APL 3276 Da Imagem de Nossa Senhora do Rosario do Convento de Sam Domingos

O Convento de Sam Domingos em Lisboa fundou ElRey D. Sancho II & acabou seu Irmaõ D. Affonso III. Logo desde seus principios começou a ser venerada em hũa magnifica Capella do mesmo Convento, hũa devota Imagem de nossa Senhora com o titulo do Rosario: & he tam grande a devoçaõ desta Senhora, que continuamente he visitada de quasi todo aquelle numeroso povo, com universal concurso, em especial nos primeiros Domingos de cada mez, cuja Irmandade enriquecèraõ os Summos Pontifices com innumeraveis indulgencias. Os milagres q’ obra saõ muytos, & continuos. O Padre Mestre Fr. Luis dos Anjos, & o Padre Alonso de Andrade referem hum milagre notavel, & he nesta maneira.
    Havia em Lisboa hũa mulher casada, natural do lugar de Cham de Canas de Senhorim, bispado de Vizeu, a qual era muyto devota da Senhora, rezavalhe todos os dias o seu Rosario com toda a devoçaõ que lhe era possivel; chamavase Agueda Peres: o Padre Fr. Luis de Sousa diz Agueda Lopes: & era casada com hum homem em tudo opposto a ella, tratava-a mais como a escrava, do que como sua mulher, & assim padecia a pobre hum continuo martyrio, daquelle para ella cruel tyranno, & chegou a tanto o seu aborrecimento, que a accusou de adultera ante a justiça, provando com testemunhas falsas o delito que naõ commettèra, & assim foy sentenciada à forca. Que faria a pobre mulher achandose por hũa parte innocente, & por outra sumergida em hum mar de penas, màos tratamentos, angustias, desemparos, & por remate de suas afflicço~es, & da mesma morte taõ afrontosa, sem ter quem lhe valesse? Acudio nestes apertos à Mãy de Misericordia como a amparo seu, & consolaçaõ de affligidos, & remedio dos desemparados, & rogoulhe acudisse pela sua innocencia, livrandoa daquelles apertos em que se achava, pois sempre lhe rezàra o seu Rosario. Facilmente pudera a Beatissima Virgem descubrir a sua innocencia, & livralla daquelle aperto; porèm dilatou esta mercè, deixandoa padecer mais, para augmento de sua coroa, & mais ostentaçaõ do divino poder, & dos favores que faz aos seus devotos.
    Chegou o dia da execuçaõ, levàraõna com prego~es afrontosos à forca de Santa Barbara; levava em suas mãos o Rosario, porque nunca deixou de o rezar, & o coraçaõ, & a confiança da Rainha dos Anjos. Chegáraõ à forca, & penduraraõna para escarmento de semelhantes crimes: & ella naquella hora clamou muyto à Senhora do Rosario para que lhe valesse. De tarde deu licença a justica, para que a pudessem enterrar; & tiraram-ma da forca em tal fórma, que ainda que naõ fora morta, o medo bastava para lhe tirar a vida. Levaram-na quasi de rastos a enterrar à Igreja de nossa Senhora dos Anjos, & querendoa amortalhar para a meterem na cova, abrio os olhos, & levantou as mãos dizendo estas palavras: Virgem Santissima do Rosario. Ficáraõ attonitos os presentes, & vendoaviva, clamáraõ: Milagre, milagre. Vieraõ dar conta aos Religiosos de Sam Domingos da mesma Cidade, que acudiraõ logo, & a trouxeraõ ao Convento com grande multidaõ de gente que os seguia, & entrando pela porta da Igreja, começáraõ todos a pedir a Deos misericordia; porque ainda naõ sabiam todos estava viva; & assim movidos de claridade pediaõ a nosso Senhor tivesse misericordia della. Puzerãona em os degráos do Altar da Senhora do Rosario; aonde descubrindolhe o rosto, ponto os olhos fitos na Santa Imagem, lhe deu as graças daquelle grande beneficio. Como a gente era muyta, temendo os Religiosos que a apertassem, & abafassem, a leváraõ para a sacristia, aonde lhe achàraõ o Rosario ao pescoço; & dandolhe de comer esteve assim aquelle dia, que era sexta feira, & o seguinte. No Domingo em que se fazia a festa da Senhora do Rosario, esteve à Missa, & referio ao Provincial da Ordem, em como sempre se havia encomendado à Senhora, & muyto mais na hora da morte, tendo grande confiança que havia de livrala; e que a Virgem Maria lhe apparecèra naquelle aperto, & a confortára com suas palavras, assegurandoa; que a naõ deixaria, & que nem morreria entaõ, & que em fé disto lhe havia assistido aquelle tempo conservandoa viva, ainda que parecia estar morta; & que todos estes favores lhe fizera, por ser devota do seu Rosario.
    Agradecida a mulher de tam grande favor, que a Senhora do Rosario lhe havia feito, se dedicou toda ao serviço da mesma Senhora, servindoa, & a nosso Senhor em aquella Igreja, o tempo que viveo, que foraõ dous annos, no cabo dos quaes foy a gozar de gloria.Pelos annos de 1580. vivia na Cidade de Lisboa hum homem tentadissimo de ciumes. Tinha este hũa mulher muyto honesta, & virtuosa, & sobre tudo devotissima de nossa Senhora do Rosario, a quem todos os dias rezava o seu Santo Rosario, & se encomendava: conheceo a boa mulher o deslumbramento do marido, & via que cego da sua louca tentaçaõ lhe queria dar a morte, com o que andava com mil temores, & sobresaltos. Hum dia de festa pela tarde, estando todos os criados fóra da casa, achando occasiaõ para executar o seu damnado intento, cerrando a porta da rua, levou consigo hum punhal, para tirar a vida à innocente mulher. Estava entaõ esta rezando o seu Rosario à Senhora em hum aposento das primeiras casas: & subindo o marido pela escada para effeituar a sua diabolica tentaçaõ, ouvio dar grandes golpes na porta da rua. E descendo a ver quem batia, achou hum mancebo de muyta fermosura, & galharda disposiçaõ, que lhe disse, que em todo o caso fosse com elle logo ao Convento de Sam Domingos; porque hum Padre seu conhecido o chamava, & o estava esperando; para tratar com elle hum negocio, que a elle mesmo tocava.
    Foraõ ambos ao Convento de Sam Domingos, & entráraõ na Igreja, ao tempo que se cantava a Salve a nossa Senhora depois das Completas, com a solemnidade que se costuma na Ordem. Rogoulhe o mancebo, que entrasse na Capella da Senhora, em quanto se dizia a Salve, & sahia o Religioso. Ajoelhàraõ diante do Altar da Senhora, & feita breve oraçaõ, quando ohomem voltou os olhos naõ vio o mancebo, que o havia levado, nem vio para onde fosse, nem em que parte estivesse, nem como desapparecèra. Entrou logo em o Claustro, & encontrando ao Religioso, em cujo nome lhe dera o recado, & perguntandolhe para que o chamava, responde que nme tal recado mandára, nem tinha nenhum negocio com elle. A vista disto cahio o homem na conta, & entendendo que Deos por intercessaõ da Senhora do Rosario o quisera apartar de tirar a vida a sua mulher. E persuadiose, que o mancebo que o chamára fora algum Anjo, que pelos merecimentos de sua Rainha Serenissima de quem sua mulher era devota, fizera aquella diligencia. Daqui se seguio ser muyto amante de sua mulher, & tambem da Senhora do Rosario.

Source
AGOSTINHO DE SANTA MARIA, Fr. Santuário Mariano , Imperitura, 2007 [1711] , p.Tomo I, Título XIV, pp. 108-112
Place of collection
São Domingos De Benfica, LISBOA, LISBOA
Narrative
When
16 Century,
Belief
Unsure / Uncommitted
Classifications

Bibliography