APL 3008 Lenda da Princesa Peralta

Em tempos que a história não conta, reinava na cidade de Colimbriga ou Conimbriga, perto da actual vila de Condeixa, um rei chamado Arunce. Tinha Arunce uma filha muito bela chamada Peralta. Vários cavaleiros da casa de Arunce interessavam-se pela princesa, mas esta olhava das torres do seu castelo o campo vasto de belos horizontes e ficava-se a cismar. Esforçavam-se as aias por descobrir os pensamentos da sua real senhora. Todavia, nada conseguiam dos seus intentos, pois a princesa fechava-se cada vez mais no seu segredo. Segredo que só a ela pertencia, pois nascera da sua grande imaginação. Ela via e revia a figura esbelta de um cavaleiro alto, de peito largo, atlético, olhos brilhantes, olhar franco, feições másculas, voz profunda e meiga. Esse cavaleiro era rápido no manejo das armas, valente, são de corpo e de espírito. E também amoroso. Profundamente apaixonado.
Suspirava a princesa. Tudo isso, afinal, não passava de um sonho. Os outros, os que na realidade lhe falavam de amor, ela achava-os imperfeitos, ridículos.
Ora, certa vez em que a princesa estava na sua doce meditação na torre do castelo, viu chegar, inesperadamente, um exército inimigo. A jovem ficou estática. Os guerreiros aproximavam-se com rapidez. O alarme foi dado pelas vigias. O alarido cresceu. Correrias de um lado para o outro, ordens dadas em voz alta. O ataque ia começar.
Procuraram a princesa. Ela continuava imóvel, olhando o comandante inimigo que se destacava à frente das suas tropas. Era um cavaleiro jovem, belo, másculo, decidido. O rei gritou-lhe:
— Minha filha! O inimigo desembarcou de numerosas naus ancoradas no porto e correu para aqui, onde nos está cercando!
A princesa tinha o semblante triste, a voz dolorida.
— Nunca odiei a guerra como neste momento!
O rei tornou:
— Coragem! Eles começaram a atacar e já temos feridos e mortos.
Ela apenas respondeu com um suspiro. O rei irritou-se.
— Temos poucas possibilidades de defesa. Vamos organizar uma saída… se for possível. Descei, minha filha! Compreendo que este choque vos tenha transtornado.
Os gritos chegavam cada vez mais próximos. Gritos de guerra, de destruição e de morte.
Alguém veio anunciar ao rei:
— Senhor! Já sofremos muitos mortos, feridos e até prisioneiros. Eles estão a entrar no castelo. Que faremos?
O rei mordeu os lábios. Declarou em voz surda:
— Não poderemos resistir! Tentemos uma saída!
— Impossível, Senhor!
Então a princesa falou:
— Se o nosso destino é morrer às mãos do inimigo, que se cumpra esse destino!
O rei enervou-se mais.
— Que serenidade a vossa, minha filha! Quero acreditar que estais inconsciente! Padeceis de um mal que vos põe abstracta. Mal de que as vossas aias falam e de que a própria corte começou já a murmurar. Porém, este momento é grave. Eu sou o rei e vosso pai! Tendes de ouvir-me. O castelo que mandei construir na floresta e achastes medonho vai agora servir-nos!
Sempre serena, a jovem ripostou:
— Ficaremos enterrados vivos! O castelo, situado num local distante da serra, é como se fosse uma ilha!
— Mas difícil de ser descoberto, e muito mais difícil ainda de conquistar.
— Pensais então que poderemos sair daqui?
— Tentaremos! Preparai as vossas coisas mais necessárias ou valiosas. Logo que a noite chegue sairemos pela porta secreta. O vosso cavalo branco esperar-vos-á no pátio norte.

