APL 2899 Lenda da Senhora de África
Tal como o nome desta lenda indica, a história que vamos contar é uma história passada em terras do outro lado do mar, na remota cidade de Ceuta, onde fica a extraordinária igreja que, segundo reza o cronista, «é com certeza um dos templos do mundo por onde tem passado maior número de heróis cristãos, prestando graças quando vencedores, chorando quando vencidos, rezando pela sorte dos cativos e encomendando os que morrem pela Pátria».
Vem-nos à lembrança o inesquecível soneto do saudoso poeta António Sardinha, intitulado «Nossa Senhora de África». Ei-lo:
Santa Maria de África, morena
Nossa Senhora épica da raça,
Olhando o azul do Estreito com que pena
Por ver que é outra a gente que lá passa.
No eterno exílio a que ela se condena
Tem sempre a mesma lusitana graça!
Recorda em seu altar uma açucena
Armada de bastão e de couraça!
Santa Maria de África, trigueira,
Reinando sobre ossadas portuguesas
Guarda por nós o Algarve de além-Mar!
Pode bem ser que Deus ainda queira
Que à sombradessas velhas fortalezas
A tua voz nos volte a comandar!
Foi em 1415. A esquadra portuguesa fizera-se ao mar, rumo a Ceuta. Os três infantes, D. Pedro, D. Duarte e D. Henrique, traziam ainda nos lábios o sabor do último beijo dado à rainha sua mãe, mortalmente enferma. Era a mais ousada de todas as jornadas de aventura que os Portugueses tinham tentado. D. João I hesitara, mas perante o entusiasmo dos seus filhos decidira-se. E deles três, sem dúvida nenhuma, o mais seguro da vitória, o mais desejoso da conquista era o infante D. Henrique. Ele dissera com a unção duma prece:
— Eu sei! Eu tenho a certeza que para além de Ceuta há outras terras... há outros tesoiros! Temos de vencer o Bojador e acabar com a lenda desse mar Tenebroso que tanto receio causa aos homens! E para vencer o mar… é preciso conquistar Ceuta!
Mas como se o próprio mar Tenebroso o tivesse escutado e quisesse medir as suas forças com esse punhado de valentes, a armada portuguesa viu-se batida por uma horrível tempestade em que os elementos pareciam governados por qualquer poder infernal.
No meio de tal inferno, outra solução não tiveram os portugueses do que arribar de novo a Faro e esperar que a natureza acalmasse a sua revolta.
Porém, o infante D. Henrique não se amedrontou com o sucedido, nem sequer reduziu a sua confiança no triunfo da empresa. Pelo contrário, mais força de vontade adquiriu para seguir avante com a sua ideia. Assim, chamando um dos seus mais fiéis, um tal Vasco Vasques de que a História, por ingratidão, não guardou o nome, confiou-lhe a mais secreta das missões, dizendo-lhe:
— Ouve! Vou confiar-te uma arriscada missão. Nós vamos fazer-nos de novo ao mar. Mas tu, pela calada da noite, irás sozinho numa fusta, assim que nos aproximarmos de Ceuta. As trevas serão as tuas melhores amigas. Terás de chegar à praia e escolher o melhor sítio para nós desembarcarmos. Conto contigo, Vasco Vasques!
Com a voz embargada pela emoção, o valoroso cavaleiro respondeu a D. Henrique:
— Meu senhor! É tamanha a honra que me dais... que me sinto aturdido, quase sem poder falar! Mas descansai... Onde me faltam as palavras não me faltará o engenho e a espada! Obrigado, Senhor, por me haverdes escolhido, a mim, quando tantos e valorosos cavaleiros tendes à vossa volta!
O Infante tornou:
— Eles são valorosos, sim, mas não possuem a tua fé! E sem Fé nada se pode fazer!
Vasco Vasques fez uma cerimoniosa reverência.
— Pois bem, meu senhor: nem que seja apenas o meu cadáver… lá estará na praia alguma coisa de mim a indicar-vos o melhor caminho!
— Que Deus vos proteja, Vasco Vasques!
— Que a Virgem nos proteja a todos, meu senhor!
Assim partiram para Ceuta, poucos dias depois deste encontro e amainada a tempestade, os componentes da armada portuguesa. Iam confiantes!
Quando já estavam próximo do destino que levavam, aguardaram ao largo que a madrugada chegasse — depois duma longa noite — para que fosse possível o desembarque. E no silêncio dessa noite longa, uma fusta chapinhou cautelosamente nas águas. Nela, ia Vasco Vasques, o enviado do infante D. Henrique, a caminho da glória ou da morte.
Conta a lenda que ele conseguiu pôr pé em terra de Ceuta, sem ser visto. E a primeira coisa de que se ocupou foi de invocar a protecção de Nossa Senhora, sua padroeira.
Ajoelhou na areia da praia envolta no manto negro da noite. Ao fundo, o mar soltava os seus queixumes. Aqui e além, uma pincelada mais negra mostrava a silhueta de Ceuta. Vasco Vasques elevou ao Céu a sua humilde e fervorosa oração:
— Minha Nossa Senhora! Tende misericórdia deste vosso escravo! Dai-me um indício para me orientar… ajudai-me a escolher o caminho da vitória para os cristãos vossos vassalos. Senhora! Chegou a hora de limparmos esta terra, também, da impureza dos infiéis!
Mais confortado intimamente com a sua própria prece, Vasco Vasques ergueu-se e partiu, cauteloso, pela terra fora, tentando descobrir o indício que pedira. Mas, em vez disso, viu surgir de súbito na sua frente, como que vindo da terra ou do céu, um estranho vulto de mulher, no qual só o rosto parecia iluminado de luz.
Benzendo-se apressadamente, Vasco Vasques levou a mão à espada, pronto a defender-se de qualquer armadilha. A estranha aparição falou:
— Não vos atemorizeis, bom cristão!
Desconfiado, Vasco Vasques inquiriu:
— Como sabeis que sou cristão?
Dulcíssima, a voz daquela mulher tomou a soar na calada da noite:
— Eu também sou da vossa fé. Há anos que vos espero. Esta terra não pode ser nem deve continuar a ser infiel. Aqui, começa um novo mundo!
Extasiado, ele nem atinava com que responder. Mas o diálogo prosseguiu, depois dum breve silêncio.
— Que palavras extraordinárias, as vossas! Parece-me escutar o meu infante D. Henrique.
— Sim, o vosso infante... Quer destruir o mistério do mar Tenebroso, não é verdade? Pois há-de consegui-lo! E os Portugueses irão longe, se quiserem!
— Mas quem sois... para falardes assim, com tanta confiança... dum futuro ainda distante?
— Que importa quem sou? Importa, sim, o que posso... Anda comigo. Vou mostrar-te o caminho que procuras.
Vasco Vasques olhou ainda hesitante aquela que lhe falava e lhe sorria.
— Tens medo, bom cristão? A tua fé costuma ser inquebrantável!
Humildemente, Vasco Vasques retorquiu:
— Sou tão pequeno para uma graça tão grande... que não ouso acreditar!
— Pois bem: eu vou à frente. Basta que me sigas.
Então, resoluto, o homem caminhou ao lado daquela aparição tão estranha como formosa. Com a mão segurava a espada e nos lábios perpassava-lhe uma oração. Assim andaram na calada da noite até um caminho mal defendido que ia dar à fortaleza. E quando o homem quis agradecer à sua preciosa guia tamanha mercê, ficou por momentos pregado ao solo. O espanto e a certeza da graça divina paralisaram-no. Ela, a mulher que tão útil tinha sido, desaparecera como surgira! De mão juntas e olhos postos no céu, Vasco Vasques murmurou consigo mesmo:
— Como é grande o desígnio de Deus!
De manhãzinha, com os primeiros alvores do dia, os portugueses desembarcaram. Cada instante seria uma incógnita. Mas, afoito e sorridente, lá estava no seu posto Vasco Vasques, que na sua voz vibrante de confiança tratou de os encaminhar.
— Por aqui, companheiros, por aqui! A vitória será nossa!
Logo a praia deserta se encheu de homens bravos e cheios de fé. A algazarra das vozes e das armas veio quebrar o silêncio daquelas paragens onde só o mar tinha licença para se impor. Então, o infante D. Henrique, com o olhar vibrante de entusiasmo, colocou a mão no ombro de Vasco Vasques dizendo;
— Obrigado, amigo! Eu sabia que podia contar convosco!
Depois, voltando-se para os que o acompanhavam:
— Avante, portugueses, avante!
O que depois se seguiu, não é fácil descrever. Mas a história de Portugal guarda para sempre essa página talhada pelos Portugueses nas areias e nas pedras de Ceuta. Página escrita a letras de sangue. Página imorredoira, pois o tempo não a conseguirá destruir.
Tal foi a grande batalha de Ceuta. Porém, conta a lenda que no meio do fragor do combate, Vasco Vasques ouviu uma voz estranha e bela que o incitava:
— Por aqui, cavaleiro! Por aqui! Tende fé, que a vitória será vossa!
Na balbúrdia da luta, Vasco Vasques gritou para D. Henrique:
— Ouvis, senhor Infante? É a mesma voz que me indicou o caminho!
Sem voltar a cabeça, olhos postos no movimento das armas, o Infante respondeu:
— Tendes alucinações, amigo! Nada oiço, além deste fragor!
Com o coração quase suspenso, Vasco Vasques insistiu:
— Escutai, Senhor... escutai melhor!
E a voz tornava a encantar o velho guerreiro:
— A vitória será dos Portugueses! E esta terra não pertencerá mais aos infiéis! Deus estará convosco!
Entusiasmado, Vasco Vasques tornou a gritar:
— Ouvis agora, Senhor?
Mas o infante D. Henrique nada ouvia. A mensagem era apenas para o cristão que primeiramente tinha pisado as areias de Ceuta. Porém, impressionado pelo ardor do seu fiel Vasco Vasques, o infante D. Henrique ali prometeu, sobre o sangue que tingia as ruas de Ceuta, que ele próprio mandaria para lá uma imagem da Virgem. E essa imagem havia de ter o mesmo rosto que Vasco Vasques descobrira naquela noite escura. Noite carregada de sombra que viria a marcar o reinado da mais bela luz do mundo!
- Source
- MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 361-365