APL 2883 Lenda das Obras de Santa Engrácia

Simão cavalgava apressado, envolvido na capa negra. A noite acolhia-o. Mal chegara e logo ela encontrara o moço Simão Pires — um cristão novo — cavalgando direito ao convento de Santa Clara. Era assim quase todos os dias. Nem esperava pelo seu fim. Ousado e valente, Simão não cuidava, sequer, de tapar o rosto. Mas o crepúsculo avisava a noite, e esta vinha logo encobri-lo. De quantos amores às escondidas a noite é cúmplice! Também era ainda a noite que ajudava Violante — uma linda noviça — a sair ao jardim para falar a sós com o seu bem-amado. Porque ela não pensava ser freira. Ela amava Simão. Amava-o profundamente. Porém, seu pai, fidalgo arrogante, afastara-a do caminho do seu amor, encerrando-a num convento.
 
O cavalo parou a um simples esticão de rédeas. Ali estava o muro. Breve cairia a escada de corda. O coração pulou-lhe. A escada tocou no muro. Simão deixou o cavalo, que sabia esperar pacientemente, e subiu. As suas mãos, no cimo, tocaram outras mãos. O seu rosto, outro rosto. Saltou para a cerca. Estavam, finalmente, juntos.
— Querida Violante! Esta espera mata-me! Sem ti não saberei viver!
Ela ciciou quase, anichada nos braços fortes do seu bem-amado:
— Meu amor, acalma-te! Eu penso como tu mas... teremos de saber esperar um pouco mais...
Ele disse com arrebatamento:
— Não posso! Vou amanhã mesmo falar com o teu pai!
A noviça apertou-lhe as mãos.
— Não... não faças isso por agora!
E numa voz quase chorosa:
— Hoje o meu pai esteve aqui... falei com ele… mas encontrei-o inflexível. Quer que eu professe!
A jovem sentiu-se mais presa do abraço forte de Simão. A voz do bem-amado soou rouca aos seus ouvidos:
— Nunca o permitirei!
— Mas ele insiste...
— Se for necessário, hei-de raptar-te! Levar-te-ei para longe!
— Seria a desonra para os meus!
— Que pretendes então fazer?
— Esperar! Deus velará pela nossa felicidade!
— Esperar! Já começo a estar cansado! Tenho de agir!
— E qual é a tua resolução?
— Pedir-te que escolhas: obedeceres a teu pai e ficares aqui no convento... ou fugires comigo!
A jovem noviça tapou o rosto com as mãos. Chorava silenciosamente. Simão impacientou-se:
— Não te compreendo, Violante. Se realmente gostas de mim, não vejo motivo para tanta inquietação. A não ser que eu já nada represente para ti!
Violante mostrou o seu rosto bonito coberto de lágrimas. E declarou com veemência:
— Simão! Bem sabes como te amo!
— Então porque hesitas?
— Porque não devo decidir assim, sem reflectir.
E suplicante:
— Dá-me um prazo, Simão. Por pequeno que seja. Preciso de pensar!
Simão respirou fundo, a ganhar calma.
— Pois bem: amanhã à noite virei saber a tua resposta.
Ela sorriu ainda por entre as lágrimas.
— Está bem! Amanhã à noite ficará tudo decidido.
Em baixo ouviu-se um tropel de cavalos que se aproximavam. Violante assustou-se:
— Vai-te, Simão! Vem aí gente!
Ele abraçou-a e segredou-lhe ao ouvido:
— Até amanhã, meu amor!
E desceu, rápido, a esconder-se na noite escura.
 
