APL 3019 Lenda da Romaria a Sant’Iago

Ali, em Louredo da Serra, vivia uma família distinta que tinha uma filha chamada Maria Gonçalves. Seu pai e sua mãe sonhavam para ela um casamento com um homem muito rico, Luís de Bidanay, o qual chegara de França, passara por San Sebastian e descansara ali em terras do Douro. Pensava ele demorar-se pouco tempo. Porém, vira Maria e quedara-se enfeitiçado. Mas a jovem, se bem que o tratasse com deferência, não lhe dera o seu coração, porque Luís de Bidanay chegara tarde: Maria amava D. Rodrigo Henriques, de famílias conceituadas mas de parca fortuna. D. Rodrigo crescera ao lado de Maria, brincara com ela, conhecia-lhe todos os gostos e amava-a com toda a força da sua juventude. Jamais imaginara nuvens no firmamento da sua felicidade. Estavam sempre de acordo, no desejo mútuo de se agradarem.
Em dada altura, algo começou a mudar as relações entre os dois jovens. Maria atendia os galanteios do francês, e D. Rodrigo, ciumento e orgulhoso, começou a afastar-se. A jovem notou essa frieza da parte do que era tudo para ela. E certa manhã em que se encontraram — aparentemente por acaso, mas onde a vontade de ambos tinha sido soberana — Maria perguntou:
— Que tendes, Rodrigo? Pareceis-me distante.
Ele teve um trejeito, a fingir indiferença.
— Por enquanto estou junto de vós. Pode ser que dentro de pouco tempo me encontre, na realidade, distante.
Ela alarmou-se, mas tentou sufocar esse alarme.
— Que dizeis? Acaso pensais sair destes domínios?
— É ideia assente.
— E porquê? Podereis dizer-me a razão porque pensais agora assim?
Ele respirou fundo antes de responder:
— Maria! Às vezes levamos anos com uma ideia e, de repente, sentimos desejo de queimar essa ideia em benefício de outra que nasceu e nem está amadurecida.
Ela cerrou os lábios antes de voltar a perguntar:
— Não vos compreendo. A que ideias vos referis?
— Outrora regozijava-me a imaginar que o meu amor bastava para serdes feliz.
— E agora?
— Agora estou certo de que precisais de algo mais.
— Eu?
— Sim, Maria, vós!
— E de que preciso eu mais?
— De sólida fortuna!
Maria fez-se pálida. Compreendeu que D. Rodrigo estava a pensar no francês. A certeza de o saber ciumento torturava-a e alegrava-a simultaneamente. Remexeu a ferida:
— Rodrigo! Acaso julgais que aprecio a companhia de Luís de Bidanay por ser senhor de terras em França e em Espanha?
— Então porque o apreciais?
Ela sentiu desejo de se fazer dengosa.
— Porque me agrada a forma elegante como me trata, à maneira da corte francesa.
D. Rodrigo tornou-se duro pelo ciúme.
— Acaso vos trato descortesmente?
— Oh, não! No entanto, ainda há momentos me magoastes, julgando-me interesseira. Jamais casaria com um homem apenas pelo dinheiro.
Na loucura do seu ciúme, D. Rodrigo julgou que Maria queria dizer que encontrara em Luís de Bidanay mais do que uma sólida fortuna. Teve vontade de a increpar, de lhe perguntar que fizera a tantas juras de amor trocadas em noites de luar. Mas o orgulho dominou-o. Deu-lhe forças para mentir.
— Como nós mudámos!
— Nós?
— Sim. Vós... e eu!
— Eu não mudei! Continuo a ser a mesma! Acaso será crime admirar o bom e o belo?
D. Rodrigo enterrou as unhas nas palmas das mãos. Tentou dar tom sereno à sua voz.
— Pois então mudei eu!
Ela assustou-se.
— Sim? E como?
— Já não suporto a mediocridade! Venho dizer-vos que partirei em breve.
— Para onde?
— Para fora do Reino! Para onde possa ganhar muito dinheiro!
— Ireis para a guerra?
— Para onde calhar. Não escolho terra nem ideal.
A palidez de Maria acentuou-se.
— Tendes mesmo de partir?
Ele sorriu, irónico.
— Isso aflige-vos?
Sentindo a ironia, Maria irritou-se.
— Se a vossa vida corre perigo, claro que é pena ver desaparecer alguém de quem guardamos boas recordações!
O sofrimento de ambos começava a tornar-se evidente para alguém que estivesse de parte a observá-los. Mas para o orgulho de D. Rodrigo e de Maria tornava-se despercebido. Assim, D. Rodrigo respondeu:
— Maria! Não desejo que fiqueis agarrada a uma sombra que pode desvanecer-se. Deste momento em diante desligo-vos do compromisso que tomámos.
Maria mordeu os lábios. Sentiu uma doida vontade de chorar, de sacudir esse homem a quem dedicara tão grande afeição e ao qual a fortuna de outrem lhe provocara uma ambição tão desmedida que a trocara a ela pela aventura. Sentiu-se ferida no seu amor próprio. Fez um esforço inaudito e conseguiu responder com relativa calma:
— Aceito a vossa proposta! Nunca se sabe o que pode vir de espíritos tão volúveis como o vosso!
Essa placidez de resposta irritou ainda mais D. Rodrigo, dando-lhe a falsa certeza de que Maria se deixara embalar pela fortuna e pelos galanteios de Luís de Bidanay. Sentiu desgosto profundo com a derrocada dos sonhos acalentados desde a infância. Sonhos que haviam crescido com Rodrigo. Que se haviam fortalecido com ele. Que lhe haviam sorrido tantas vezes.
D. Rodrigo olhou a jovem de frente. Dando mais força à sua voz, disse:
— Maria! Amanhã mesmo partirei. Quero agradecer-vos as alegrias que colhi na vossa companhia quando éramos crianças.
— Para onde ides?
— Sei lá! Para qualquer lado onde a fortuna me abra os braços. Assim estarei certo de que o mundo inteiro também ficará de braços abertos para mim.
Sem esperar qualquer resposta, sem um simples adeus, D. Rodrigo virou costas a Maria e seguiu, altivo, estrada fora, sem se voltar. Ardia alta, no seu peito, uma chama que o queimava, que o torturava. E a jovem, de mãos postas, lábios comprimidos para não gritar, deixou que o seu bem-amado se afastasse, talvez para não mais o tornar a ver!
Ao ficar só, Maria deixou-se cair de joelhos, chorando. Sentia-se culpada da atitude de D. Rodrigo. Tinha procedido levianamente, no desejo de firmar o amor de D. Rodrigo com o desespero do ciúme. Mas fora longe demais. E agora era tarde para se confessar culpada.
O Sol começara a declinar. Estava ainda quente, mas a sua luminosidade era menos forte. Maria iludira a vigilância dos seus e saíra de casa. Desejava isolar-se. Chorar sozinha. Implorar a protecção de Deus onde não ouvisse falar de Luís de Bidanay. Assim, subiu a serra. Subiu-a com vagar. Chorando e orando. No alto, olhou em volta. Como tudo ali se ouvia ao longe! Como o mundo parecia distante!
Maria ajoelhou na terra seca pelo calor do Sol. Pensou em Sant’Iago. o Apóstolo, e pediu alto:
— Meu glorioso Sant’Iago! Eu vos prometo mandar erigir aqui, neste alto da serra, uma capelinha, se Rodrigo desistir da ideia louca de abalar. Fazei com que ele compreenda quanto o amo e que nenhum outro homem, por mais rico que seja, poderá arrancar do meu peito a imagem de Rodrigo!
Não pôde conter as lágrimas. Tapou o rosto com as mãos e deixou-se ficar assim de joelhos sobre a terra. De súbito, sentiu que alguém lhe pousava um beijo nos cabelos. Levantou-se atordoada e viu Rodrigo, olhos brilhantes de felicidade.
Sem saber o que fazia, escondeu o rosto molhado de lágrimas no peito do jovem, que a abraçou com arrebatamento, perguntando em voz baixa, carinhosa:
— Maria! Porque me obrigastes a dizer-vos o que não queria e quase a fazer o que não desejei?
Ela não respondeu. Orava baixinho a Sant’Iago, numa acção de graças. Ele continuou:
— Quando chegastes, eu estava aqui, atormentado. Vi-vos subir a serra e escondi-me, além. Depois aproximei-me. Perdoai, mas ouvi a vossa prece. E agora, ao ver-vos chorar… não pude conter-me!
E quase num murmúrio:
— Sinto-me recompensado! Amo-vos tanto, Maria! Tanto!...
Ela já não chorava. Ergueu o olhar, rogando com ternura:
— Rodrigo, não me abandoneis!
— Não, meu amor! Ficarei convosco até ao fim das nossas vidas e ainda para além delas! Casaremos breve. E prometemos erguer a capela a Sant’Iago neste mesmo local. E todos os anos, neste dia de Junho, aqui viremos em romaria, numa homenagem ao Santo Apóstolo!
Maria sorriu e meneou a cabeça em sinal de assentimento. Depois murmurou:
— Vamos descendo... Já é tarde, e não quero que os meus pais se aborreçam. Vamos. Desta vez, será para não mais nos zangarmos!
E assim, segundo a lenda, se iniciou mais uma devoção ao Apóstolo Sant’Iago.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 167-170
Place of collection
Louredo, PAREDES, PORTO
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography