APL 2861 Lenda da Virgem das Açucenas

Perto de Fornos de Algodres, Beira Alta, existiu em tempos muito remotos um castelo que pela sua forte configuração foi um dos baluartes contra os bárbaros e dos poucos que sobreviveram à invasão árabe. 
Conta a lenda que Amir, companheiro de armas de Tárique, era o comandante das hostes que sitiavam o castelo. O assalto foi duro, mesmo feroz. As tropas de Amir sofreram muitas baixas. Por isso, quando sentiram que a vitória iria pertencer-lhes, penetraram no interior do castelo sedentos de vingança. Em breve se espalharam por todas as dependências do edifício, saqueando com a maior das impiedades. Porém, ao penetrarem na capela, detiveram-se impressionados ante uma bela aparição. Ajoelhada defronte de uma imagem de Jesus Cristo, estava uma jovem de deslumbrante beleza. Era Elvira, a filha do castelão, heróico defensor dos seus domínios, mas que havia sucumbido durante a luta.
Tão absorta estava na sua oração a jovem Elvira, que nem dera pela presença dos árabes. Pedia a Deus clemência para essa guerra de horror.
Passado o primeiro momento de surpresa iam já precipitar-se sobre a castelã, quando Amir, num gesto imperioso, os deteve e lhes ordenou:
— Saiam daqui!
Os guerreiros obedeceram. A jovem voltou-se num misto de surpresa e de terror. Ficara só na capela com o caudilho mouro. Este mirava-a intensamente, mas não dava um passo, não dizia uma palavra. A jovem chamou a si todo o sangue frio. A presença dos infiéis na capela significava — bem o sabia — que a derrota chegara e que seu pai devia estar morto. Teve desejo de cair no chão soluçando. Mas a vista desse homem de porte altivo que não deixava de a fitar deu-lhe forças para encarar a situação. Serena quanto pôde em tal momento, a sua voz bonita soou:
— Senhor, afastai-vos! A vossa presença está a profanar esta capela!
Faiscaram mais os olhos de Amir. Olhou ainda em silêncio e estático por mais uns segundos a donzela cristã. Depois, serenamente, avançou para ela... O pânico apoderou-se da jovem. Não teve forças sequer para orar. Teria caído desamparada no chão se Amir não tivesse corrido a tempo de a amparar nos seus braços fortes.
Amir era mouro, mas fidalgo e cavaleiro. Tentou reanimar a jovem. Ordenou que fosse extinto o fogo que começava a incendiar o castelo. Exigiu que devolvessem à castelã todos os objectos preciosos saqueados, e deu liberdade às donzelas e a todos os fiéis servidores de Elvira. Apenas ele, Amir, e alguns dos seus guerreiros, ficaram numa das alas do castelo.

Alguns dias passaram. A jovem Elvira sentia-se segura. Rodeavam-na do maior respeito e simpatia. Chorava apenas a perda do pai e a dos seus amigos. Mas as suas aias estavam sempre a seu lado, tentando consolá-la e falando-lhe dos favores que deviam ao chefe guerreiro. Elvira chamou de parte a que era a sua aia predilecta.
— Ana, tens a certeza de que ele é tão bom como dizes?
— Senhora, não sei se ele é bom. Sei apenas que a esta hora poderíamos estar mortas ou sem honra, sem abrigo e sem ventura. Porém, Amir quer dar-nos o maior conforto. E tudo isso é por vós que ele o faz, tenho a certeza...
— Porque dizes que é por mim? Não mais o tornei a ver desde essa tarde em que mataram meu pai.
A aia sorriu, quase maliciosa.
— Senhora, todas as manhãs tenho de lhe dar notícias vossas. Ele quer saber como passastes a noite... se chorastes por vosso pai... se estais ainda muito infeliz... Quer saber tudo... Aquilo que dizeis... que fazeis... Quase me pergunta, através dum dos seus que fala a nossa língua, o que pensais!
Elvira fitava um ponto indefinido no espaço. Sorriu. Depois voltou-se para a sua jovem aia.
— Ana... Achas que devo agradecer-lhe?
A aia entusiasmou-se.
— Penso que sim, senhora minha! Devemos-lhe tanto! E ele nada vos pede...
— Tens razão. Amanhã, quando estiveres com ele, diz-lhe que desejo falar-lhe.
Entusiasmada, Ana pegou numa das mãos da jovem castelã. Elvira franziu as sobrancelhas, repreendendo-a:
— Ana, acalma-te! Lembra-te que ele é mouro e não poderá compreender-nos totalmente.

Pela janela aberta entrava um forte perfume a Primavera. A manhã estava levemente fria, com um ventinho que vinha da serra. Mas a erva crescia numa renovação de vida e de cor. Os cães saltavam contentes nos campos da cerca. Elvira acabou de se vestir, pôs as suas jóias e foi encostar-se à janela.
Ana havia saído. Levara apressada o recado da sua senhora. E cedo ela voltou trazendo consigo o belo guerreiro mouro. Quando se encontraram, Elvira e Amir fitaram-se como se fosse a primeira vez que os seus olhos se defrontassem. Elvira falou:
— Senhor... Pedi que viésseis, para testemunhar-vos a nossa gratidão.
O mouro não compreendia o português, mas o seu fiel intérprete, sempre a seu lado, era como eco das palavras de ambos.
Elvira continuou:
— Lamento apenas que ao recordar tão grandes benefícios seja forçada a minha recordação a uni-los ao sangue derramado que tinge este castelo.
A figura alta de Amir curvou-se numa profunda e cavalheiresca vénia.
— Senhora! Declaro-me vosso escravo e mais ardoroso admirador! Pudesse eu pagar com o meu próprio sangue o sangue derramado pelos vossos, e eu o faria. Mas o que o Destino determina não poderá ser modificado.
A jovem olhou o moço árabe, uns dez anos mais velho do que ela. Uma emoção estranha dominava-a também. Sem atinar com as palavras, estendeu a mão, que o árabe, extasiado, beijou.
Desde esse dia viam-se várias vezes, mas por curtos momentos e sempre a pretexto de qualquer novo empreendimento. O castelo foi reconstruído. Foi erguido um mausoléu em honra do pai da jovem Elvira e dos seus guerreiros, e foi permitido que todas as manhãs viesse à capela um sacerdote cristão dizer missa, à qual assistiam Elvira e as suas aias. Tudo isto fazia Amir para conquistar o amor da jovem castelã. E a Verdade é que esse amor brotou com a impetuosidade tão própria dos novos. Mas Elvira dissimulava esse amor quanto podia. Não ignorava que todas as noites um homem embuçado permanecia sob a janela dos seus aposentos. E embora a não abrisse, deixava sempre uma luzinha acesa que enviava a Amir uma saudação de esperança.
Uma luta interior, renhida, mortificava o caudilho mouro. Ante o seu amor, crescendo dia a dia, elevava-se a barreira fatal da diferença de religiões. Aprendeu o português e compôs canções que entoava pelas tardinhas — único meio com que exprimia a dor que lhe causava o obstáculo cruel que os afastava cada vez mais.
Elvira sofria também. Ambos eram crentes, embora com religiões diversas. Ambos se mostravam firmes. Certo dia, Elvira quis ficar só na capela, e pôs Ana de atalaia, à porta, para que não fosse surpreendida. Então, caiu aos pés da Virgem Mãe de Deus e pediu, soluçando:
— Mãe de Deus e minha Mãe, valei-me nesta aflição! Amo bem contra a minha vontade o nobre Amir, que é mouro. Nem eu abdicarei da minha religião, nem ele, decerto, quererá abdicar da sua crença. Mas, se Vós quisésseis, talvez ele Vos visse e Vos amasse como eu. Ajudai-me e ajudai-o, Virgem Santíssima! Estou a pedir-vos um milagre. Mas Amir merece tal milagre, porque é bom, é generoso, é leal, é valente, é forte nas suas paixões. Ajudai-me e ajudai-o!
A Mãe de Deus resolveu ajudar Elvira. Para isso serviu-se de uma arma poderosíssima entre enamorados: o ciúme. Fez com que chegasse ao castelo um cavaleiro galego, parente da jovem Elvira. Inteirado do que havia acontecido, viera oferecer-lhe os seus préstimos e o seu lar. Movera-o apenas o desejo de cumprir um dever de cristão e parente. Mas, ao ver a jovem, não escondeu a sua admiração. E a proposta que levara por cortesia, renovou-a com o calor de uma inclinação nascente. Este facto não passou despercebido ao fogoso Amir. Atormentado pelo ciúme, solicitou a Elvira uma entrevista a sós. A jovem acedeu.
Olhos nos olhos, nem viam o Sol que brincava com os cabelos dos dois enamorados. Amir caiu de joelhos, e perguntou, beijando a mão da jovem castelã:
— Senhora! Que devo fazer para merecer a graça de tomar-vos como esposa?
As lágrimas assomaram aos olhos de Elvira. Respondeu com voz emocionada:
— Tomai-vos cristão!
Erguendo-se, ele prometeu:
— Sê-lo-ei!
Elvira estendeu-lhe as mãos pequeninas que ele voltou a beijar, e convidou-o:
— Vinde comigo à capela. A Mãe de Deus espera por nós.
Serenos na aparência mas com o coração transbordando de felicidade, os dois enamorados seguiram, sozinhos, o caminho da capela.
Amir entrou. Seus olhos negros pousaram sobre o altar. Ao centro estava a imagem de Cristo. Ao lado, a imagem da Virgem Mãe de Deus. Sem que Elvira o impelisse, Amir caminhou devagar até junto da Virgem. Depois, serenamente, falou:
— Senhora, que és Mãe de Jesus Cristo e a quem Elvira ama tanto! Recebei mais este filho que deseja amar-Vos como ela Vos ama!
No silêncio da capela, os soluços comovidos de Elvira soavam como divina música...

Na manhã seguinte havia junto à imagem da Virgem um ramo de açucenas recém-cortadas. Era a oferenda do árabe convertido.
E conta a lenda velhinha que esse ramo jamais murchou, embora ficasse nessa capela do castelo da Beira, anos após anos, num desafio ao próprio tempo.
Amir baptizou-se e recebeu o nome de João Baptista. Após o casamento dirigiu-se a Roma com a jovem Elvira, e visitou o Papa. O Santo padre recebeu-os com demonstrações de alegria, e concedeu a João Baptista o apelido de Forte, que ele passou aos seus descendentes e que estes, na Beira Alta, usam ainda, não esquecendo a lenda da Virgem das Açucenas.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 47-51
Place of collection
Fornos De Algodres, FORNOS DE ALGODRES, GUARDA
Narrative
When
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography