APL 2795 Lenda da Maldição de Naubea

A manhã estava clara. Clara e de calor suave. Como carícia passava a brisa marítima sobre os cabelos de Pacheco Pereira. Mas ele olhava fixamente o porto de Cochim. Mal havia aurorado e já grande movimento se fizera no cais.
Nesse rosto moreno pelos abraços do Sol e do iodo, sobressaíam os olhos de Duarte Pacheco, ora azuis, ora verdes, conforme o tom do mar. Porém, fosse qual fosse a cor dos olhos, a sua expressão era sempre enérgica e dominadora.
Tão absorto estava nos seus pensamentos, que foi necessário alguém a seu lado chamá-lo em voz alta. Só então se voltou. Perto, viu ao lado de um dos seus homens a figura franzina mas emproada do feitor português. Então gracejou:
— Viestes a bordo para me cumprimentar?
O outro não deu mostras nem de contentamento nem de arrelia. Falou serenamente.
— Capitão Duarte Pereira, chegais a Cochim em hora de incertezas. A guerra está iminente com o rei de Calecute. Trimumpara, bastante desanimado, pede para vos apressardes. Precisa falar-vos.
Sorriu Duarte Pacheco.
— Tão aflito está o rei de Cochim? Que posso eu dizer-lhe?
— Sois português, como eu, e vindes de Portugal!
— Mais uma razão para que a minha presença anime o rei de Cochim!
— Mas sabeis que viestes aqui com a missão de vigiar os mares contra os navios piratas… E esse facto levou certos informadores mal conceituados a afirmar ao rei de Cochim que sereis perigoso.
Duarte Pacheco cerrou as sobrancelhas, num gesto de altivez.
— Como se deixa ele enganar de tal modo? Dizei-lhe que irei falar-lhe.
E sempre altivo, quase arrogante, Duarte Pacheco Pereira voltou as costas ao feitor português, e encerrou-se de novo na contemplação da costa.
Alto, mas não tanto como Duarte Pacheco, o rei de Cochim, embora novo, parecia mais velho que o capitão português. De ânimo pouco alegre e influenciável, era contudo bom e amigo do seu amigo. Falava com calma, agia devagar, mas usava de franqueza, e outro tanto exigia de quem privava com ele. Afeiçoara-se a Portugal e ao seu rei, desejando a todo o custo conservar essa amizade. E porque Duarte Pacheco aportara a Cochim sem mais delongas, apressara-se Trimumpara a saber com clareza quais as ideias do capitão português. Sentado na sua cadeira predilecta, esperava com paciência a visita que havia meia hora se fizera anunciar.
Pacheco atravessara o pátio e entrara num largo corredor que tinha acesso para duas salas opostas. Alguém lhe indicara a da sua direita, mas o jovem capitão vira tremer, levemente, o adamascado de um reposteiro, à esquerda. Sem perda de tempo, correu para lá e abriu-o, segurando com força o pulso que o acabara de cerrar. Um grito abafado fez-se ouvir. E aos olhos espantados do capitão português, surgiu a figurinha grácil duma jovem de olhos cor de carvão. Largou-lhe o pulso, agarrou-lhe a mão para lhe impedir a fuga, e perguntou:
— Por que me espiáveis?
Assustada, a jovem balbuciou quase:
— Queria… ver-vos!
— Porquê?
— O feitor português disse a meu tio que éreis jovem e altivo...
— E qual é a vossa opinião?
A jovem baixou os olhos. Ele insistiu:
— Dizei! Como vos pareço?
Sem o olhar, a jovem esclareceu:
— Sois realmente novo, realmente altivo… mas desconfiado!
Ele riu.
— Tendes razão! Como vos chamais?
Naubea.
— E quem é vosso tio?
Trimumpara, o rei de Cochim.
— Se Trimumpara zelar os negócios de Cochim e os de Portugal como zela os de sua casa... mal estamos todos!
— Porquê?
— Porque uma donzela como vós não devia andar por detrás dos reposteiros a espiar os homens que chegam a este porto!
A jovem mordeu os lábios.
— Sei cuidar de mim, senhor! Não precisarei de meu tio nem da amizade de Portugal para me proteger.
— Não é isso que consta...
Ela olhou-o sem medo.
— Que consta em Portugal?
— Em Portugal e na Índia consta que Cochim será do rei de Calecute, se os Portugueses não estiverem aqui!
Suspirou fundo a donzela. Voltou a pousar os seus lindos olhos no chão. Tomou-se mais tímida a sua voz.
— Não tenho medo de morrer! Mas ide falar com meu tio, que vos espera. A ele preocupa mais a situação em que nos encontramos.
Sorriu Duarte Pereira.
— Voltarei a encontrar-vos?
— Aqui neste mesmo local, quando regressardes...
E sem mais acrescentar, a jovem cerrou o reposteiro e libertou-se da mão do capitão português, que desta vez não opusera resistência.
Frente a frente, Trimumpara e Duarte Pacheco Pereira olharam-se profundamente. Então o rei de Cochim começou a falar.
— Necessito saber quais os vossos desígnios e para isso tereis de dizer-me claramente, sem rodeios nem subterfúgios, as vossas intenções quanto à vossa estadia neste porto. Decerto não ignorais a amizade que me liga ao rei de Portugal. Estamos em má situação. Precisamos de auxílio. Mas se o vosso desejo é abandonar-nos, dizei-o já, para que não venha a iludir-me! Eis o que pretendo saber de vós.
Os músculos do rosto do jovem capitão português retesaram-se num esforço de vontade, para falar tão calmamente como o fizera Trimumpara. Todavia, a sua voz soou imperiosa.
— Muito me espanto de vós, senhor! Porquê essa desconfiança, se é verdade que conheceis bem os Portugueses?
— Alguns mouros disseram-me que não me ajudareis!
— E acreditastes neles?
— Duvidei. Por isso vos peço que me digais a verdade, por mais crua que seja!
— Os Mouros são nossos inimigos e os Portugueses têm só uma palavra!
— D. Francisco de Albuquerque partiu...
— Mas deixou-me, embora mal armado, para vos defender!
— Os mouros que me falaram têm sido meus amigos.
— Se perderdes essa amizade, cobrareis a minha, bem como a de todos os portugueses existentes no vosso reino!
— E que podereis, sozinho, com tão poucos homens, contra a armada de Calecute?
— Se fiquei, foi para servir-vos e mostrar-vos assim que o nosso reconhecimento pelo que sofreis por nossa amizade não será um mito. Se necessário for, morrerei por vós e pela nossa aliança!
— Ainda bem que me falais assim! Confesso que perdi a esperança quando vi Albuquerque partir levando quase toda a sua armada.
— Mas deixou-me para vos ajudar, repito! E ele sabe bem quanto valem os meus homens!
— Perdi já a minha cidade à fé de um tratado.
— Sereis vingado! Não temais a guerra!
— Somos tão poucos!...
— Asseguro-vos que muitos havemos de parecer quando a hora soar!
— Ficareis então a nosso lado?
— Juro-vos, príncipe, que assim será, salvo se a morte nos buscar! Recobrai, pois, o vosso ânimo! Em cada um de nós encontrareis um exército!
— Obrigado, amigo! Dizei-me agora que devo mais fazer?
— Publicardes um bando, declarando que ficará sob pena de morte todo aquele que saia de Cochim sem a devida autorização. Dizei ainda a todos que venho não só para impedir a entrada ao rei de Calecute como a prendê-lo e levá-lo ao rei de Portugal!
— Sem demora o vou fazer. Ficais aqui connosco?
— Não. Vou sair. Tenho ainda que falar com alguns mouros e mercadores, e vigiar as saídas possíveis — se as houver. Até breve! Ouvireis falar de mim!
E, sem mais delongas, Duarte Pacheco Pereira abandonou a sala, deixando atónito com a sua ligeireza de gestos e palavras o rei de Cochim.
Ao passar pelo corredor, de novo o reposteiro ondeou. E um rosto bonito, espreitando, disse numa voz não menos bonita:
— Amanhã ao romper da alva estarei junto ao cais, embora disfarçada…
Sorriu o jovem capitão. Mas não teve tempo sequer para uma breve troca de palavras. A jovem sumira-se, tal como surgira! E Duarte Pacheco saiu do palácio para ir falar aos mercadores...

Rompia o sol ainda menino, no seu passo hesitante, quando Duarte Pacheco descobriu um vulto envolvido numa capa acinzentada. Pelo passo miúdo compreendeu que devia ser a jovem Naubea. Indo ao seu encontro, levou-a para uma casa térrea, junto à doca.
— Senta-te, jovem. A tua mão treme!
Ela descobriu o seu lindo rosto. Olhou o capitão com ternura.
— Sempre pensei que os portugueses eram valentes, mas não os julgava tão belos!...
O capitão passou-lhe um braço à roda da sua frágil cintura.
— Como é bom ouvir frases bonitas logo pela manhã! Por ti serei um leão e porei boquiaberto o rei de Calecute!
— Sei que vais partir. Não te exponhas demasiado, pois se é grande o bem de ver ressurgir a nossa pátria e a nossa terra, grande é o mal de perder o nosso único amor!
Apertou mais o cerco, o braço de Duarte Pacheco. A sua voz foi quase terna.
— Será que realmente conheceste em mim o amor?... Mas só me viste ontem!
— Há muito que te amava!
— Como, se nunca me havias visto?
— Mas ouvia falar de ti, da tua coragem, da tua ousadia, do teu valor. Apenas receava que fosses um velho. Mas mesmo assim ter-te-ia amado!
— E se não tivesse vindo para te ajudar?
— Nunca duvidei de ti, como fez meu tio! Eras português e isso me dizia tudo. Somente...
— Somente o quê?
— Somente receio que um dia encontres a morte numa batalha, ou a glória te embriague ao ponto de te levar para longe de mim.
— E se isso acontecer?
— Se morreres, morrerei contigo, juro! Se partires sem mim… que sejas sempre maldito, e a sede de glória causadora dessa partida possa lançar sobre ti o esquecimento e a ingratidão dos homens! Que morras só e na maior miséria!
O cerco à volta da cintura da bela indiana desapertou-se. Duarte Pacheco riu sem vontade.
— Louquinha! Julgas acaso que pretendo que morras por mim ou que receio a maldição de uma mulher?... Não conheces os Portugueses!...
Serenamente, a jovem sublinhou:
— E tu não conheces ainda o verdadeiro e profundo amor de uma indiana.
No cais começou a esboçar-se mais movimento. Provisões de toda a espécie começaram a entrar nas embarcações. A jovem sobressaltou-se.
— Vais partir?
Ele apertou-lhe a mão delicada.
— Vou desafiar o rei de Calecute.
— Para quê? Ele virá!
— Preciso que ele saiba com quem tem de haver-se. Ele e os outros em quem ele manda.
— Mas assim não demorará a invasão!
— Que venha quanto antes!
— Os homens dele são como formigas!
— E os meus homens poucos, mas homens!
— Amo-te e não te quero perder!
— Perder-te-ia eu, se me soubesses perjuro ou tíbio! Amaste-me porque sou forte e nada temo.
Deu-lhe um beijo e dispôs-se a sair, acrescentando:
— Vai para casa e guarda-te o mais que puderes. Voltarei dentro em breve para te contar as minhas vitórias.
Lágrimas quentes rolaram pelas faces douradas da jovem indiana. Encostou o seu rosto ao peito forte do bem-amado e soluçou:
— Cuida-te! Da tua, dependerá a minha vida!
E desligando-se do abraço que de novo a cingira, correu pelos caminnhos em direcção à fortaleza.
No cais, Duarte Pacheco Pereira ficou a olhá-la, com um sorriso estranho. Depois, alargando o peito, esticando os braços e as pernas, voltou costas à fortaleza que os vigiava do alto, e entrou na sua caravela.
Era uma sexta-feira, o dia 16 de Abril de 1504. Vindo de Cambalão, passou Duarte Pereira junto da fortaleza e desceu a Cochim para se despedir de Trimumpara. Lado a lado passearam durante dois quartos de hora. O rei de Cochim mostrava-se desanimado.
— Só tenho quinhentos homens para vos entregar, e o inimigo juntou cinquenta mil e uma multidão de navios. 
Duarte Pacheco Pereira sorriu-lhe.
— Ânimo, senhor! Mais valem poucos esforçados que muitos cobardes. Vereis a nossa vitória!
— Cuidai de vós! Não quereis mais do que vos for possível! Em muita conta tenho a vossa vida!
— Em maior conta tenho a minha honra, senhor! Havemos de vencer!
— Para onde ides agora?
— Para Cambalão, o mais rapidamente possível. Dai por mim os meus cumprimentos de despedida ao príncipe vosso filho e a vossa sobrinha.
— Não quereis vê-los? Creio que vos esperam.
— Não. Não perderei nem mais um minuto.
E saindo de ao pé do rei, voltou para o seu batel.
 
Quando a frota surgiu em Cambalão, ainda o Samorim  não tinha chegado. Todavia existiam já ali 800 naires que tudo fizeram para obstar ao desembarque de Duarte Pacheco Pereira. Mas a artilharia das embarcações obrigou-os a sair das praias, deixando assim campo livre ao desembarque. Então deu-se o combate. O inimigo retrocedeu e os portugueses iam avançando, deixando atrás de si o fogo e a devastação.
Todavia, o exército do rei de Calecute não se fez esperar. Compunha-se de cinquenta mil homens e 160 embarcações. Tremeram os naires de Cochim ao avistar tal número de inimigos. Vendo-os esmorecidos, Duarte Pacheco voltou a falar-lhes:
— Ânimo, senhores! Estamos aqui para lutar e vencer, não para comentar e tremer! Cada minuto de hesitação é um dia de força moral que daremos ao inimigo! Decisão e coragem, tem de ser a nossa divisa! Que o próprio inimigo se surpreenda com a nossa audácia! Se isso acontecer, a vitória será nossa, mesmo na proporção de um homem para cem! Avante, pois!
O embate deu-se. A defesa da foz do rio tinha sido bem estudada, por meio de cabos passados de umas caravelas para outras, a toda a largura. Caíram os de Calecute sobre os portugueses. A confusão foi enorme. Atormentados, desbaratam-se os de Cochim. Mas Duarte Pacheco, vendo o posto abandonado pelos homens de Trimumpara, recebeu o inimigo a fogo vivo e desbaratou os paraus. Algumas horas durou esta peleja no mar, acabando em derrota para os de Calecute.
Envergonhado com este desaire, o Samorim ordenou então um ataque geral por terra e mar. Como o número de guerreiros era maior, muito maior pela parte dos de Calecute, a vitória esteve indecisa, passando os portugueses alguns maus bocados. Mas Duarte Pacheco parecia ter nascido para comandar a guerra e nele viver ainda a alma dos guerreiros mitológicos. Num esforço heróico, conseguiu reorganizar o seu pequeno exército e desbaratar com brio os cinquenta e sete mil homens que então cercavam a centena mal contada dos portugueses. Essa foi a primeira grande vitória do capitão Duarte Peteira em terras indianas!
Depois deste triunfo, outros se seguiram, cada vez mais rijos e mais honrosos para os portugueses. Não sabendo já como dar cabo desse punhado de heróis de fama quase sobre-humana, pensou o Samorim liquidá-lo pela traição. Mas nem esse recurso extremo o livrou de mais uma derrota. E o dia do decisivo acometimento chegou. Duarte Pacheco preveniu-se para a batalha. E o príncipe de Cochim quis desta vez acompanhá-lo, ajudado de seus naires. A luta foi dura. Mas o ardor de Duarte Pacheco, a sua decisão, o remédio rápido que encontrava para os desaires, o ânimo que insuflava nos seus companheiros e a bravura daqueles que escolhera para comandar os pontos onde não podia estar, deram uma vez mais uma vitória rotunda aos portugueses, e de tal forma que o rei de Calecute teve de a reconhecer.
Foi tal a alegria de Trimumpara, que prodigalizou bastas honras a Duarte Pacheco Pereira. Em terra permaneceu este por algum tempo. Mas o seu espírito irrequieto não o deixava olhar serenamente o mar. Certa tarde, Naubea chegou junto dele e perguntou-lhe:
— Por que te afastas de mim?
Ele olhou-a com complacência. 
— Ouve, Naubea. Eu sou o homem que nasci para o mar e para a guerra, não para o amor. És para mim a mulher mais bela que tenho encontrado na Índia. Mas serás um dia a esposa do príncipe sucessor de Cochim.
Ela gritou-lhe:
— Não! Não serei a mulher daquele que me destinam, porque quero ser tua!
— E se eu partir?
— Irei contigo!
— Creio que dentro de dias embarcarei para Coulão, em socorro do feitor português, cercado pelos naturais movidos pelos mouros.
— Não partirás!
— E por que não? Tenho de socorrer os feitores de Portugal!
— Se partires, esquecer-te-ás de mim!
— Voltarei, prometo!
— E se não voltares?
— Terei a tua maldição, não é assim?
Ele riu. Mas Naubea perfilou-se subitamente e exclamou com voz pausada:
— Parte, capitão português! Parte, mas volta a buscar-me! Se o fizeres, que a maldição que te lancei um dia caia sobre ti e todos os teus descendentes até à terceira geração!
Deixou de rir Duarte Pereira. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo, como se a morte desonrosa estivesse na sua frente. Mas tentou desembaraçar-se desse mal-estar que lhe punha um amargo na garganta. Respirou fundo. Quando voltou de novo a sorrir, já Naubea se tinha retirado.
A tarde morria rapidamente, sem mudança. No esboço de penumbra o capitão distinguiu a sua caravela. E o desejo enorme de sair para o mar tomou-o de tal jeito, que ele partiu logo de terra às primeiras horas da noite, sem mais explicações que um recado enviado por um dos homens.
Nunca mais voltou a Cochim, se não quando soube da chegada de outro capitão português. E com ele regressou a Portugal.
Porém a roda da fortuna depressa desandou para o heróico D. Duarte Pacheco. Embora recebido com honras, cedo o rei D. Manuel acreditou nas traiçoeiras maquinações de invejosos, o fez prender e o colocou à mercê de esmolas. Morreu este altivo e valoroso guerreiro na maior miséria, assim deixando mulher e filhos.
Cumprira-se a maldição de Naubea!

Source
MARQUES, Gentil Lendas de Portugal , Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume II, pp. 311-318
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