A manhã sorriu à noite, que se afastou num passo cadenciado. Sorriu buliçosa, toda luz e cor. Simão dormia, mas foi também despertado. Não pelo sorriso fresco da manhã, mas pelo bater rude de alguém que gritava à porta da sua casa.
— Abra em nome de El-Rei!
Simão vestiu-se com rapidez. As pancadas fortes continuavam soando na porta. O jovem gritou:
— Vou já!
Quando a porta se abriu, dois homens entraram. Um deles era o meirinho. Simão indagou, surpreendido:
— Que se passa?
O meirinho sorriu ironicamente, ao responder:
— Passa-se… que está preso em nome de El-Rei!
— Preso?
— Sim!
E voltando-se para o outro homem que o acompanhava:
— Tens a certeza de que é este o homem que procuramos?
O outro respondeu:
— Sim, senhor meirinho, é este mesmo. Chama-se Simão Pires e é cristão novo. Não admira, portanto, que tenha feito o que fez!
Simão olhava os homens com perplexidade.
— Não compreendo! De que me acusam?
O outro homem ia falar, mas o meirinho fez-lhe um sinal imperativo com a mão para que se calasse. E voltando-se para Simão:
— Responda-me apenas a três perguntas. Primeira: andou ontem à noite com o seu cavalo rondando a igreja de Santa Engrácia?  
Simão não respondeu logo. O meirinho insistiu.
— Seja franco. Andou ou não?
— Andei por ali...
O outro homem sorriu. O meirinho continuou:
— Segunda pergunta: o seu cavalo levava os cascos entrapados para não fazer barulho?
Simão mordeu ligeiramente os lábios. Receava, não por si, mas por Violante. Todavia, o meirinho continuava insistindo:
— Vamos! Responda só a verdade!
Simão decidiu-se:
— É verdade.
O outro exultou:
— Eu não dizia, senhor meirinho? Foi ele mesmo!
O meirinho tornou dura a sua expressão.
— Vamos, Simão Pires! Já agora, responda à terceira pergunta: que andava a fazer a essas horas junto da igreja de Santa Engrácia?
Simão silenciou. Porém o meirinho tornou-se ainda mais duro:
— Vamos! Exijo que responda!
O jovem abanou a cabeça, numa negativa:
— Não posso.
— Não pode porquê?
— Porque não devo.
— Pois bem! Também eu não devo hesitar mais. Considere-se preso.
— Porquê?
— Bem sabe porquê!
— Não sei!
— Pois vou avivar-lhe a memória. Há dias que tem andado a preparar o roubo sacrílego das sagradas partículas e dos cálices de ouro da igreja. E ontem efectuou esse roubo!
Simo sentiu-se verdadeiramente indignado. Bradou:
— É falsa essa acusação! Falsa e indigna!
O outro apressou-se a intervir.
—  Se é falsa, como explica o senhor que eu o tenha visto a cavalo, fora de horas, junto da igreja de Santa Engrácia? E ainda por cima com os cascos do cavalo entrapados!... Vamos, justifique-se!
Simão fechou os punhos. Depois levou uma das mãos ao rosto, que logo destapou para encarar o meirinho, afirmando com voz decidida:
— Juro que estou inocente! Deus bem o sabe!
O meirinho cerrou as sobrancelhas.
— A sua jura não me serve. Ou diz o que fez ontem à noite, ou tenho de o prender.
— Já disse que estou inocente desse roubo indigno de um homem! Mas não posso dizer o que fazia ontem à noite junto da igreja de Santa Engrácia!
— Então… considere-se preso!
A recusa obstinada de Simão em confessar o que fizera na noite do roubo, embora negasse esse mesmo roubo, acabou por fazer acreditar o juiz da culpabilidade do réu. E Simão foi condenado à morte, apesar dos seus veementes protestos de inocência.
Quando o jovem se convenceu que já nada havia a fazer, todo o seu rompante se diluiu. A desgraça marcara-o. Não sabia, sequer, como reagir. Quando o último minuto soou, o meirinho acercou-se dele. A sua voz era quase carinhosa. Não compreendia bem porquê, mas custava-lhe a acreditar no gravíssimo pecado que imputavam a Simão.
— Vamos, Simão Pires! Chegou a tua última hora! Prepara-te para morrer!
Simão olhou-o numa expressão dolorosa.
— O tribunal, então, não me quis ouvir?
O meirinho não lhe sustentou o olhar.
— Não, Simão Pires. O tribunal somente pode actuar diante de provas… e as provas são todas contra ti. Simão meneou a cabeça.
— O homem que me viu continua a afirmar que fui eu que roubei?
— Sim. É a principal testemunha de acusação.
— Pois que Deus me valha, já que nada mais posso fazer!
— Podes, sim!
— O quê?
— Confessar o que fizeste naquela noite...
— Prefiro morrer!
— E morrerás, Simão, morrerás!
Simão tapou o rosto, sem dizer palavra. Mas no íntimo do seu coração gritava desesperadamente um nome: Violante!
 
O burburinho aumentava. A multidão comprimia-se. A execução ia ter o seu início, mesmo em frente da nova igreja de Santa Engrácia, cujas obras já tinham começado.
Cabisbaixo, sempre silencioso, Simão Pires deixou-se conduzir. As cerimónias para tirar a vida a um homem sob a égide da Justiça são morosas e solenes. Simão assistiu a tudo como se estivesse ausente. Amarraram-no sobre a pira de lenha. Acenderam a fogueira. Mas quando as labaredas envolveram o corpo de Simão, este gritou desesperadamente:
— É tão certo morrer inocente do que me acusam, como estas obras da igreja nunca mais acabarem!
O povo que o escutou entreolhou-se, confuso. Que teriam a haver as obras da igreja com o roubo que ele cometera? O povo só mostrou curiosidade enquanto Simão deu sinais de vida. Mal o viram morto, todos se foram embora, como quem regressa a casa após um espectáculo. E tudo quanto se relacionava com o roubo pareceu morrer com ele.

Os anos foram seguindo. Imperturbáveis. Sem descanso. Violante, a jovem e gentil noviça de Santa Clara, fez a vontade ao seu pai: professou, com o nome de Maria do Céu. E um dia, muito tempo depois da morte de Simão, encontrando-se num convento em Orense, foi chamada de urgência para assistir aos últimos momentos de um pobre ladrão. Ela admirou-se:
— É a mim que ele deseja falar, senhor padre capelão?
— Sim, madre.
— Mas... não o conheço...
— Ele insiste. E penso que deve fazer-lhe a vontade.
— Mas... porquê?
— Deus é grande! Vá, reverenda madre! Vá, enquanto a vida não se apaga daquele corpo...
E madre Maria do Céu saiu a caminho da prisão.
 
A atmosfera era pesada. A luz fraca. Madre Maria sentia-se confusa, nem sabia bem porquê. Aproximou-se do preso. Vendo-a, este reanimou-se um pouco:
— Madre, minha madre, eu sei que vou morrer! Por isso vos chamei.
— Mas... porquê?
— Porque só a vós, madre Maria do Céu, outrora noviça de Santa Clara, quero confessar um segredo.
— Que segredo?
— Um segredo que tem sido o remorso de toda a minha vida!
— Dizei, então!
Respirando a custo, o prisioneiro confessou:
— Sou um miserável gatuno, minha madre!
Suavemente, ela retorquiu-lhe:
— É a Deus, Nosso Senhor, que tendes de dar contas dos vossos actos, e não a mim!
— É certo... Mas o que tenho para dizer-vos… interessa-vos pessoalmente!
A freira abriu os olhos como quem não entende bem, mas não interrompeu o moribundo. Este continuou, embora a custo:
— Lembrais-vos ainda de Simão Pires?
Este nome soou como dobrar de finados no coração da pobre freira. Receou ter ouvido mal. Trémula, perguntou:
— Dissestes... Simão Pires?
— Sim!
— E... porque me falais dele?
— Porque... fui eu que o conduzi à morte!
— Vós? Como?
— Fui eu que roubei os cálices de ouro e as sagradas partículas da igreja de Santa Engrácia! Sabia que ele passava ali todas as noites com o cavalo de cascos entrapados para vos ir ver.
A freira murmurou:
— Oh, meu Deus... poupai-me!
Mas o moribundo continuou:
— Assim... facilmente fiz recair as suspeitas sobre Simão Pires... Calculava que devia gostar muito de vós e não desejasse comprometer-vos. Mas agora... agora que vou morrer… precisava desabafar! Talvez o meu castigo seja menor!...
A freira não conseguiu suster as lágrimas. Mas os votos que fizera haviam-na desligado das coisas mundanais. Ergueu-se e murmurou:
— Que Deus vos perdoe, como eu vos perdoo!
E silenciosamente retirou-se para o seu convento.
Morreu o ladrão. Morreu depois a madre Maria do Céu. Nada parecia memorar o triste caso de Santa Engrácia. Mas um facto bem singular acontecia: as obras do novo templo, começadas quando da execução de Simão Pires, dir-se-ia não mais terem fim! E de tal modo que o povo se habituou a sentenciar acerca de tudo que não chega ao seu termo: «Ora! É como as obras de Santa Engrácia!»

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 229-234
Place of collection
Santa Engrácia, LISBOA, LISBOA
Narrative
When
17 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography