APL 1563 O Combate

Em um dia de primavera do ano de 1249 perceberam os cristãos dos arredores de Loulé grande ruído de armas e vozes na parte interior do castelo. Os vigias corriam pelas ameias, os chefes cabildas empunhavam as suas cimitarras, os atabales e anafis soavam ferozmente por entre a mais estrondosa algazarra. No meio de todos, o governador do castelo, com o seu turbante verde, distintivo manifesto de que estava revestido das honras de Xerife inerentes ao mouro que por três vezes visita Meca, dava ordens precisas e corria a todos os lugares onde a sua presença era necessária, com uma prontidão de pasmar.
 Era o governador do castelo um mouro valente e arrojado. Nascera em Tanger, onde de criança começara a exercitar-se nas armas, sem prejuízo dos estudos profundos das ciências do seu tempo. Conhecia os segredos dos combates como os mistérios da magia: era um soldado invencível e um crente convicto. Na manhã deste dia chegara ao castelo das bandas de Faro um adail com más novas: Afonso III tomara o castelo de Faro e cometera a D. Paio Peres Correia a missão de atacar com a maior presteza o castelo de Loulé.
 Não fora difícil aos cristãos dos arredores ter conhecimento destas novas, que os enchiam de júbilo, pois que os mouros, não obstante o que deles escreveram os nossos escritores dos primeiros séculos da monarquia, eram de extrema benignidade para os cristãos, a ponto de muitas vezes suceder que enquanto o almuadem chamava os moslemes à oração, o sino anunciava aos cristãos a hora das solenidades do seu culto, e uns e outros encontravam-se e cruzavam-se nas ruas tortuosas das suas cidades, sem que os cristãos experimentassem qualquer afronta.
 O governador do castelo, reunindo os seus soldados mais aguerridos, resolvera, em conselho, sair ao encontro de D. Paio, e dar-lhe combate. Esse o motivo porque no castelo era tão grande o arruido.”
 Pelas dez horas da manhã sairam do castelo os serracenos e seguiram a estrada de Faro. Alguns cristãos, de longe, e ocultos pelas franças das árvores e pelo mato espesso, seguiram o exército mouro, atravessando campos incultos, saindo fora da estrada, e indo ocupar as eminências de um outeiro de onde podiam avistar, sem receio, os campos do sítio dos Furadouros. Chegados ali, divisaram lá em baixo os dois exércitos, um em frente do outro.
 O Sol subia no horizonte e os seus raios reflectiam-se nas armaduras das duas hostes. Soavam de cada lado os sinais indicadores do próximo combate. Segundo o velho costume, do campo sarraceno rompia um infernal estrondo, produzido pelos gritos e alaridos dos soldados, acompanhados dos sons agrestes e desafinados das trombetas, atabales e anafis. Envolvidos nos amplos albornozes e montados nos seus ginetes, os soldados sarracenos pareciam de longe fantasmas horríveis.
 Do campo cristão as tubas guerreiras animavam os soldados e incutiam-lhes aquele valor e aquela ousadia que os tornavam invencíveis e incomparáveis nas lutas.
 D. Paio Peres, à frente dos seus cavaleiros, vestidos de aço e empunhando suas espadas em forma de cruzes, avançava a passo firme e seguro contra o inimigo: o governador do castelo, arrojado como o leão e sagaz como o tigre, animava as suas gentes e procurava encontrar, no seu olhar de lince, o ponto vulnerável do corpo de aço que o atacava.
 Embora nesta época as discórdias entre muçulmanos tivessem tomado proporções extraordinárias, e a morte do domínio do islamismo pairasse por sobre as terras de Chencir; embora Cacela e Tavira pudessem ser consideradas duas sentinelas, que isolavam do resto da Espanha árabe a nova província do Algarve, sentinelas poderosíssimas e fortemente defendidas pelos freires hospitalários comandados por Afonso Peres Farinha, e pelos espatários sob o mando de Paio Peres Correia, todavia os sarracenos de Loulé, como se estivessem no apogeu das suas glórias de outros tempos, e como se uma só ideia os dominasse, pareciam leões resolvidos a morrer, preferindo a morte no campo da honra à vergonha do desastre.
 Foi terrível o combate. Os dois exércitos, como duas enormes serpentes, acometiam-se com fúria. Por algum tempo esteve indeciso o duelo entre milhares de combatentes; próximo porém do sol-posto, uma dessas serpentes, com as escamas de feto quebradas, começou a fraquejar e a retirar para o seu covil. Os sarracenos não puderam resistir ao embate das forças cristãs e retiravam-se em ordem.
 Não custara barata a vitória dos soldados da cruz; e tanto que D. Paio preferiu ficar no campo da peleja a seguir o inimigo, que pôde entrar no castelo sem oposição.
 Nessa noite o governador mouro, alentando uns com elogios, e animando outros com esperanças, preparou uma dura defesa. Quase à meia-noite desceu aos seus aposentos pela escada interior do castelo e foi abraçar as suas três filhas, que o esperava a Zara, Lídia e Cássima.
 — Está ferido, meu pai? — perguntou Cássima, a filha mais nova.
 — Não, minha filha. O profeta não quer ainda o meu sangue.
 — São verdadeiras as notícias que nos trouxe o adail?
 — Verdadeiras! O rei Afonso entrou no castelo de Faro e é o seu senhor. Fez já doaçao a Esteves Ares, seu chanceler-mor, de todos os herdamentos que Abusala, governador de Faro, e sua mulher Zaforena, possuíam em todo o Al-Faghar.
 As três filhas do governador puseram-se a chorar.
 — Não chorem, minhas filhas, observou o governador extremamente comovido; o grande profeta nunca se esqueceu dos seus crentes. Se os meus soldados não puderem levar de vencida o perto cristão, e o nosso castelo for tomado à força, nem por isso devem desanimar. Felizmente possuo os segredos da magia, e quando reconheça a impossibilidade da defesa, eu saberei defender a honra das minhas queridas filhas. Vão descansar... é já bastante noite.
 As filhas retiraram ao seu quarto, beijando as barbas do seu extremoso pai, onde a furto se achava depositada uma lágrima, que dos olhos do velho tinha caído.
 O governador despiu apenas uma vestimenta de aço, semelhante a uma cota de armas, e deitou-se sobre um catre a descansar. E em vez de pegar no sono pôs-se a reflectir!.
 Em que pensaria o pobre velho?!...
 Pelas duas horas da noite o ministro dos crentes no alto da torre do Almadena, chamou três vezes os fiéis à oração, dizendo:
 — Allah achar! (“Deus é grande”).
 Passado algum tempo a mesma voz pronunciou três vezes as seguintes palavras:
 — La allah dia allah Mohammed rasut allah! (“Não há Deus senão Deus e Mahomet o seu legado”).
 Então o governador ergueu-se do catre, vestiu novamente a cota de armas, pôs na cabeça o turbante, colocou à cintura o alfange, escondeu no seio um famoso punhal com embutidos de ouro no cabo, e preparou-se para subir ao castelo.
 Nesta ocasião, o ministro dos crentes — o Almuadem — repetiu por três vezes em voz alta, as seguintes palavras:
 — Hai ala essalab, essalab achiar rnenennaum. (“Vinde para a oração, a oração aproveita mais que o dormir”).
 — São horas, disse consigo o governador.
 E subiu ao castelo e foi postar-se no ponto mais alto, voltado para nascente. A escuridão era impenetrável.
 O governador continuou a passear pelas ameias, parando a cada momento, voltado para nascente. Todo o seu desejo era penetrar a escuridão com os olhos. Passado algum tempo tomou a parar. Momentos depois disse:
 — Estão além, bem os distingo.
 E não se enganara. Por entre a escuridão, um pouco destruída pela alvorada, o governador enxergara, sobre o Cabeço do Mestre, os soldados de D. Paio. De longe, e quando o sol ia rompendo, o exército do Mestre parecia o dorso de um crocodilo gigante a espreguiçar-se aos raios do sol.
 O governador mouro deu a voz de alarme; todos pegaram em armas e vieram ocupar os seus respectivos lugares. Entretanto o exército cristão descia o outeiro muito vagarosamente e foi colocar-se em frente do castelo. Os mouros, adargados a seu modo, animavam-se mutuamente com as trombetas e os alaridos.
 D. Paio Peres Correia fizera-se acompanhar da sua gente mais aguerrida. Neste combate batalharam sob o seu comando D. João Afonso, alferes-mor, seu irmão D. Afonso Teles, seus primos D. Mem, D. Gonçalo, D. João, D. Fernando Garcia, D. Marfim Peres da Vila, com os três ilustres irmãos D. Gil Martins, D. Fernando e D. Afonso Lopes.
 Do lado dos mouros não faltavam também heróis: só o governador valia um exército.  Foi rude e feroz o ataque, heróica e gigantesca a defesa. Descrever aquele e esta não está nas minhas forças. Como bem disse o falecido escritor Pinheiro Chagas «numa batalha da idade média, desde o momento em que os combatentes vieram às mãos, cessou o mister do historiador, e a não ser que ele vá, como o velho Homem, descrever as pugnas individuais cujo conjunto forma o duelo gigante, em que as duas hostes, verdadeiras serpentes de ferro, se estorcem, se revolvem, arquejam... o historiador só tem de se limitar a dizer o resultado final».
 Limitar-me-ei também a descrever o resultado final, sem determinar o tempo que durou o cerco. Os historiadores, como em quase todos os assuntos que se prendem com a conquista do Algarve, não concordam na duração do combate. Se uns dizem que durou semanas, outros afirmam que apenas dias. O cronista, já por mim citado, quase deixa ver, contra a comum opinião e contra todas as tradições, que o combate durou somente horas. Diz ele:
 «Depois que El-Rei tomou a vila de Faro, logo dali a poucos dias partiu o Mestre com a sua companha e foi-se lançar sobre Loulé e não esteve o cerco muito sobre ele que logo o não tomassem».
 Ora as palavras muito e logo são susceptíveis de várias interpretações, e podem, na verdade significar uma ideia de tempo mais ou menos longo. Por isso interpretá-las-ei aqui por dias, que é a interpretação que encontro autorizada pelas tradições locais.
 Num dia de madrugada, depois de alguns de cerco, quando os cristãos se aproximaram do castelo, não viram nas ameias nenhum combatente. Foram imediatamente dar parte ao Mestre, receosos de alguma armadilha. O Mestre deu todas as providências que o caso exigia e mandou proceder ao arrombamento da porta que abria para nascente. Não havia traição: a vila estava deserta. Nem um velho ou uma criança: tudo desamparara a vila quase completamente devastada e arruinada. Esta solidão que amargurou El-Rei e o Mestre foi causa de se criar na imaginação popular a ideia de que na vila tinha ficado gente encantada. Não sabendo explicar a possibilidade de uma fuga tão rápida e de tanta gente, recorreram ao maravilhoso. Foi sempre assim o povo.
 Na tarde desse dia foram os soldados cristãos informados de que na noite anterior o governador do castelo e a sua gente, abrindo a porta babethacar, sem que fossem pressentidos pelo exército cristão, tinham por ela saído, encaminhando-se todos para Quarteira, onde já eram esperados por alguns barcos, que os conduziram a Tânger.
 Nesse mesmo dia D. Paio Peres Correia entrou no castelo à frente dos seus freires e tomou posse da vila.
 Em nome de quem tomou posse?
 É para o historiador um caso de difícil resolução atenta a opinião que afirma ter D. Afonso III assistido a esta posse, e a opinião de alguns historiadores que sustentam ter a posse do referido castelo sido entregue três anos depois pelo rei castelhano a D. Afonso III. Parece que D. Paio nesse tempo fazia as suas conquistas em nome do rei castelhano, o que a maior parte dos nossos historiadores fortemente contesta.
 No dia seguinte era já público e sabido que as três filhas do governador do castelo não tinham acompanhado seu pai na fuga. Onde tinham ficado escondidas?
 Então apareceram várias versões, sobressaindo a todas a que as davam por encantadas numa fonte próxima da vila, num sítio agradável e ameno. Como esta lenda chegou até hoje, através de centenas de anos e de milhares de gerações, vou transcrevê-la, tal como a encontrei nas memórias tradicionais dás louletanos, no seguinte capítulo.

Source
OLIVEIRA, Francisco Xavier d'Ataíde As Mouras Encantadas e os Encantamentos do Algarve , Notícias de Loulé, 1996 [1898] , p.55-60
Place of collection
LOULÉ, FARO
Narrative
When
13 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography