundo. Quis responder-lhe, mas não conseguiu dizer mais do que uma simples frase:
— Sou maldito por Deus!
A dona da casa insistiu em chamar um padre. Mas ele recusou. Recusou num berro de horror, repudiando a oferta da boa senhora. Então, o senhor da casa levou com ele a mulher, dizendo-lhe:
— Já cumpristes com o vosso dever de cristã. Não consinto que possais ser desfeiteada por um bandido, nem mesmo à hora da sua morte!
Ficou só com a sua atroz agonia, o ladrão assassino. Escurecia. Ao longe soou uma oração. Talvez a da senhora da casa, acompanhada de todos os seus criados. De súbito, no quarto do moribundo alguém surgiu. Era uma jovem de aparência tímida, bela e simples. Vestia à maneira judaica. Abeirou-se do agonizante e chamou-o pelo nome:
— José!
O homem olhou a jovem. Fitou-a, perplexo:
— Como... sabeis... o meu nome?
— Sei de ti mais do que pensas!
Tratava-o por tu, o que admirou mais ainda o moribundo que, todavia, encontrava novas forças para falar. Perguntou:
— Quem sois?
— Sou aquela a quem dantes pedias sempre que não te deixasse morrer em pecado mortal.
O ladrão assassino abriu os olhos num espanto e começou a soluçar, gritando:
— Não! Não pode ser!... Sou um grande pecador! Eu fui religioso numa Ordem de Itália… e depois de ter recebido as ordens sagradas... saí do convento… e cometi grandes sacrilégios... Assaltei casas e viandantes... matei inocentes… desonrei donzelas... violentei mulheres casadas... matei muita gente e reneguei a Cristo! Sou um maldito! Um maldito!
E chorava alto, como uma criança. Sorrindo sempre, a donzela de manto azul sobre a cabeça e sobre os ombros declarou:
— Sei quanto te aconteceu. Por isso te lembro que deves confessar as tuas culpas a um padre da mesma ordem a que pertenceste. Deus pôs um deles no teu caminho. Está alojado aqui perto, e amanhã virá a esta casa dizer a Santa Missa. Deves confessar-te!
O homem continuava chorando.
— Ele não me dará a absolvição!
Sorriu, de novo, a jovem.
— Deus é Misericórdia infinita! E sei que estás arrependido!
— Sim, estou! Mas... não mereço a Vossa presença... nem a Vossa palavra!
— Só Deus sabe aquilo de que somos merecedores. A força do teu remorso é superior à força dos teus pecados! Isso ser-te-á levado em conta para a tua salvação.
O ex-monge continuava chorando. Depois ergueu os olhos inchados e rezou, cheio de unção, a oração que outrora dirigia diariamente à Virgem. As lágrimas inundavam-lhe o rosto e encharcavam-lhe o lençol. Cerrou as pálpebras. Quando voltou a abri-las viu a seu lado o dono da casa. Já lá não estava a donzela. O dono da casa perguntou:
— Que tendes? Choráveis alto!
O moribundo murmurou, já despido de toda a rebeldia:
— Não mereço... o que Ela fez por mim!
Julgando referir-se ao pedido da esposa, o dono da casa animou-o:
— Sois pecador, é certo! Mas minha mulher é cristã e gostaria que vos confessásseis antes que a morte vos buscasse!
O renegado sorriu. Sorriu por entre as lágrimas. Sorriu no meio da sua agonia. Não poderia dizer que se tinha referido, não à intervenção da dona da casa, mas à intervenção da própria Mãe de Deus! Julgá-lo-iam doido. Completamente doido! E não o estaria, de facto? A medo, perguntou:
— Existe aqui algum padre beneditino?
O dono da casa olhou-o estupefacto e declarou:
— Sim. Chegou aqui ontem. Veio cá dizer missa na ermida e volta amanhã. Como o sabeis?
O homem não respondeu. Murmurou qualquer coisa em latim que o dono da casa não compreendeu. E declarou, já mais calmo:
— Amanhã, quando ele chegar, dizei-lhe que preciso confessar-me!...
O outro interrompeu-o.
— E... não achais melhor chamá-lo ainda esta noite? Podeis não ter tempo...
Serenamente, o ex-monge murmurou:
— Não o incomodeis agora! Não mereço tanto!
Saiu o dono da casa ao encontro da esposa para comunicar-lhe o sucedido. Ambos resolveram chamar o beneditino, que não se fez esperar. O frade, posto ao corrente do sucedido, ficou só com o ex-monge. Este fez uma confissão completa dos seus pecados, deixando horrorizado o confessor, que exclamou:
— Deus me guarde! São tão graves os teus pecados, que nem sei se me atreva a dar-te a absolvição. Terás de recorrer a quem possa dar-te penitência condigna!
O outro exclamou:
— Não te esqueças de que fui clérigo. Sei, portanto, que as Sagradas Escrituras prometem que sempre que o pecador se arrependa e deteste os seus pecados, a Misericórdia de Deus os apagará, por maiores que eles sejam! Tem, pois, a caridade de impor-me uma penitência!
O frade ficou pensativo. Murmurou:
— Espero em Deus que não morras ainda esta noite. Ficarei em oração e dir-te-ei o que Deus me inspirar!
O moribundo suspirou fundo. Depois, como seguindo um pensamento súbito:
— Ouve, irmão! Absolve-me que eu próprio me imporei a penitência.
— Qual?
— Dois mil anos de Purgatório, antes que o Senhor me chame para a sua Glória!
— Seja! E pedirei à Congregação que reze missas por tua alma. Deus te aliviará! E já agora, irmão, antes de deixares este mundo diz-me: tinhas, antes, alguma devoção especial?
— Sim, tinha! Rezava à Virgem uma oração para que não me deixasse morrer em pecado mortal!
O frade sorriu e disse:
— Compreendo agora! Quando orava à Virgem, uma senhora que eu nunca tinha visto veio dizer-me que um moribundo esperava por mim nesta casa para que o confessasse. Quando eu ia a sair, chegou um criado vindo daqui com o mesmo recado. E ninguém conhecia a senhora que me foi falar.
Com voz quase extinta, o monge perguntou:
— Levava um manto azul a cobri-la?
O frade olhou o moribundo de um modo estranho:
— Sim... levava! Como o sabes?
— Passou por aqui antes de visitar-vos!...
Uma lágrima deslizou-lhe pelo rosto. A última lágrima do monge arrependido!
Retirou-se o frade, depois de encomendar o corpo. Antes de sair pediu ao dono da casa:
— Levai até ao fim a vossa caridade. Enterrai em lugar santo este homem que foi monge e saiu do caminho de Deus. Porém, mercê da sua devoção à Virgem Nossa Senhora, esta trouxe-lhe o arrependimento, e com ele a Salvação!...
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 167-170
- Place of collection
- PORTALEGRE, PORTALEGRE