A luta continuava feroz, destruidora. Nem sequer a noite veio trazer tréguas, pois, de archotes acesos, o inimigo continuava matando e ganhando terreno.
Nos seus aposentos, rodeada pelas suas damas de honor, a princesa esperava que viesse a ordem de partida. Falava baixo, compassadamente, sem medo.
— Em breve deixaremos este castelo onde a desolação e a morte reinarão dentro em pouco. Mãos profanas virão tocar nestes móveis tão do meu agrado!
Nesse mesmo momento, um homem estranho surgiu na entrada dos aposentos. As damas soltaram um grito uníssono de horror. E um cavaleiro jovem, belo, másculo, decidido — aquele que ela vira à frente dos assaltantes — avançou em direcção à princesa. Esta tomou um ar altivo, desusado:
— Senhor, que ousadia a vossa!
Ele teve um leve sorriso e declarou:
— Dizei às damas que vos rodeiam e tão assustadas estão, que venho como libertador e não como inimigo!
— Vós o dizeis... Contudo, bem vos vi à frente do exército que invade os nossos domínios!
Serenamente, o cavaleiro replicou:
— Por comandar um dos troços desse exército pude chegar até aqui. Também vos divisei numa das janelas da torre. E a curiosidade de vos ver de perto levou-me a cometer esta leviandade. Estou neste momento em perigo de vida!
— Como chegastes até a este recanto do castelo?
— Matando ou pondo fora de combate quantos encontrei pelo caminho.
— Pois sabei que espero o rei meu pai. Ele poderá entrar de um momento para o outro. Se o fizer, um dos dois morrerá. E não desejo que seja ele!
— Juro-vos que a vosso pai nada acontecerá se isso depender de mim!
— Que quereis então?
— Avisar-vos de que, antes do Sol nascer, o castelo será nosso. E não sei o que poderão fazer os outros chefes!
A princesa mordeu os lábios. Perguntou, quebrando um pouco a calma que habitualmente a envolvia:
— Achais que isso está para breve?
— Dentro de meia hora faremos a última avançada. E o Sol ao nascer virá saudar mais uma vitória nossa. Tendes, pois, de fugir!
A princesa tentou sorrir.
— Calculastes, cavaleiro, que tentaríamos fugir e acertastes. Quereis, acaso, impedir a nossa viagem, mascarando-vos de protector?
— Pela minha espada vos juro que vos quero salvar!
— E porquê, cavaleiro?
Embora impacientado pela enervante situação, ele tentou sorrir, interrogando:
— Senhora, já perguntastes à rosa porque tem perfume?... Quando vos vir a salvo e se ainda for essa a vossa vontade, talvez vos diga porque darei a vida por vos salvar!
E resoluto:
— Vinde, Senhora! Não podereis esperar que os meus homens cerquem completamente o castelo. Vinde com as vossas damas!
— Para onde?
— Ainda podeis escolher!
— Compreendo-vos. Pretendeis saber onde tencionamos refugiar-nos!
— Juro-vos que pagarei com a vida a quebra do silêncio! Deixar-me-ei matar por vosso pai ou por algum dos vossos. Ficará assim atenuada a falta que cometo para com os meus homens.
A princesa olhou-o perplexa.
— A vossa atitude é tão estranha...
— O dia virá em que podereis compreender-me.
Sem sorrir, mas com a alegria na alma, a princesa perguntou:
— Como vos chamais?
Laurus.
A princesa olhou-o profundamente e declarou:
— Laurus, não vos esquecerei. Confio em vós. Posso até dizer-vos que há muito vos esperava. Partamos, pois!
E voltando-se para uma das aias:
— Lina! Ide procurar meu pai e dizei-lhe que vai ser antecipada a hora da partida.

Quando o rei Arunce chegou junto da princesa Peralta e se viu em face de um desconhecido embrulhado num manto, ficou estupefacto. A jovem explicou-lhe a situação. O rei mostrou-se altivo e falou com a energia de um vencedor e não de um vencido:
— Retirai-vos! A vossa companhia não nos agrada! Sabemos para onde vamos e breve voltarei!
Laurus franziu as sobrancelhas. O modo arrogante do rei irritou-o. Mas conteve-se e respondeu com certa ironia:
— Se não vos avisasse, dentro de alguns momentos saberíeis que esta fuga seria já impossível!
O rei gritou, colérico:
— Retirai-vos já, ou tomar-vos-ei como inimigo que sois!
Laurus meneou a cabeça negativamente.
— Estais a perder um tempo preciosíssimo, Senhor! Declaro-vos que é meu propósito proteger-vos até ao local onde quereis ficar.
Quase ao rubro da cólera, o rei Arunce gritou:
— Pela última vez... retirai-vos ou a minha espada cruzar-se-á com a vossa!
Sem dar tempo a qualquer reflexão, a princesa interpôs-se entre eles.
— Meu pai, basta de luta! Partamos, pois já oiço vozes bem perto!
Laurus explicou:
— Foi dada a ordem de atacar. Não tardam aí os meus homens. Fujam! Eu os deterei!
Todavia, o rei Arunce, não muito convencido, ordenou a quatro dos seus guardas que assistiam mudos e perplexos a toda esta cena:
— Não confio no inimigo. Isolem este homem enquanto nos retiramos!
Envergonhada com esta atitude, a princesa censurou:
— Meu pai, devemos-lhe a vida! Sei que ele não mente!
Mas o rei tomou-lhe uma das mãos, ordenando:
— Vamos! O tempo urge!
A marcha foi penosa. O sol começou a vencer as trevas, e o pequeno grupo formado pelo rei Arunce e seus familiares pôde finalmente chegar a salvo ao pequeno castelo escondido na serra. À vista dessa fortaleza, longe e desconhecida do inimigo que os havia vencido, o rei Arunce sorriu. A princesa, porém, voltara ao alheamento costumado.
Passaram a pequena ribeira. As suas vidas estavam asseguradas, pelo menos nos dias mais próximos. Declarou então o rei:
— Neste castelo isolado encontraremos abrigo seguro enquanto não arranjarmos reforços. A esta ribeira darei o meu nome. A terra que circunda este castelo darei o de minha filha Peralta.
A princesa pareceu sair do torpor em que cafra. Olhou o pai e perguntou:
— Dissestes à vossa guarda que viesse aqui procurar-nos?
— Disse.
— Tardam!
— Só virão quando ninguém os seguir... e se escaparem!
Suspirou a princesa. Nem uma palavra de alegria por ter chegado. Com a mesma serenidade de sempre, encaminhou-se para o castelo.
 
Pouco mais de um dia tinha passado quando uma das aias disse à princesa:
— Chegou a guarda real!
— Só?
— Sim, Senhora.
— Há feridos?
— Um apenas, e ligeiramente.
— O castelo que deixámos?
— Foi ocupado pelo inimigo.
— E o cavaleiro que nos salvou?
— Desse nada sei, Senhora!
— Pois ide dizer a meu pai que desejo falar-lhe imediatamente.
Sempre num ar solene, distante, a jovem dirigiu-se para os aposentos reais. E mal avistou o rei, perguntou:
— Senhor, que novas nos dais do cavaleiro que nos ajudou na retirada?
— Acabo de saber pelos meus guardas que se deixou matar por nós. Dir-se-ia que nem sabia combater!
A princesa fez-se pálida. Levou uma das mãos ao rosto. As lágrimas rolaram dos seus olhos. Cambaleou. Correram a ampará-la. Aflito, Arunce, perguntou:
— Filha! Porque vos desgostais tanto? Mal o conhecemos!
Numa voz entrecortada pelo choro, a princesa murmurou:
— Morreu o meu cavaleiro!
Entreolharam-se a aia e os dois guardas, sem crer no que ouviram: o chefe inimigo era o cavaleiro da princesa!... Atormentado, o rei Arunce deixou a filha chorar. Depois, como ela se levantasse para se retirar, perguntou ainda com brandura:
— Dizei-me porque chorais assim um desconhecido?
A princesa pousou no pai o seu olhar brilhante de lágrimas:
— Achais que um desconhecido seria capaz de dar a vida por nós?
Abriram-se mais os olhos do rei Arunce. O espanto lia-se-lhe no rosto.
— Pois não era um desconhecido?... Quem era então? Donde veio? Como o conhecestes?
O olhar da princesa dirigiu-se para a janela do castelo. Fitou o infinito e murmurou:
— Desde que sou mulher que o via… hora a hora... a caminhar para mim... tal como apareceu, na verdade. Assim belo... Assim valente! Deu a vida por nós... e eu daria a vida por ele... Contudo... nunca trocámos uma palavra de amor... nunca! Nos meus devaneios surgia... e fugia depois como fumo!... Compreendo agora o significado. Nunca o teria perto de mim... só para mim!
O rei interrompeu a jovem:
— Filha, delirais!
A jovem sorriu com tristeza.
— Achais assim... porque sois incapaz de compreender-me! Laurus foi para vós apenas o inimigo. Para mim... continuará a ser o meu cavaleiro, o meu único amor!
Mais aflito ainda, o rei tentou fazê-la voltar à realidade.
— Filha! Olhai bem para o vosso pai que vos ama... Estais doente, decerto! Como podeis falar de amor de um inimigo que só vistes quando se encontraram?
— E acaso ele fez questão disso para dar a vida por nós?
— Não... e nem compreendo!
— Não podereis compreender. Mesmo sem nos encontrarmos, há muito que nos pertencíamos! E sabíamos disso... Sabíamos!... Por esse motivo, agora que ele morreu para o mundo, quero fazer-vos um pedido.
— De que se trata?
— É simples. É desejo vosso dar a esta ribeira o nome de Arunce em homenagem ao rei que habita este castelo. Pois peço-vos, Senhor, que se dê a esta terra, não o meu nome, mas o daquele que tornou possível a nossa estada neste lugar: o nome do meu cavaleiro!
O rei não cabia em si de espanto.
— Pois quereis que se dê a esta terra...
A princesa não o deixou terminar.
— Perdoai, Senhor! Desejo que esta terra seja a Terra de Laurus!
Era tão evidente a sua energia, tão firme a sua vontade, que o rei achou por bem ceder.
— Pois seja a Terra de Laurus! 
Sorriu a princesa pela homenagem prestada ao seu cavaleiro. Depois saiu silenciosa, cabisbaixa, sem pressas de chegar, como se a vida já não contasse para ela.

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume V, pp. 87-93
Place of collection
Condeixa-A-Velha, CONDEIXA-A-NOVA, COIMBRA
Narrative
When
20 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
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Bibliography